Satinha

Fabiano Ferraz, era um notório comedor de gatos; comia-os cozidos, assados, fritos... era costume comer carne de gato todos os domingos na velha casa dos Ferraz.

Fabiano era homem forte, bem disposto, gostava de dizer que sua robustez e saúde vinham de sua dieta especial...

Contudo, quando ele, chegou em casa com aquele gato em baixo do braço, dona Quitéria, sua mulher, estranhou, não o fato de Fabiano trazer um gato para casa(Quitéria também apreciava um bom pedaço de carne de felino), o gato em si é que a incomodava, era um gato único, era grande, dir-se-ia uma pequena pantera negra com aquele tamanho todo e seu pelo de um negro extremo e brilhante .

_ Que foi Muié, disse Fabiano ao ver a cara de espanto de Quitéria, é a primeira vez que tu vê um gato? concluiu empurrando a mulher para abrir caminho e entrar em casa.

_ Onde tu arrumou esse bicho, perguntou Quitéria olhando desconfiada paro o gato .

Como Quitéria não lhe dava espaço para entrar, Fabiano colocou o gato no chão, o peso do bicho já começava a incomodá-lo.

_ Foi a dona Flora que me deu, disse coçando a cabeça desconfiado, ela não pode mais cria-lo, da muita despesas e...

_ Quem? Aquela catimboseira? interrompeu Quitéria, aqui esse bicho não entra. Tú não vai comer esse bicho!?

_Vou sim! E tu também e as meninas!

As meninas eram as filhas do casal, tinham ali por volta dos nove anos a mais velha e sete a outra.

_ Não sinhô, nem tu, nem eu, nem ninguém nessa casa!Tú não vê que esse bicho tá enfeitiçado homi de deus!

_ Que nada! Verdade é que tu não esqueceu aquela história... Disse Fabiano empurrando a mulher e adentrando a casa.

Aquela história, à qual Fabiano se referia, era a história dele com a dona Flora, um romance extra conjugal que Quitéria foi obrigada a perdoar... Dona Flora, uma velha que tinha fama de feiticeira ali pelas cercanias, era uma das pessoas mais antigas do lugar. A quem afirme que ela é mais velha que a vila onde moravam. Mais velha que o tempo dizem outros com maldade e pilhéria. Dizem as comadres, a boca pequena, que a velha nunca o esqueceu e nunca deixou de ama-lo e que algum dia(dizia ela) o teria de volta para si. Quitéria tinha um ódio mortal aquele velha, apenas perdoará Fabiano porque achava que ele havia sido enfeitiçado por ela na ocasião...

Mas, isso é outra história, a história aqui é a do gato, vamos então ao gato, esse estava lá fora, as meninas vendo-o acharam-lo lindo , e já estavam a brincar e acarinhar o bichano enquanto os pais discutiam, no interior da casa, o destino do bicho.

_ O gato entra e vai para panela amanhã! dizia enfático Fabiano.

_ Homi, é coisa do diabo isso, esse bicho é o satanái! Tu quer ser enfeitiçado denovo?

_ O gato FICA! E vai para PANELA! Chega desse ciúmes besta, Sentenciou Fabiano finalizando a discussão.

_Num é ciúmes não, homi! Quitéria ainda tentou argumentar mas Fabiano já saira para o quintal.

La fora, as meninas sempre espertas e atentas a tudo, ouvindo toda a discussão logo batizaram o gato com o singelo e sugestivo nome de Satinha.

Fabiano ao sair encontrou o bicho abraçado as filhas, ou as filhas abraçadas ao bicho.

_ Deixa ele ficar painho, disseram em uníssono, deixa a gente ficar com esse, deixa a gente ficar com o satinha! Deixa, deixa...

_ Satinha? ... ele vai e para panela. Vocês não querem comer carne? Então...

O gato se desvencilhou das meninas e veio em direção a Fabiano, esse abaixou-se para pegá-lo , Satinha, então, começou a lambe-lhe as mãos grossas.

As meninas implorando e chorando cá fora, a mulher resmungando e chorando dentro de casa, o gato a afaga-lhe as mãos, Fabiano coçou indeciso a cabeça por baixo do chapéu.

_Voces podem ficar com ele... por enquanto!

_Eba! Comemoraram as meninas abraçando Satinha, brigado painho!

Dona Quitéria, agora parada à porta, balançou negativamente a cabeça e fez-se tronchuda.

_Aqui ele não entra! disse sem convicção, e, olhado para o gato que brincava com as meninas gritou: larga esse bicho! É o satanái, eu num tô dizendo!?

_ Satinha, mãinha, corrigiram as meninas, o nome dele é Satinha!

O gato foi ficando, as meninas o adoravam e ele as adorava em troca. Até Fabiano, depois de algum tempo de convivência com o gato, não pensava mais em come-lo; passava horas com o bicho deitado em seu colo e o acariciava, o gato adorava aquele chamego todo. Apenas Quitéria não tolerava o gato, sempre que podia e o encontrava pela casa, dava-lhe chutos e/ou pontapés. Satinha sempre amável e dócil, às vezes vinha para ela e se esfregava em suas pernas, logo vinha um chute e Satinha saia desconfiado de sua presença .

Muitos gatos vieram e foram comidos e Satinha permanecia ali, feliz, amado e bem nutrido. inclusive com carne de gato, iguaria

essa que ele parecia adorar.

Certo dia, ou melhor, certa noite de sábado, tudo estava tranquilo na velha casa dos Ferraz, as meninas brincando com Satinha, que parecia brincar de esconder com elas, indo para debaixo do velho fogão a lenha e depois voltando para o carinho daquelas.

Fabiano sentado na sua velha poltrona fumava e pensava na vida, ou no almoço de amanhã, domingo, seria o primeira vez nesses últimos meses que não teria carne de gato para o almoço dos domingos.

Fabiano olhava para as idas e vindas do gato, Satinha estava forte, saudável, maior do que quando o trouxe para casa, a vontade de mata-lo e cozinha-lo no dia seguinte crescia dentro dele, mas, olhava para as filhas e abandonava a idéia. 'Quem sabe num arrumo um gato amanhã cedin e preparo pro jantar...', pensava ele fumando o seu cigarrinho. Por vezes cochilava e vinha a sua mente a suculenta coxa de satinha, assada.

Quitéria, sentada em uma cadeira, trabalhava a sua costura, vez em quando passava as vistas nas filhas e no gato.

E, foi então que aconteceu , numa dessas idas e vindas do gato, as meninas notaram assustadas que havia algo estranho e diferente com o Satinha, vinha sacolejando, pulando , fazendo ruídos estranhos e assustadores; trazia olhos esbugalhados e vermelhos. O medo tomou conta das meninas, e o gato vinha em sua direção com aquela expressão de fúria, medo e desespero.

_Mainha, gritou a menina mais velha, tem algo errado com o Satinha!

_Ai Jesus, gritou a mãe!

E nesse instante Satinha mudou o rumo e começou a pular em direção a Quitéria, estava mais assustador e desesperado, com fumaça saindo por traz de sua cabeça.

_Fabiano! gritou Quitéria, socorre homi, o gato está endemoniado!

Fabiano já com a velha espingarda pronta atirou contra o bicho, a bala arrancou metade da cabeça do gato que caiu morto. As meninas correram e abraçaram-se a mãe e ficaram as três a olhar para o gato morto.

_Coitado do Satinha, disse a menina mais nova.

_ Eu não falei! Esse gato está endemoniado, disse Quitéria abraçada as meninas. É coisa mandada daquela bruxa velha!

Fabiano caminhou até o gato que permanecia imóvel no chão com meia cabeça, o resto da cabeça estava grudada, aos pedaços, nas paredes. Com cuidado, cauteloso, com medo até, tocou o corpo do gato com o cano da espingarda, ' é está morto', disse de si para si. Abaixou-se e ficou a examinar o corpo do bicho.

_Tanto que te falei, homi de deus, esse gato é do demônio, feitiço daquela veia, disse Quitéria com a voz trêmula.

Fabiano soltou uma sonora gargalhada e acrescentou:

_Nem demônio nem feitiço, coitado do bicho, olha aqui! Disse chamando a mulher, essa se aproximou com cautela e um tanto enojada,

Fabiano apontava para as costas do bicho onde duas brasas caídas do velho fogão a lenha ainda queimavam enfiadas na pele do animal. Quitéria fez um muxoxo.

_ acho que o condenado só queria um chute teu, bom, já temos carne pra amanhã! Disse por fim Fabiano recolhendo o cadáver e levando-o para a cozinha para trata-lo sobre os protestos das filhas e da mulher.

_ O que é do homem o bicho num come! conclui cortando o que sobrou da cabeça de Satinha.

O domingo amanheceu lindo, com um sol brilhante e quente. O clima na casa dos Ferraz

era um misto de alegria, decepção e tristeza. Tristeza das meninas por verem seu amado Satinha morto e logo mais comido pelo pai no almoço. Elas mesmas não comeriam o bicho, tampouco a mãe comeria, essa última acordara desconfiada e preocupada, talvez um pouco decepcionada por ver suas idéias sobre o gato não vingarem.

Fabiano, por sua vez, já estava na cozinha tratando de aprontar o gato para o almoço, não diria que estava feliz, mas com certeza, triste não estava. Teria enfim carne para o almoço de domingo.

Veio o almoço e como era de se esperar apenas Fabiano comeu a carne do gato, não só no almoço, fez também um lanche a tarde; pedacinhos fritos da carne de gato regado com boas doses de cachaça ruim. A noite jantou o que sobrara.

Na segunda feira Quitéria acordou bem disposta, com uma vontade de namorar, vontade que dava sempre no casal nas segundas feira de manhã. Fabiano gostava de pensar que era por causa da carne de domingo, a iguaria teria propriedades afrodisíacas.... Não obstante, naquela manhã não se manifestava tal desejo. Quitéria procurou pelo homem, mas ao toca-lo, sentiu-o frio, imóvel... morto.

_ Maldição!? gritou.

Os médicos não chegaram a uma conclusão, e entre termos e jargões médicos acabaram optando por septicemia como "causa mortis". Quitéria, contudo, continuava insistindo em sua teoria sobre o gato e sua procedência.

E nunca mais se comeu carne de gato na velha casa dos Ferraz.

Fim!

Amil Lima
Enviado por Amil Lima em 17/08/2022
Reeditado em 01/09/2022
Código do texto: T7584101
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