DOIS IRMÃOS, UM BARCO E O MAR

O barco singrava por entre as ondas que ora despertas, ora calmas, fazia um constante dançar musical, que o marulho das águas levava a embarcação a bailar juntamente.

O porto, lugar íngreme e distante, de tão longe da vista, tornava-se próximo das falas e divagações de Daniel e Cristian, irmãos que se arriscaram a roubar um pequeno barco feito jangada e seguir rumo aos caminhos ainda desconhecidos pelos andarilhos da selva de pedra. Eles, que sonhavam com as ilhas nunca antes visitadas, ansiavam por encontrar um lugar chamado NOVA TERRA. Era denominada assim pela força imaginativa e semântica que tais anseios geravam.

Além do infinito tapete de água, Daniel e Cristian viam também as espumas do imenso mar, como se convulsionasse em cada sacolejo que fizesse na frágil embarcação. Os dois, sem luneta ou bússola, apenas queriam sentir a liberdade, essa que abraça com o vento e fala através das ondas, se fazia presente em todos os aspectos.

Um irmão, olhando firme para as águas, balbuciava palavras que somente seu íntimo e Deus decifrariam. Quem sabe Cristian não entenda o sonho do irmão ou não tenha a mesma aspiração de chegar do outro lado como ele e, caso o destino ousasse blefar, corresse o perigo de abandonar a viagem deixando-o sozinho.

Já Cristian, ao mirar para as ondas, relevos aquáticos musicais, cria que o irmão poderia desistir da empreitada em alto mar e no meio do caminho tivesse um surto de marinheiro perdido, a ponto de lançar-se ao mar num paroxismo de desespero e angústia.

Ambos iam calados, acompanhados somente pelas ondas que embalava o pequeno barco como um bebê no colo da mãe.

— Anseio pisar nas terras novas. Sentir o ar nunca respirado avistando as ressacas marítimas diante do inabitável e inacessível. Serei o dono de um mundo só meu onde Deus e eu, como Verbo próprio, reinaremos únicos.

Esse eram os pensamentos de Cristian.

Quanto a Daniel, não cogitava diferente:

— Eu desbravarei o colossal mar, removerei do oculto os tesouros que Deus não revelou a Ciro, farei o império dos sonhos tornar-se real e construirei uma Babel tão minha quanto os planos de Napoleão Bonaparte.

Todavia, uma coisa os unia: assumiram um compromisso de entrarem juntos e chegarem ao outro lado.

Os olhares gritavam coisas que as palavras não podem descrever, contudo, ainda sim, preservavam a inocência e o afeto pelo outro.

Irmãos que em nada se pareciam, mas que em tudo combinavam, seja na ambição ou no pecado, mapeavam internamente por qual direção seguir.

No meio daquele azul, estavam dois que respiravam ansiedades.

De repente, uma chuva se iniciou. Todavia como se fosse uma nuvem passageira, ambos eram atingidos pelo choro do céu diante da desunião dos que nasceram da mesma mãe. E unicamente ambos, uma vez que no mar somente o seco que se molha.

A embarcação, num instante, estagnou-se e não se movia mais, nem para a frente, ou para trás.

Cristian acenou para Daniel, apontando para um movimento estanho que borbulhava as ondas. Ambos desarmados, foram tomados de profundo pavor. O sonho de chegar as novas terras poderia ser desfeito, pois sabiam que na busca do desconhecido, o próprio desconhecido poderia virar-se contra eles, de modo a não ser incomodado.

Entretanto, ambos, num abraço mudo de medo, fitaram as águas que começaram a rugir em meio a chuva. Sem teto, sem proteção, encharcavam-se no gélido banhar das ondas que caíam em gotas e das que invadiam o barco como se o próprio mar quisesse subir a bordo para fazer parte da empreitada, ou avisa-los de um perigo maior.

Foi então que começaram a emergir das ondas objetos como carros, facas, espadas, até mesmo um enorme baú quadrado. Após isso, o mar vomitou seres de diversas classes e estados de inanição estática. Aves, peixes, tubarões, mamíferos como elefantes, leões, répteis, anfíbios e até seres humanos, cadáveres inertes boiaram para fora do fundo do mar, levando ambos irmãos a gritarem.

Naquela solidão, nem Deus ou os deuses poderiam os ouvir. Tinham apenas um e outro.

No entanto, sentimentos maquiavélicos brotaram no coração de ambos, pensando que isso poderia significar que somente um deles deveria descobrir os segredos do outro lado do mar. Parece que ambos sentiram imediatamente o que o outro desejava. Irmãos com cordão umbilical cortado, e afetos ameaçados pelos próprios sonhos egoístas e utópicos.

Uma guerra de braçadas para mover-se dali iniciou. Daniel e Cristian tentavam remover o barco dali, mas era inútil. Estavam como se parados no tempo, enquanto a chuva caía, corpos e objetos continuavam a boiar das águas. O pequeno barco recusava a se mover.

Porém, Daniel avançou sobre Cristian com golpes certeiros, o que Cristian revidou, tentando joga-lo nas águas. As espumas marítimas tornaram-se crescentes e cada vez mais a chuva ganhava proporções devastadoras, fato esse que fez o barco encher e afundar levemente.

Os irmãos continuavam um contra o outro. Cada um segurava o pescoço do outro, na intenção de vencer pelo sufocamento e lançar o adversário nascido do mesmo ventre no mar, seja como uma oferta aos deuses do oceano, ou apenas desejo de se livrar de quem decidiu iniciar jornada com o outro.

Só então, que ambos ouviram um enorme ruído, como se uma enorme boca monstruosa abrisse. A chuva parou imediatamente. As águas agitaram-se como que por reverência ao ser que se aproximava.

Os irmãos pararam de brigar e se recolheram no fundo da embarcação. Foi aí que o inominável ser surgiu.

Num formato de mulher, tendo uma voz de sereia e irada como um monstro infernal, ergueu-se soberanamente uma mão poderosa removendo ambos os frágeis e ambiciosos irmãos do barco. Carregados, cada um por uma mão, começaram a ser envolvidos por algo que sentiam ser algas pestilentas a envolverem seus corpos.

Ambos fecharam os olhos.

Ao abrirem, ambos estavam deitados olhando para uma claridade enorme, como se fosse o sol. O enorme ser se aproximou deles, levando Daniel e Cristian a deixarem desvanecer o sonho da nova terra.

Porém, o alívio dos dois, irmãos que quase deram cabo da vida um do outro, agora uniam-se aliviados quando ouviram a voz do ser gritar:

- EDISON, VOCÊ DEIXOU OS DOIS MENINOS NA BANHEIRA SOZINHO COM OS BRINQUEDOS? VOCÊ É DOIDO? SABE QUE OS DOIS SÓ SABEM BRIGAR!

Após ouvirem, ambos irmãos, um de dois e outro de três anos, riam enrolados, cada um numa toalha azul, com desenhos de ilhas e barquinhos velejando no mar.

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Texto postado para o desafio dos meus amigos recantistas, poetas, contistas e etc... BATISTA ANDRADE e CRISTIAN CANTO.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 27/05/2020
Reeditado em 27/05/2020
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