Dê lembranças à rua Bold

No banco traseiro do táxi, Riley Davies consultou o relógio pela quinta vez. O trânsito à frente estava completamente parado.

- O que houve? - Perguntou ao motorista.

- Provavelmente, um acidente de trânsito. Não dá pra ver daqui - replicou o taxista, esticando a cabeça para fora do veículo.

- Desse jeito, vou chegar atrasado. Estamos muito longe da rua Bold?

- Não, é a próxima transversal.

- Então, pare o taxímetro. Vou descer aqui mesmo.

Pagou, pegou a pasta de documentos e saiu do veículo. O dia estava ensolarado em Liverpool, e ele misturou-se à multidão que transitava pela calçada, indo em direção ao cruzamento. Ao dobrar a esquina da rua Bold, percebeu algo estranho: o trânsito estava fluindo normalmente. Olhou para trás, da direção donde viera, e tampouco viu qualquer retenção.

A estranheza só fez aumentar: os veículos em circulação eram todos modelos antigos, das décadas de 1960 e 1950, pelo que pôde avaliar. E as pessoas ao seu redor também usavam roupas e penteados antiquados; havia até mesmo algumas garotas de minissaia!

Davies apanhou no bolso do paletó do terno o cartão do advogado que viera consultar, e conferiu o endereço. O número ficava algumas dezenas de metros adiante, e ele pôs-se em marcha, com uma sensação de opressão a lhe apertar o peito.

Ao chegar em frente ao número indicado no cartão, descobriu-se em frente a um prédio antigo, de quatro andares. Havia uma porta que conduzia aos pavimentos superiores, mas ela estava solidamente trancada. No térreo, havia uma sapataria e ele decidiu entrar e pedir informações. Um atendente veio em sua direção.

- Bom dia, senhor!

- Bom dia - replicou Davies, desapertando o nó da gravata. - Estou procurando o escritório de Liam Duncan, advogado. No cartão que ele me deu, consta o segundo andar deste prédio, mas não toquei a campainha por receio de estar no lugar errado. Aliás, tudo aqui está me parecendo... errado.

O atendente examinou o cartão, com curiosidade.

- Nunca vi um número de telefone com tantos dígitos - declarou. - E desconheço que algum advogado resida neste prédio. Mas por que não liga para ele e confirma o endereço?

Davies respirou fundo, espantando-se por não ter pensado em algo tão óbvio.

- Bem... sim, claro.

E puxou o celular do bolso. O atendente o encarou, surpreso.

- O que é isso?

- Meu celular - replicou Davies, franzindo a testa. E só então percebeu que estava sem sinal.

- Acho que vou ter que ir lá para a rua, ver se a recepção é melhor - desculpou-se. E saiu da loja.

Ao cruzar a porta, sentiu a visão turva; estaria tendo um ataque cardíaco? Mas o mal-estar passou rapidamente, e quando sua visão entrou em foco, viu que havia voltado ao tempo presente em Liverpool. Pela rua, carros e pessoas do início do século XXI. Suspirou aliviado.

E ao consultar o celular, viu que o sinal havia voltado. Ligou para o advogado.

- Dr. Duncan... estou na Bold, procurando o seu escritório. Fica em cima da sapataria?

Do outro lado da linha, o advogado riu.

- Sapataria? Havia uma no térreo, fechou faz uns 40 anos; agora, funciona uma delicatesse!

Davies virou-se vagarosamente e encarou a fachada da loja da qual acabara de sair.

Era uma delicatesse.

- [18-03-2021]