O lobsomem da quaresma
Depois do carnaval todos estavam cansados dos afazeres da lanchonete e se foram pra descansar na fazenda do tio. Esse era um homem sisudo e de responsabilidades advocatícias da região da alta paulista.
A fazenda era um lugar tranquilo, onde a plantação de abacaxi exuberante se estendia por espaço sem fim.
Durante a quarta feira de cinzas um silencio acabrunhado estava presente quando chegamos por lá.
Eu era ainda muito criança, mas nunca esqueci os detalhes daquela noite esquisita.
A enorme arvore do pau d'alho carregava o balanço onde disputávamos a tarde toda a vez de cada uma voar pelas alturas.
Minha mãe e tia preparavam o jantar
' O tio e meu pai andavam pelo pomar colhendo cajus e abacaxis para o suco do jantar.
Nós as crianças, nunca nos arriscávamos a perambular pelo pomar porque a divisa de fazenda lá no fundo, tinha um arame farpado onde se via o cemitério do lugar.
Logo a noite chegou e fomos resgatados para o banho acompanhado do jantar. O sono chegou rápido para meus primos e irmãos mas eu cheia de euforia, rolava na cama ainda quando os lampiões foram apagados. Só cochichos dos adultos tingiam o ar.
Não sei quanto tempo se foi e os cachorros começaram a latir com insistência de aviso perigoso.
Era noite de lua cheia e da janela de vidro do meu quarto eu via a grama verde do quintal brilhando lá fora.
A casa movimentou-se e escutei minha tia advertindo o tio:
__Melhor calçar os chinelos para sair Paulo.
__Não, só vou de mansinho pra dar um susto nesses moleques roubando abacaxis. Volto ja ja, va dormir.
Meu tio homem corajoso saiu de pijamas e sem chinelos. Pude vê-lo aproximar-se da tulha cheia de milho dos cavalos e encostar-se nela na espreita dos moleques. Os cachorros se acalmaram e deitaram-se aos seus pés.
Tudo era muito claro e a cantiga dos grilos levou-me afinal ao sono.
Adormeci!
Só acordei quando ouvi minha tia correndo pela sala de assoalho e aos gritos dizendo:
__Acode Santiago, estão matando o Paulo!
Meu pai tropeçou no tapete do quarto e num salto foi em direção da saída com minha tia no encalço, com um revolver na mão.
__Leva isso. Pode precisar pra defende-lo.
Gritos cheios de pavor vinham de fora. Meu tio uivava, gritava de forma nunca ouvida por mim e acho que por ninguém da casa naquela noite.
Quando saiam ele já voltava esbaforido e cheio de terra úmida grudada no pijama. Estava com os cabelos desgrenhados,
os olhos arregalados e tremulo.
Sentou-se na cadeira ajudado pela tia e minha mãe, enquanto meu pai saia para ver se avistava alguém la fora.
Mas..nem os cachorros latiam mais, era só silencio.
Todos rodearam meu tio que só conseguia balbuciar;
__Um cachorro...um cachorro ..um cachorro!
__ Mas por causa do cachorro você fez tamanho escândalo?? Tem dó,
pelo amor de Deus!
A indignação da minha tia era de doer.
__Mas não era nenhum cachorro dos nossos e nem um cachorro comum.
Ainda dentro daquela vibração de horror êle contou:
__Estava eu na companhia dos nossos dois cães procurando com os olhos algum malandro invadindo o pomar. De repente os cães sairam de mansinho indo esconder-se em suas casinhas e fiquei só por alguns minutos.
Já me preparava para entrar quando senti uma presença estranha muito perto do meu pescoço do lado esquerdo e virei instintivamente.
Foi ai vi aquela coisa estranha quase grudada em mim. .Era uma coisa em forma de cachorro com a boca aberta soltando um fétido bafo e mostrando dentes enormes como se quisesse me devorar.
O susto fez-me agredi-lo para me defender e ele agarrou-se em mim e cai no chão arrastado por êle de forma cruel. Porém êle não me mordeu e sim fui eu quem mordi uma das sua orelhas . Lutamos ...lutamos e de repente êle se foi!
Ninguém criticou ou questionou nada. Era um momento revestido de pura ansiedade embora fossem muitas as duvidas ou medos, sei lá.
Meu tio saiu tropego para o banheiro.
Eu cobri minha cabeça ouvindo agora a água do chuveiro banhando o tio e o tilintar do terço da minha tia no quarto. Acho que tinha receio no ar.
Quando o dia amanheceu veio o capataz pedir folga .
Queria ir numa vila distante . Meu tio questionou e êle cabisbaixo arrematou
_"'_Vamo busca ajuda seu dotô . Si Maria num melhorá nois vamo vorta pro norte. Minha mulhé amanheceu com a orelha rasgada de dá dó!!. Nunca me conta onde se machuca nas noites das quaresma.
Acho que ela mente arguma coisa pra mim. To ficando
intrigado. Vou precura ajuda, vou num benzedô que cunheço pra ver se me conta o porque desse mistero"'
Claro que meu tio compreendeu e fez questão de ajudá-lo a ir definitivamente.
Hoje reparto com vocês isso que marcou minha infância de forma real e misteriosa ao mesmo tempo.
E pergunto-lhes:
__Lobsomem existe??
Ravagnani S.C..
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