A sentença final
 
     O telefone tocava sem parar. Naquela noite, o delegado de plantão estava ocupado, resolvendo chatices burocráticas pendentes com um de seus homens, quando percebeu o insistente toque vindo da sua sala. De forma meio preguiçosa atendeu ao chamado, imaginando ser apenas mais uma briga de bêbados em algum boteco da pequena cidadezinha, para variar. Mas o que ouviu do outro lado da linha era uma voz feminina, angustiada e trêmula, revelando-lhe algo que o fez empalidecer, e apesar dos muitos anos de carreira, seria a primeira vez que ele se depararia com um caso como aquele. Entre choros e soluços do outro lado da linha, a denúncia anônima lhe revelara o local onde poderia estar o corpo de uma garota desaparecida, e também a identidade de quem a teria matado.
      No dia seguinte, a notícia do crime bárbaro se espalhou rapidamente — primeiro de boca em boca, depois pelas ondas da rádio comunitária — deixando a todos perplexos diante de tão inesperado e terrível acontecimento: um homem, que todos imaginavam acima de qualquer suspeita, sequestrou, violentou e matou uma pobre garotinha de apenas 12 anos. A investigação policial auxiliada pela denúncia da noite anterior em pouco tempo descobriu o paradeiro do suspeito, bem como o cativeiro onde ele manteve sua pequena refém.
     Os policiais, ao chegarem no local indicado, viram que se tratava de um pequeno quartinho nos fundos de um terreno baldio. O lugar era escuro, úmido e insalubre, exalando um cheiro muito forte. Espalhadas pelo chão, pedaços de roupa rasgada e pequenas manchas avermelhadas, confirmadas depois serem sangue humano. Mas nenhum sinal do corpo da menina desaparecida. Porém, ao saírem do cativeiro, um dos policiais reparou em um pequeno monte de terra próximo à uma cerca. Ao escavarem, encontraram ali a pequena vítima dessa atrocidade, seminua e com várias marcas de violência pelo pequeno corpo. Um deles não conteve a emoção e retirou-se para o lado, enxugando as lágrimas com a manga da farda.
     Logo em seguida, um outro grupo de policiais foi atrás do suspeito, e acabaram por encontrá-lo em sua casa, logo após ter chegado de uma corrida matinal. Apesar de ser um homem já de meia-idade, mostrava estar em bom condicionamento físico, tendo inclusive um porte atlético. Ao ser surpreendido, o suspeito não ofereceu resistência, e logo se entregou aos policiais. Descobriu-se depois que se tratava de um cidadão comum, funcionário público, sem passagens pela polícia. Em suma: um homem acima de quaisquer suspeitas. Depois de algemado, foram lidos os seus direitos e, a seguir, foi encaminhado para a carceragem da delegacia.
       A família da garotinha — eram apenas o pai, a mãe, e um irmão mais velho — não teve estrutura para lidar com a terrível descoberta. Sua mãe veio a desmaiar quando soube que tinham encontrado o corpo de sua filha, demorando um bom tempo para aceitar o ocorrido. Mulher devota, tinha rezado a todos os santos para que a menina fosse encontrada. Mas agora sentia-se abandonada pelos céus e por vários dias ela não comeu, permanecendo em seu quarto sem vontade sequer de levantar da cama. Assim como ela, o irmão mais velho não se conformava com a morte da garota, e jurou vingança contra o assassino de sua irmãzinha: Ana, esse era o seu nome, o mesmo de sua falecida avó.
          Passados alguns dias, foi marcada a data para o depoimento do criminoso no fórum, diante do júri. E somente nesse dia a mãe teve coragem de sair da cama para ir acompanhar o desfecho do caso, e encarar o assassino de frente.

 
* * *

          Durantes dias, não se falou de outra coisa na cidade. A morte da menina era o tema predominante nas conversas de bar, nos mercadinhos, na pracinha central, nas calçadas ao fim de tarde. Na escola onde ela estudava foi decretado luto. Durante o velório, seus colegas e professores levaram vários cartazes com fotos. Muitos choravam com a cabeça sobre o pequeno caixão, suas lágrimas embaçando o vidro que deixava à mostra o rosto da jovem falecida. No chão ao redor, coroas de flores eram deixadas pelos amigos e conhecidos. Uma das colegas da menina, chamada Joana, emocionou a todos ao ler uma pequena mensagem de sua autoria em homenagem à amiga, não conseguindo conter as lágrimas:
— “Ana, você foi minha melhor amiga na escola e fora dela também. Lembro da gente brincando aqui na pracinha um dia desses; de quando eu ia na sua casa; das nossas conversas na aula da tia Conceição... Queria muito que você tivesse aqui agora com a gente, mas sei que... que você tá num lugar muito melhor agora. A gente vai sentir muita saudade. De sua amiga, Joana.”
          O cortejo fúnebre foi uma coisa nunca antes vista. Centenas de pessoas, de todas as idades, acompanharam a travessia até o cemitério, onde uma missa foi celebrada em intenção da alma da pequena. Já era noite quando o caixão foi enfim sepultado e com ele também sonhos e esperanças de uma vida ceifada de forma tão breve e cruel.

 
* * *

          No dia marcado para o depoimento do prisioneiro, uma multidão exaltada apareceu para acompanhar o desfecho daquela trágica história. Quando a viatura chegou ao fórum, e o criminoso saiu escoltado por dois policiais, os gritos e xingamentos do povo indignado logo se fizeram ouvir: “Assassino!”; “Maldito, você merece a morte!”; “Vai pro inferno seu nojento!”, e outros tantos inomináveis palavrões, que raramente se ouvia da boca daquela gente simples. A família da vítima já estava presente no local.
     Durante o depoimento perante o júri, o criminoso confessou todos os detalhes de como encontrou e sequestrou Ana certo dia na saída da escola, o que fez com ela no seu cativeiro, e como finalmente tirou sua vida depois de alguns dias (detalhes esses que não comentarei aqui, para não chocar os corações mais sensíveis). E depois de tudo confessar perante o tribunal, não demonstrou arrependimento, permanecendo com a cabeça baixa, mas tinha a voz calma e perturbadoramente serena.
       As reações dos jurados e do público variavam entre sentimentos de revolta, ódio, tristeza profunda e comoção: algumas das mulheres ali presentes passaram mal ao ouvir a confissão; outros taparam os ouvidos para não ter de ouvir uma coisa tão hedionda. A mãe de Ana — com o rosto coberto e soluçando muito — não conseguia entender porque tudo aquilo estava acontecendo com eles, uma família tão humilde, sentimento também compartilhado pelo pai e pelo irmão. Era nítido no rosto daquelas pessoas a indignação, a revolta e a dor de sofrer uma perda dessas. E por mais que eu relate essas reações nestas poucas linhas, está além das palavras.
        Depois de concluído o processo, foi lida a sentença pelo juiz: 20 anos de reclusão. Após a martelada final do Meritíssimo, os policiais o retiraram da sala e o encaminharam para a cela solitária da prisão. Nesse instante — revoltado e totalmente fora de si — o irmãos mais velho partiu para cima do assassino, munido de uma pequena faca de cozinha e conseguiu derrubá-lo. Fez-se um grande alvoroço, e uma pequena multidão formou-se ao redor dos dois homens que se debatiam no chão. O irmão ainda conseguiu ferir o braço do condenado, mas sua tentativa foi em vão, e foi logo contido pelo pai e por um policial, que tiveram grande trabalho para segurá-lo. Acredito que, se não o tivessem impedido a tempo, ele teria matado o assassino ali mesmo sem pensar duas vezes, cravando-lhe a faca no peito. Mas ainda muito transtornado e inconformado com o destino — no seu entendimento, ameno daquele homem — o irmão da menina assassinada proferiu uma sentença alternativa para o condenado:
— “Assassino desgraçado! A minha irmãzinha não merecia isso seu doente! Que o diabo lhe carregue pro inferno!”.
     Depois de acalmados os ânimos, o condenado foi enfim conduzido para o carro da polícia, ainda sangrando. Ao saírem do fórum, a multidão do lado de fora cercou o veículo, batendo no vidro da janela por onde se via o rosto do prisioneiro. Os policiais tiveram muita dificuldade para sair do meio da turba enfurecida.
      Ao finalmente chegarem na cadeia, o preso foi levado imediatamente para a solitária, isolado dos outros detentos, e lá ficou em silêncio, continuando sempre com a atitude de não falar nada, e a cabeça sempre baixa.

 
* * *

     Na manhã seguinte, quando os guardas levaram a sua refeição matinal, ao abrirem a cela, uma surpresa chocante: o assassino estava morto. Foi encontrado caído no chão, os olhos arregalados, a boca aberta escorrendo saliva, e uma horrível expressão de pavor estampada no rosto já frio. O laudo médico após a autópsia constatou um infarto agudo do miocárdio. Para os guardas da prisão e os médicos que viram seu corpo — a julgar pela expressão do rosto — ele tinha morrido, literalmente, de medo. Parece que alguma coisa o deixou tão aterrorizado que seu coração não resistiu.
  Realizou-se uma investigação. Os outros presos relataram em seus depoimentos que, durante a noite, ouviram-se gritos horripilantes vindos da cela do assassino da garotinha, além de batidas insistentes na porta como se ele estivesse, em desespero, tentando fugir dali. Ao levarem seu corpo sem vida para o necrotério, notaram que as pontas dos dedos estavam em carne-viva. A cela onde passou suas últimas horas foi minuciosamente examinada pela perícia e nada demais foi encontrado, a não ser por certos detalhes perturbadores: os arranhões na porta realmente indicavam uma tentativa de fuga desesperada, confirmando os testemunhos dos outros detentos; e impregnado no interior do pequeno recinto, havia um fedor muito forte de enxofre. A sentença final estava cumprida.
  P.S.: Até hoje aquela solitária permanece vazia, depois de alguns acontecimentos estranhos: detentos que enlouqueceram depois de terem passado apenas um dia em seu interior; outros simplesmente gritavam implorando para saírem, afirmando que tinham visto um ser horrível, negro, de olhos vermelhos e fedendo a enxofre aparecer diante deles durante a noite. Não é de se estranhar que o lugar tenha sido apelidado de “a solitária maldita”.

 
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José Lucas Brito Souza
Enviado por José Lucas Brito Souza em 26/05/2020
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