A Suicida

Deixou o apartamento sem se preocupar se as janelas estavam fechadas. Não se despediu do cão que dormia, confortavelmente, na lavanderia. Ou, simplesmente, não quis fazê-lo. Despedidas são sempre tão tristes... Também não se importou com a madrugada fria que começava, nem pensou no resfriado que atravessava, e que poderia agravar-se se insistisse em enfrentar a neblina úmida da noite.

Poucas quadras a separavam da velha ponte. Depois, seriam aproximadamente dez metros até atingir a superfície fria da água, e mais cinco para conhecer o fundo do rio que, tantas vezes, fora cenário de cartões postais da pequena cidade. O vento fustigava o rosto alvo, a pele fina e frágil, assim como sua, igualmente frágil, alma.

- Se vai pular, pule logo, não pense muito, ou desiste, e amanhã vai continuar com a mesma vida de merda de sempre.

A jovem tem um sobressalto, surpreendida pela voz grave que vinha da outra extremidade da ponte. Como não percebera a presença daquele homem ali? E como ele sabia das suas intenções?

- Pensa que sabe da minha vida?

O homem não responde de imediato. Aproxima-se lentamente. Veste-se com elegância, todo de preto. Sapatos, terno e gravata, além de um belo sobretudo. Fuma um cigarro e usa chapéu. Ela pensa que, em toda sua vida, com exceção de filmes e fotos antigas, jamais conhecera um homem que usasse chapéu.

-Sei mais do que você imagina. Conheço sua dor. Conheço suas intenções. Você quer dar fim a um sofrimento intenso, porém pensa que só intensificará o tormento. Você vive um dilema, eu sei... Se pular, terá que prestar contas disso; Se não o fizer, amanhã terá que olhar para os mesmos rostos de sempre, que lhe diminuem, que lhe desprezam. Conheço, sim, suas angústias.

Quem era aquele homem que tragava, tranquilamente, um cigarro, enquanto invadia a intimidade de sua alma? Parecia alguém que a observava, havia tempos... Alguém que testemunhava cada minuto de tormento sob o chuveiro, ou fingindo normalidade frente às vicissitudes que enfrentava.

- Então? Não tenho a noite toda... Se quer meu conselho, pule logo, sem pensar muito. Esse mundo é uma dor que você já não consegue suportar. Por que pensar? Por que desistir?

Talvez a maioria dos suicidas, quando na iminência de realizar o ato, esperem, na verdade, que alguém interfira tentando evitar ... Até onde a memória lhe permitia chegar, ela via sombras em seu apartamento. Além de complicadas relações pessoais e a perda de um ente querido, somados à solidão, tinha que conviver com vultos que pareciam velar seu sono, observando-a em silêncio sepulcral.

- Acredito que você não vá pular, ou já o teria feito. – Diz o estranho, já tão próximo que era possível sentir o hálito de nicotina.

Ele era certeiro com as palavras. De fato, pelo menos momentaneamente, ela se põe a pensar.

- Sabe... Tenho vindo bastante aqui. Nos últimos tempos tem crescido o número de pessoas que dão cabo das próprias vidas. Eu não interfiro, como você pode bem comprovar. Se quiser fazer, que faça...

- Quem você é? Um anjo? A morte? E... Quem diabos se veste assim hoje em dia?

A voz estava trêmula, enquanto o vento frio castigava a pele alva e tornava ainda mais gelado o concreto dos pilares da ponte. Não se podia ver ninguém até onde a vista alcançasse. O estranho traga o cigarro e solta uma baforada que lhe atinge em cheio o rosto.

- Há dois meses, você não deve lembrar, ou talvez nem tenha sabido, ou mesmo se importado, uma jovem, parecida com você, aliás, se jogou daqui... Lembro bem do impacto do corpo com a água fria. Esse rio é muito bonito, realmente, e suas águas relaxantes, mas somente de dia. À noite, a escuridão de tudo toma conta, e esse rio se torna o fim, ou potencializa, o sofrimento de muita gente. Você quer mesmo conhecê-lo à noite?

O estranho tem um olhar penetrante, enigmático. Ela pensa ser melhor ir embora.

- Nos vemos por aí. – Diz retirando-se, furtiva.

Enquanto se afasta, colocando o capuz do moletom, observa de lado que o estranho permanece parado, mirando sua retirada. Ele, por fim, faz um ágil movimento com o dedo, arremessando a ponta do cigarro em direção ao rio. A brasa desenha uma linha cor de cobre no ar e, por fim, em contato com a água fria, extingue-se por completo.

Novamente em seu apartamento, tranca a porta, ofegante, e vai à lavanderia. Olavo, o pequeno cão, dorme, na mesma posição de quando saíra. Vai à cozinha e liga a chaleira elétrica. Em instantes, o aroma de café fresco toma conta do pequeno apartamento. Decide que irá para a cama, após o café, sem sequer tirar a roupa do corpo, provavelmente sem mesmo escovar os dentes. Senta-se no sofá, mantendo o recinto na penumbra.

Olha para as sombras que a observam, e sorri.