O Lado Selvagem
Aileen pousou cuidadosamente a xícara no pires e levou a mão ao peito.
- A senhora esté me dizendo que eu fui essa Stefanie Hill em outra encarnação?
A anfitriã lançou-lhe um olhar de compaixão.
- Não há isso de "reencarnação", o termo mais correto seria "renascimento". Mas, de fato, na existência anterior você foi Stefanie Hill; eu deveria desconfiar que o modo como sua missão terminou, parecia indicar que não estava satisfeita com o curso dos acontecimentos e que não pretendia voltar. Provavelmente, você mesma acabará descobrindo o que a fez mudar de ideia.
Aileen olhou ao redor, confusa. A sala de estar, decorada com móveis escuros e pesados, fotografias em preto e branco nas paredes, parecia não ter sofrido alterações nos últimos cinquenta ou sessenta anos. Ela teria alguma lembrança se já houvesse estado ali antes?
- Renascimento... não sei se entendo. Eu ainda sou a pessoa que fui um dia?
- Você é Aileen Parry, da mesma forma que eu sou Louise Goodheart - explicou pacientemente a anfitriã. - Nós não reencarnamos, não é como se fosse uma continuidade de uma existência anterior. Mas há um "registro" do que você fez e viveu anteriormente, até mesmo de suas experiências, predileções e habilidades; esse registro é transportado de uma existência para a outra, como a água que pode ser mudada de um vaso para o outro e, mesmo mudando de forma, continua a ser a mesma água. Mas a água não é a sua "alma", é apenas um repositório.
- Esse "registro" seria então como um banco de dados que eu posso acessar?
- A analogia não é perfeita, já que nenhum banco de dados existente lhe permitiria absorver a capacidade cognitiva de uma outra pessoa. Você, por exemplo, sabe atirar? Dirigir?
- Não! - Assustou-se Aileen. - Tenho horror a armas de fogo... e não tirei carteira de motorista.
- Pois saiba que Stefanie atirava muito bem e poderia dirigir um carro de fuga, se quisesse se dedicar ao crime - riu Louise Goodheart. - Felizmente, ela estava do nosso lado.
Aileen hesitou antes de formular a pergunta seguinte:
- E qual é... o nosso lado?
Louise abriu um sorriso.
- Já estava na hora de perguntar, não é mesmo? Bom, nós somos um grupo que se dedica a evitar que o pior aconteça com o mundo... através de ações pontuais coordenadas. Agimos numa zona cinzenta na qual governos e instituições formais devem se abster de entrar... e se o fizerem, quase sempre não será em prol do bem comum. Devem ser impedidos, então.
E, para que não restasse dúvida:
- Por todos os meios possíveis, inclusive violentos.
Aileen arregalou os olhos para a velhinha, que parecia estar discutindo ponto de cruz com uma neta.
- Eu... quero dizer, Stefanie Hill... matou alguém na existência anterior?
Louise balançou afirmativamente a cabeça.
- Sim. Mais de um "alguém", de fato; e nem todos mereciam morrer, essa é a verdade. Mas que esteja aqui hoje, é prova de que seus atos realmente contribuíram para tornar o mundo um lugar melhor para a grande maioria. E antes que aceite receber o seu legado, o seu karma, deve perguntar-se se está pronta para conhecê-lo. Lembre-se de que não foi você quem matou todas aquelas pessoas, mas que deve estar pronta para fazê-lo novamente.
Aileen engoliu em seco; ela não passava de uma auxiliar de escritório! Não conseguia imaginar-se como algum tipo de agente secreto ou terrorista, explodindo prédios e assassinando pessoas a sangue frio. E todavia... não podia negar que aquela perspectiva de ser algo bem mais perigoso do que a sua aparência miúda poderia sugerir, a excitava. Era como ter contato com um lado sombrio e selvagem da própria personalidade. Ergueu os olhos para a anfitriã.
- E se eu quiser ter acesso ao meu registro da vida passada... como faço?
- Interessada? - Louise despejou mais chá na própria xícara. - Eu vou lhe dar alguns dias para pensar; não deve voltar aqui sem estar consciente de que se trata de um caminho sem volta. Uma vez aberto o registro, você terá acesso às memórias e ao conhecimento de Stefanie... e através dela, de todas as suas existências anteriores.
Diante do olhar surpreso de Aileen, complementou:
- Você não achou que a Stefanie foi a sua primeira experiência neste mundo, pois não?
[Continua]
- [15-07-2020]