A Menina das Caixas de Fósforos
O Natal é uma época fascinante. Parece haver um encantamento mágico por trás dele; sempre me pareceu que as pessoas ficavam mais humanas e, por isso, eu me sentia mais segura circundada pelas músicas, enfeites, luzes, sorrisos natalinos. Tem um conto de Natal que pertencia a um grande livro meu de contos de fadas, de quando era pequena. Era uma de minhas histórias favoritas; não havia princesas nem fadas, e mesmo assim eu gostava mais dela. Não lembro muito bem, mas preciso contá-la aqui. Tenho uma leve lembrança da sensação de quando a li pela primeira vez, e que continuei sentindo em todas as repetições de leitura: era um baque. Causou-me certo choque: um pouco forte para uma criança.
A história se passava num tempo que imaginei ser mais ou menos final de século XIX; não lembro se dizia o lugar, mas penso que fosse Paris – é um belo cenário e se encaixa com o conto. Então: Paris, século XIX. Era noite de Natal. As ruas estavam ornamentadas. Algumas pessoas que haviam feito compras de última hora passavam com presentes rumo aos lares. Outras compravam os últimos ingredientes à ceia natalina. A neve cobria a cidade. Com um vestidinho esfarrapado e um chinelo nos pés, uma menininha vendia caixas de fósforos nas ruas. Imagino que tivesse 9 ou 10 anos de idade. Na verdade, ela usava apenas um pé do chinelo: perdera o outro no caminho. Eram grandes demais aos seus pezinhos. Um menino que a tinha visto antes de perdê-lo dissera que, quando ela tivesse um filho, poderia usar o chinelo como berço.
Estava ficando tarde e a menina não vendera sequer uma caixa de fósforos àquele dia. Tinha medo, por isso, de voltar para sua casa, porque o pai se zangaria. Tentaria ainda, já que havia transeuntes nas ruas. Estava com muito frio. Em casa, porém, não estaria mais aquecida porque tinham frestas enormes entre os pedaços de pau que a compunham.
Ofereceu fósforos a alguns senhores que passavam; eles simplesmente a esnobaram. Como muitos, aliás, que a ignoravam de modo a fazê-la sentir-se invisível, transparente. Cada vez ia diminuindo mais o número de pessoas na rua, e as chances de ela vender alguma das suas caixas.
O frio estava insuportável. Vendo que já não havia quase ninguém a quem pudesse vender os fósforos, a menina foi para um cantinho e ali se sentou. Virou-se para trás, onde havia uma janela, e viu uma sala arrumada com árvore de Natal e mesa posta. Um belo frango assado e outros pratos estavam sobre a mesa. Ah, que fome a menina sentiu! Ficou com vontade de comer o frango... Uma vez, lhe disseram que se sentisse fome, poderia imaginar que estava comendo e a fome passava... Então, ela imaginou comer cada uma das coisas deliciosas daquela rica casa que observava, sentindo seu aroma. Muitas vezes fizera isso e tinha funcionado.
O frio aumentara. Ela tremia muito. Olhou para as caixas: eram tantas... e se acendesse um fósforo? Apenas um, para se aquecer um pouco... Acendeu-o. A pequena chama produziu um calor gostoso... iluminou o lugar onde estava sentada... E, de repente, ela viu uma coisa estranha: a parede da casa parecia ter-se aberto!... Abria-se, e a menina não se encontrava mais na rua, mas dentro da sala magnífica que vira. A chama, porém, logo se apagou e a menina voltou à calçada.
Queria ver de novo aquilo. Ficara tão próxima à árvore de Natal, como nunca antes. Resolveu acender outro fósforo. Veio o calor, e a parede novamente se iluminou. Começou a ficar transparente outra vez. A árvore estava ao seu lado. Olhou-a e uma coisa estranha aconteceu: a árvore começou a subir, subir, como se crescesse; as velas que a iluminavam começavam a se juntar às estrelas do céu... apagou-se.
Rapidamente, a menina tratou de acender mais um fósforo: dessa vez, estava de frente para a mesa. Podia ir até ela e pegar o que quisesse para comer. Olhou para o frango e teve uma surpresa: o frango estava se levantando!... Jogou-se no chão e foi rolando em sua direção. Quando a estava alcançando, o fósforo se apagou outra vez.
A menina riscou mais um palito. Dessa vez, a chama parecia demorar mais a se apagar. Ela sorriu, estava sendo aquecida. Olhou ao redor: o cenário estava mais iluminado. Então, uma senhora de aparência muito meiga começou a vir em sua direção. A menina reconheceu sua avó... mas não era possível, a avó havia morrido. Entretanto, era sim. A única pessoa que a havia amado em vida. A única que cuidou dela. Estava novamente se aproximando. Com medo de que o fósforo se apagasse e não pudesse continuar a ver a senhora, acendeu mais fósforos. A luz e o calor ficaram fortes.
A avó, já à sua frente, estendeu-lhe a mão, sorrindo. A menina sentiu uma felicidade imensa percorrendo seu corpo. Nunca ganhara presente algum no Natal, e agora, estava recebendo um de proporções inalcançáveis! Sorriu, a bela menina sorriu e encheu os olhinhos vazios e tristes de um brilho intenso... avermelhou as maçazinhas pálidas de seu rosto... Segurou a mão estendida e, com a avó, voou... voou, e nenhuma pessoa mais voara como elas. Ah, enfim a avó veio buscá-la.
No dia seguinte, pela manhã, os jornais que existiam já se dirigiam ao local e um grupo de pessoas se amontoava em volta do corpo da menininha. “Coitadinha, morreu de frio, pobre menina!”, alguém falou. Ao lado do corpo, vários palitos queimados. “Ela tentou se aquecer um pouco antes de morrer!”. Em seu semblante, entretanto, um terno sorriso transmitia serenidade e paz... Ela estava feliz...
Este é o conto, mais ou menos deste jeito. Eu fiquei triste quando o li porque não queria que a menina morresse. Mas continuei lendo, e lendo... Mais tarde, descobri que era preciso que a menina do conto morresse... porque ninguém deveria precisar morrer como ela... menos ainda na época alegre, festiva e tão humana como deve ser o Natal... que, para mim, devia ser seguro... Não vou explicar agora o que penso sobre isso: sobre essas coisas que incluem as mortes de crianças inocentes. Acho que este conto fala muito, e fala por si mesmo... O Natal precisa ter comoção; e estranhamento; e espanto... Precisa provocar a humanidade. Deixem-se provocar, deixem-se comover... oh, eu me espanto e este espanto dará frutos, um dia...