PACTO MACABRO
Dolores era a terceira filha, caçula da família do Sr. Etelvino e Dona Salete. Mariana era a filha mais velha, entre elas o Genaro.
Etelvino, quando se casou com Dona Salete, deixou a sede da fazenda, com os alqueires de terras que restaram depois de tantas divisões, aos cuidados de seu irmão Francisco e assumiu a propriedade herdada pela esposa.
Francisco não formou família. Sozinho, ajudado pelos poucos moradores que se aventuravam em residir nas também poucas casinhas restantes daquela que em outros tempos foi uma grande colônia, tomava a duras penas, conta da propriedade.
A dureza não se relacionava ao trabalho, pois havia na propriedade alguma coisa, que ele mesmo se negava a querer explicação, que a fazia ser produtiva muito além do comum. O gado era sempre vistoso, com muito boa reprodução. O cafezal bem cuidado e produtivo. A dureza não era financeira.
Francisco penava para suportar os misteriosos sons e silêncios daquele casarão, não sabia diferenciar qual deles ele preferia. Os moradores fugiam de lá, não por alguma precariedade, tinham de tudo, mas pelas presenças sentidas e não vistas, que os acompanhavam nos seus trabalhos e dentro de suas casas.
O pai dos irmãos Etelvino e Francisco, quando vivo, manteve aquela propriedade em ordem. Não era tão lucrativa, mas gerava algum lucro que permitia a subsistência da família.
Quando ele morreu, a viúva e filhos não tiveram sabedoria administrativa para manter a propriedade, tanto na conservação quanto na produtividade. A deterioração foi acontecendo ao longo do tempo, trazendo a penúria financeira na família. Nessas condições aconteceu o falecimento da viúva Dona Aurora.
Naquela dura labuta para sobreviverem, chegou ao conhecimento de Etelvino, a existência de um certo homem em um certo lugar, que poderia fazer uns trabalhos para melhorar a vida deles.
Saiu Etelvino para procurar o sujeito que faria os tais trabalhos que disseram a ele. Do momento em que tomou essa decisão, alguma coisa mudou, passou a ser direcionado, bastava caminhar, decidir o rumo não era mais do seu controle. Sem noção do rumo em que seguia, Etelvino chegou na morada do dito homem.
A casa era um tanto estranha, a entrada era um corredor comprido que terminava entrando em uma sala, com batente mas sem a porta. O batente de madeira era todo esculpido com figuras de pessoas sem fisionomias e animais abatidos, em cima estava escrito: Umbral dos tempos.
Naquela sala não havia ninguém, Etelvino, que já no caminho sentira um tanto de medo, pois já não tinha controle de si mesmo, ali naquela sala sentiu mais medo ainda. Foi sendo levado para outro recinto, aquela força o conduzia. Era uma grande sala, não havia nenhum outro móvel além daquela mesa e aquela cadeira, bem centralizados.
Sentado na cadeira e com os braços apoiados na mesa, ele ficou aguardando que viesse alguém para lhe atender. Sentiu um sono incontrolável, curvado para a frente, apoiou sua cabeça sobre os braços em cima da mesa e dormiu. Sentiu como que em um sonho acordado, mas dormindo, duas mãos tocarem seus ombros. Uma voz masculina pronunciou uma série de palavras estranhas para ele, depois começou a orientá-lo de como deveriam ser usados aqueles objetos que ele iria levar. Disse ainda para Etelvino, que ele iria ficar muito rico, que a propriedade deles deveria ser cuidada por seu irmão Francisco, até chegar a hora certa dele, Francisco, morrer; que Etelvino iria se casar logo e deveria deixar o lugar e não voltar mais pra lá. Que na hora certa, Etelvino seria orientado de como e por quem a propriedade seria administrada, após a morte de seu irmão. Que seu irmão não deveria tomar conhecimento de nada e que ele naturalmente seria impedido de se casar, para que não deixasse herdeiros. Finalmente disse: Etelvino, você vai prometer aqui agora, selando com sangue do seu pulso esquerdo, desenhando na mesa o seu coração e dentro dele um X que é a minha marca e assim vai ter uma enormidade de riquezas, ou vai-te embora e terminará os seus dias na vida miserável que tem levado.
Etelvino, que só pensava em sair da miséria, aceitou. Estendeu seu braço esquerdo sobre a mesa e com a lâmina que ali se encontrava, como quem dominado por uma força desconhecida, pegou a lâmina e fez um corte em x no seu pulso, com o sangue derramado sobre a mesa ele desenhou um coração e dentro dele um X que dividia o coração em quatro partes. Com a ponta do dedo indicador da mão direita, fez o mesmo desenho do lado esquerdo do seu peito nu.
Saindo para ir embora, encontrou lá fora uma bela charrete, com arreamentos impecáveis, dentro dela os objetos que o tal homem lhe disse que iria levar. Para puxar a charrete, uma égua baia muito bonita e bem zelada, ao lado atado por um cabresto, um potro negro reluzente. Vai te, tudo te pertence, ouviu ele.
Em casa, chamou seu irmão Francisco, disse a ele que não interferisse nas coisas que ele Etelvino iria fazer, e que nem desmanchasse ou mudasse qualquer coisa de lugar, que revelaria a razão de tudo aquilo no momento conveniente.
Etelvino pegou as ferramentas que precisava e do lado de dentro no lado direito do mourão batente da porteira, começou a cavar um buraco. Pegou aquele vaso de bronze, lacrado, cujo conteúdo ele ignorava, conforme tinha sido instruído, enterrou-o de boca para baixo, deixando aparente o fundo, de modo que quem fosse abrir aquela porteira para entrar na propriedade, obrigatoriamente veria aquele fundo de vaso. Com pregos, fixou nos batentes das portas de entrada e dos fundos, aquelas tabuletas com escritos em linguagem desconhecida.
Francisco até quis saber melhor sobre tudo aquilo, mas foi convencido pelo irmão dar tempo ao tempo.
Diante da melhoria financeira e das facilidades na condução da lida diária, se acomodou e nem quis questionar mais do irmão, no entanto sofria com os acontecimentos ou não acontecimentos naquele casarão e na propriedade toda.
Longos silêncios absolutos que o deixava ansioso e barulhos que lhe causava pavor. Dentro do casarão, parece que para cumprir uma rotina, ele não via, mas ouvia como se existisse ali trabalhando, pessoas fazendo a limpeza, no arranjo de camas, como que ali fosse a moradia de muitas pessoas, o barulho de lida na cozinha, como se estivessem preparando refeições para muita gente.
Mesmo sendo só ele e seu irmão residindo ali, até seu irmão se casar e ir embora, a casa aparecia sempre em ordem, como se de fato alguma equipe tivesse zelando do casarão inteiro e estivesse pronto para o conforto e repouso de muitos hospedes.
No trabalho com o gado e a lida no cafezal também acontecia igual, sempre o ruído das ferramentas, os movimentos de pessoas não vistas mas percebidas.
Depois que Etelvino se casou e foi morar em outro lugar, com o passar dos anos Francisco ficou mais sensível àqueles acontecimentos. Sentiu que haviam se intensificado e o questionamento que achava conveniente não fazer, já não estava mais sendo possível. A vida financeira corria muito bem, mas o seu sossego ficava cada dia mais afetado. Num certo dia decidiu que iria arrancar aquelas tabuletas dos portais e desenterrar o vaso de bronze. Foi até o porão e quando levou a mão para pegar uma picareta que estava encostada em um canto, sentiu aquele impacto na mão direita. Uma Urutu Cruzeiro que se encontrava ali naquele canto escuro lhe picou a mão. Avisado, quando chegou, Etelvino já o encontrou morto.
Depois do sepultamento, ao chegar em casa, Etelvino recebeu a visita de um Senhor acompanhado de seu filho, disse a Etelvino que estava lá para pedir que Dolores fosse concedida em casamento a seu filho, tendo completado que a resposta Etelvino já sabia muito bem que seria o sim. Dolores, que contava dezesseis anos, toda entusiasmada disse ao pai que queria sim se casar com o rapaz e que iriam residir no casarão, que agora estava sem morador.
Dona Salete não concordou com aquele casamento mas não tinha autoridade para impedi-lo, Mariana e Genaro ficaram do lado de Dona Salete.
Realizado o casamento, e os noivos já em sua morada, Dona Salete incendiou sua própria casa, começando pelo próprio quarto, lugar onde Etelvino guardava a maior parte de sua riqueza, Dona Salete se deixou queimar junto com tudo. Mariana e Genaro se foram de lá sem que se conhecesse o destino que tomaram.
O coração de Etelvino, que antes era dividido em quatro partes, passou a pertencer integralmente a quem ele o entregou.
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