A Aparição
Chuvas grossas pingavam sobre o telhado da casa. Fazia um frio cujo vento sibilava do lado de fora. As janelas estremeciam com a força da natureza. Trovoadas rajavam o céu com seus estrondos. Era madrugada de um domingo para segunda-feira.
Enrolada em suas cobertas, Isabel respirava profundamente em seu sono profundo. Parecia estar a sonhar com as coisas da vida. Havia alguns meses desde que Geraldo, seu marido, falecera.
Ela remexeu-se um pouco e emaranhou-se nas cobertas, quando sentiu o braço do marido envolvê-la. Juntou seu corpo ao que estava prostrado atrás de si, a sentir o cheiro do marido e o calor oriundo de suas narinas em seu pescoço. A princípio, sentiu-se confortável novamente depois de algum tempo – mesmo a estar sonolenta. Sentia falta do carinho e das carícias que por tantas noites foram suas companhias.
Ela abriu os olhos – ainda a sentir a presença atrás de si. Avistou o relógio sob o abajur. Marcavam duas e quarenta e sete. Ela arregalou os olhos a perceber aquele braço envolto se si. Súbito, ela levantou-se a gritar, apavorada, e dirigiu-se ao canto do quarto. Percebeu que quem estava ali presente, também assustado, levantou-se e foi para o outro canto do quarto. Ela encorajou-se e acendeu o abajur. Havia um espectro que lhe parecia muito familiar, contudo suas vistas míopes não distinguiam quem poderia ser.
Ela tateou a mesa ao lado da cama, sem tirar os olhos do espectro, e buscou seus óculos. Ao pô-los, não conseguia acreditar no que estava a ver. Era Gilberto, seu falecido marido.
Os dois ficaram silentes por algum instante, até que ela ajoelhou-se e pôs-se a rezar o que lhe vinha à cabeça: o Padre-Nosso, a Ave Maria, Salve Rainha e sabe-se mais que coisas que a catequese que fizera havia mais de trinta anos havia lhe ensinado.
- Por que essa bobajada toda, querida? – inquiriu o espectro, ainda embasbacado com a atitude da esposa viva.
- Não acredito no que estou vendo – exclamou ela, a cerrar os olhos e a continuar a rezar murmurante. – Não pode ser! Não pode ser!
- Não pode ser o quê, Isabel? – perguntou Gilberto. – Sou eu, teu marido, que você clama todas as noites para que eu volte um dia e me despeça!
Isabel levantou a cabeça e, lentamente, foi-se abrindo os olhos. Fitou-o ali, parado, como quando inquiria-a sobre o que jantariam de noite. Era ele mesmo: Gilberto, seu marido. Um pouco pálido, mas era ele. Com as mesmas roupas que usava durante as noites de sono: andrajos velhos que ela clamava para que doasse.
- Gilberto?
- Sim, meu amor?
- Como é que...?
- Ora, São Pedro me deu um aval de algumas horas voltar e me despedir. Não era isso o que você queria?
- Sua partida me dói tanto...
- Eu sei que dói. Só não doeu quando você colocou aquela estricnina na minha comida e mentiu ao legista de que eu sofria havia anos do coração... Mas como estou do outro lado e fui perdoado por Deus, eu também te perdoo. A sua dor chama-se remorso. É isso o que acontece quando a gente vê partir quem deveria estar ao nosso lado.
- Não me venha com sermões depois de me assustar – exclamou ela, como sempre fazia. Menos assustada, claro. – Isso aqui está parecendo um romance de Juan Rulfo ou algum filme da série Annabelle. Mas como pode isso?
- Eu sei, eu sei – redarguiu ele. – As ficções muitas vezes nos contam verdades. Há coisas muito belas do outro lado, como em Amor Além da Vida ou Ghost, mas há coisas horrendas como nas histórias de Poe. O fato é que estou aqui, de volta. Eu ia dormir contigo pela última vez, mas tua cólera me assustou e me despertou.
- Você fez como sempre fazia...
- É porque sou eu, não?!
A ironia de Gilberto continuava da mesma forma. Mesmo após ter sido agraciado com a subida aos céus e com o aval de São Pedro para uma descida rápida ao mundo dos vivos.
- O céu cristão existe?
- Olha, anjos não andam pelados nem são criaturas esteticamente apetecíveis a olhos que um dia foram humanos; bonitos são os colibris que lá vivem. Há uma certa burocracia, pois é muita papelada que chega às mãos de São Pedro.
- E o inferno existe?
- Lembra quando íamos ao escritório do advogado que quase nos desquitou? É bem parecido. Só que a temperatura lá só não é tão insuportável quanto o calor de Araraquara.
Era a cidade natal de Isabel. Ela sabia que ele não perderia a oportunidade de, mesmo morto e mais uma vez, criticar o seu local de origem.
- E você ouve quando converso com você?
- Ouço, mas eu fico mais no departamento dos novos chegados. É muito difícil para as pessoas se acostumarem que estão mortas. Ainda bem que tive curiosidade em ler aqueles livros chatos de espiritismo que você comprava alguns anos atrás. Ensinaram-me muito.
- E o purgatório?
- Isabel, você acha que estamos no A Divina Comédia?
Isabel deu de ombros. Acercou-se da cama, sentou-se, acendeu um cigarro e pôs-se a fumar.
- Fiquei sabendo que você vai morrer de câncer se não parar de fumar.
- Assim vamos passar mais tempo juntos...
- Isso se você subir...
- Você acha que não vou ao céu?
- Isabel, você me matou!
- Ora, mas você me perdoou. Deus também há de me perdoar.
- Deus está muito ocupado com a ascensão de anjos em arcanjos. Raras vezes o vemos.
- E como Ele é?
- É uma luz que... o que você anda lendo?
- O Apanhador no Campo de Centeio.
- Você não se ajuda.
Isabel deu de ombros novamente.
- Aliás, eu vim te dar um recado a cargo de tua mãe.
- Qual?
- Você está grávida.
- Grávida?
- Sim, grávida.
- Mas de quem? Eu te matei há mais de nove meses e não tive mais nada com ninguém...
- Ninguém? Não minta para você mesma.
- Foi algo rápido com Leonel. Eu não pude evitar. Sentia a tua falta e...
- Mas está grávida. Será um menino. Crescerá frustrado, pois o pai o rejeitará. Não será um Messias. Aliás, ele também ajudará você a agravar o câncer e você morrerá angustiada e triste.
- E se eu mudar meu destino.
- Matando uma criatura que ainda não nasceu?
- Não, me matando.
Gilberto franziu os sobrolhos. Parecia incrédulo no que ouvia.
- Diga-me, querido. O que posso fazer para que a desgraça não me ocorra?
- Acorde.
Isabel parecia não entender. Não conseguiu perguntar-lhe novamente o que havia dito. De repente, o despertador tocou. Feixes delgados de luz adentravam seu quarto. Ela levantou-se num átimo e procurou Gilberto pela casa. Havia sonhado? Por que tudo aquilo parecia tão real? Nenhum sinal de Gilberto.
Dirigiu-se à cozinha e bebeu uma água. Grávida? Àquela altura? Cinquenta e sete anos e grávida? Não podia ser. Dirigiu-se à farmácia e comprou um teste rápido. O farmacêutico ficou sem entender a pressa pela qual Isabel havia pago o teste. A volver para casa, uma surpresa: o teste dera negativo. Tinha de fato trazido o onírico à realidade.
Gilberto nunca mais apareceu, nem em sonho. Desde então, pesadelos horríveis passaram a atormentar Isabel. Não demorou muito para que ela perdesse a sanidade, tivesse sua casa vendida e o dinheiro roubado por Leonel e fosse por ele enclausurada em um manicômio público.