À sombra da mente
Foi num dia vinte e quatro de agosto qualquer de um dos anos finais do século passado. O padre da comunidade encontrou o professor no caminho da escola:
_ E por que só o senhor vai dar aula? E a outra professora?
_ Dia do Berto, padre. As pessoas não gostam de sair de casa, nem para conversar quanto mais para trabalhar, padre.
_ Mas todo dia é dia de santo! Se fosse por isso, ninguém trabalhava nunca!
_ Por essas bandas, padre, o Berto é ser tinhoso e seu dia é respeitado. É o dia de ele mijar nos açaizais para pretejar o fruto.
_ E os alunos? Vêm?
_ Poucos, padre. Mais os evangélicos...
_ Danação! Não tinha que ser assim. Todo dia é dia de santo! – saiu o padre a palavrear pelo caminho. “La fama. Il brasiliano è puttana! Tutti pigri. Sono tutti morbidi!” - Se me ficou algo da língua italiana do sacerdote. Se queríamos mesmo folga, por que então ir ao trabalho?
E vinha na cabeça, ainda mistificada do lente, aquele caso em que, em um dia desses, um apanhador de açaí saiu para colher os frutos dentro do açaizal que a família mantinha; saiu, mas demorou para retornar – foi sozinho. Quando voltou, seus familiares, ainda no resmungo de proibição, notaram que ele estava meio atônito, fora de si, falava pouco e não dizia coisa com coisa. Mas o professor em seus pensamentos também sabia que era dia de trabalho e precisava quebrar o misticismo por detrás daquelas especulações interioranas, mesmo que os resquícios das histórias que ouvira quando menino vinham à tona: o velho do saco, o bicho-papão, a mula-sem-cabeça, a mulher de branco do caminho, a velha que vira porca, uiara, cobra-grande... E resolveu ir ao trabalho. E como previsto, poucos alunos. E como dito, mais evangélicos. O padre há de passar aqui e dar um sermão para que fosse transmitido aos pais dos pequenos – pensava o docente. Era dia do Berto. E dia de todos os caboclos encantados que revoavam sua imaginação. “Danação!”. Contos fantásticos tomam feições de verdade na região: “Juro que vi!”, diz a criaturada.
A comunidade parava quase... No entanto, dizem que havia os desavisados. É daí que tomo a deixa para narrar também fato que virou conto fantasioso nas redondezas... Porque faltaram na escola nesse dia os Silva. Coisas fragmentárias. Pulemos uns meses? Não, continuemos – a memória falha e não se há certeza do tempo.
Aqueles três irmãos ouviram falar que na cidade haveria a primeira comemoração do helloween – as pessoas se vestem de fantasmas, assombrações, caveiras, bruxas, e tais, para a farra de importação estadunidense. A empolgação contaminava um a um à medida que, adentrando no mato cerrado para a coleta de bacuris, os rapazes espalhavam a novidade aos ventos daquela tarde prenunciando penumbra e frialdade; os ventos cochichavam nas folhas das árvores como que reportando também, só que com desprezo, a fabulação da humana criaturada naquelas cercanias. Os passarinhos pararam para ouvir os cochichos como radares conectados não só à natureza, mas também àqueles sons artificiais, melhor dizer, convencionais; viravam de lado as cabeças para o alcance dos fonemas humanos. As vibrações absorvidas do ar se codificavam na matéria terrena, e cada partícula de ser se decidia em transmorfos irradiados para os nervos de Macaxeira – um dos três, o que mais desafiava as lendas e os mitos do lugar. A voz levemente grave e serena do avô dividia em antes e depois de estar ali, no trabalho de quê: “Dia do Berto!”. E por que saiu? A precaução do avô somada à interrogação do rapaz só fazia aumentar a gana de sustentar uma falsa fama de desafiador. Naquela nesga da ilha sempre ouvira dizer que fulano ou sicrano aguentavam as dores da vida por serem destemidos. Assim ele queria também..., necessitava que suas dores também fossem enfrentadas; todavia, sentia algo vago, disperso no ar e no pensamento de nada construir de satisfatório para a empreita, daí a falsa fama. Sigamos...
Açaí, bacuri, manga, goiaba, cupuaçu, caju, carambola, bacaba, tucumã, cacau, banana, coco, taperebá, miriti, ingá-de-metro e mais... Professor gosta, padre gosta, todos gostam. Mas havia datas de maturação, tempo de produção, época de cada, safras e safras de determinados e de indeterminados – nossos daqui ou de outros lugares. Os caboclos sabem disso tudo; mas há quem deslize pela floresta à procura de um fora de rumo no tempo, de outro que floresceu tardiamente e vingou fruto para depois. À custa dessas improvisações da natureza é que surgem causos acreditados por muitos dentro da grandeza natural do mato, dos bichos a se mexerem nas folhas, e das coisas ainda em mistérios dentro da escuridão dos cerrados, das nascentes de braços de igarapés, dos furos de onde saem os sararás, das vozes formadas pelos silêncios da noite dentro do mundão de distâncias e inequívocos, indiciados como risos e choros dentro dos mormaços, ora calados, ora batucados, ora gritados, ora martelados, ora isso tudo junto de e para pôr medo em desacostumados corações e cabeças arvoadas. As árvores mortas, podres deixam buracos, deixam ocos, ocas – as casas dos pretinhos do mato (seres que ele nunca viu, mas a certeza lhe fazia pedir licença para transpor o lugar) – sensação de causos advindos dos mais velhos para terminar o dia, e do início dos tempos para o começo das eras.
Mas voltemos aos bacuris, ou melhor, àquele dia 24 de agosto de um ano indefinido. Obediência! queriam os bichos das florestas, as entidades misteriosas; e os causos mal contados, os acidentes soturnos, as mentes insanas - profilaxia telúrica – emendavam textos para consertar o rasgo de um ou de outro incidente.
_ O bacurizeiro do cemitério está carregado. O vento cai e encheremos as sacas logo, logo – falou alto o mais velho dos três coletores.
Falou alto para os manos ouvirem (foi o que percebeu Macaxeira); no entanto, ainda tinha na cabeça a história de comemoração de sustos que se deviam pregar no helloween. Furada! – pensou Macaxeira. Queriam festa esses tontos, era o que era! Porque tanto mistério, porque tanto segredo, porque tantos causos incrivelmente certeiros é que temos que nem precisamos dessas importações abusivas. Porque temos lendas e mitos, abusões que só querem respeito para fato de existir também, existência fora dos nossos olhos e demais sentidos – afora em certos dias e noites em que de um lado e de outro acontecem esbarramentos coincidentes, coisa de dois mundos que, paralelos, de quando em vez (e raramente) se atritam sem que um entenda o outro; sem que se atente para a infinidade de possibilidades que acontecem na nossa e em outras realidades. A natureza sabe! Deus sabe! E quem sabe até os passarinhos! O mestre, o padre, o dramaturgo inglês, o filósofo, o caboclo, todos devem entender; Macaxeira há de saber também! E qual é a ciência que esconde dele a verdade, a sua verdade?
Macaxeira, calado e avesso à conversação, se adianta rumo ao caminho: “O bacurizeiro do cemitério está carregado!”. Porém, seus pensamentos se fazem perceber pelo jeito atento e receoso de adentrar na mata pelos bacuris. Tivesse ido à escola, ouviria do professor a ralhação do padre, contaria à pequena turma as histórias de quando ele menino ouvia dos avós; tivesse ido à escola, perderia os bacuris docinhos que venderia na taberna do Tibúrcio. Nisso ia, e já imaginava passos seguindo os dele pelo caminho. Já enxergando as cruzes, lembrou-se de que certa noite (a porta da cozinha deixara aberta?) sentiu um arrepio, não soube se de aragem arejando a casa ou de medo carregando seu corpo. “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa filosofia vã”, o professor que trazia a ciência e as explicações, deixando bem claro que nem tudo tem explicação; e se tem, ainda não e, talvez, nunca conheceremos. O padre não convencia e Shakespeare metia mais coisa nas caraminholas agudas, espertas e criativas de nossa gente. E homem das letras no meio de tudo dava uma confiança que sequer tinha. “Este é o cemitério, lugar dos corpos silenciosos, de espectros vistos de relance, de parentes enterrados nos olhando tortos”, imaginou o rapaz. Ruminava agora: não necessitamos dos escritos ingleses; tínhamos o velho Vico que nos moralizava com semelhantes filosofias, vivas e próximas. Preparamo-nos para a vida (malamar!) e nos esquecemos da morte.
Arregalou os olhos que percorreram de baixo acima aquela imponente árvore quase no meio do campo sagrado. E de tempo quase regulares uns baques na terra assinavam frutos maduros deixando a saia da mãe, porque as mãos translúcidas dos ventos são feitas de assombrações, daí que os frutos caiam no pé. Esse “truque” quase abafado (desprendimento de suas seivas verdes, porque tempo daqueles universos acontecerem também; e se tempo, também espaço: endereço e hora) era o mistério da vida que andava para a frente rumo a uma evolução lenta e entropicamente ajeitada – continuava a mente inquieta do jovem rapaz, entregue aos olhinhos de inúmeros seres que lhe indagavam: “Se eu/você não existisse, esse mundaréu todo existiria?” Fica a questão, embora os mortos ali enterrados saibam que sobre seus peitos, suas matérias desfeitas andavam medrosos ou fingidores espectros na tentativa de se manterem energia. E a voz do avô relutava tentando impedir que “saíssem” no dia do Berto para a caça, para a pesca, para a apanhação de açaí, para a coleta no mato de frutas... Porque o Berto é solto no dia 24 de agosto para aprontar suas presepadas: acidentes com facão, ataques de tataíras, estrepadas em lascas de pau na base da touceira... Crescem esses sinistros, porque é hora de ganhar o pão com o trabalho nos açaizais. Fica o não dito sobre as técnicas rudimentares do serviço mateiro.
Para o professor e para os alunos que foram à escola, porque era dia letivo sim!, aprender o que havia nos livros prescrito concedia a experiência de desacreditar no medo imposto desde primordiais lembranças, desde que nossos antepassados ditavam que por ser assim era que deveria ser assim. Todavia, e inconscientemente, aquele aprendizado pudesse quebrar as amarras da temeridade para questionar qualquer verdade: espíritos maus, almas penadas, mundo sobrenatural só precisam de uma desobediência para habitar a cosmologia social na manutenção da já imposta ordem, não sei que se dita natural. O novo muitas vezes traz medo também! Medo! Quem não tem?
Os dois outros irmãos demoravam para chegar ao bacurizeiro dito; Macaxeira enchera já uma saca de serapilheira quando aquele mesmo arrepio de outrora o fez flutuar, separando-o dos frutos já colhidos, numa sensação de alerta e pavor. Helloween! Não fazia bem a ideia dessas comemorações estrangeiras; só vinham na mente imagens de caveiras, abóboras com olhos e bocas luminosos, e monstros outros de todos os tipos. Talvez tivesse a cena pelas imagens de TV desses filmes hollywoodianos que vendem milhões em nossos cinemas só para se ouvir a batida frase “Tá de brincadeira!” ou “Só pode estar brincando!”. Agora, não parecia brincadeira aquela situação dentro do mato, mais porque a assombração de sua casa ainda hoje não tivera explicação plausível: ouviu a voz de licença para entrar e permitiu, sabendo que o ser era um ente de casa, um irmão, a mãe, o pai, sabe-se lá, o avô. A pele arrepiou, e sentiu na barriga as jorradas de adrenalina, fazendo-o arfar ainda mais, perder a voz no borbulhar quente que lhe subia ao corpo; e uns dois dedos flutuados fora do chão lhe fizeram perceber que a gravidade é controlada pelo medo também, porque não viu ninguém; ainda procurou pelos quartos, no quintal (estava escuro) com a lanterna de luz fraca... (essas coisas sempre acontecem em momentos como esses!). No outro dia, aguentou a reprimenda do avô que, zangado na procura pelo seu tabaco, relembrava-o do respeito que se tinha que ter pelos mais velhos e pelas coisas interioranas, soberanas, místicas do nosso lugarejo... Vinha então a imagem (construída pelo medo?) da velha malina, da ave do assobio agourento que sobrevoava a circunvizinhança pelo fumo pedido no dia anterior. Matintaperera, essa entidade habitante agora das cidades maiores, não esquecia seu ambiente primordial: vizinhança de gente que tem fumo. “Matintinha, Matintinha, vem buscar o teu tabaco! Vem, que guardado está o teu!” – brincava o pai na noite de lua e assobios de aves preludiando a monotonia, tendo a espingarda à altura do peito.
Macaxeira sentia agora a cabeça meio zonza; os estrondos – porque eram mais fortes os baques dos bacuris no solo – desenhavam murros dados nos caixões em seus túmulos: murros de mortos que acordaram na mais completa escuridão, abissal, e sem se notarem mortos ou vivos, apenas solicitavam respostas para os desatinos absurdos da existência, talvez não deles, “mas minha, nossa!”.
Deu por si sobre um túmulo e já era noite; noite ou penumbra. Não há muros no cemitério (afastado da comunidade), no matão; este que, quando pronunciado, agravava-se apenas por suas duas sílabas, assim dita “ma-tão!”. Assustado, de carreira, demorou para encontrar a vicinal que lhe poria no rumo da vila. O coração disparado não ajudava na escolha dos caminhos, mas conseguiu chegar a sua casa. A casa era a terceira da viela secundária do lugar, feita totalmente de madeira, virgem de pintura e carcomida pelo tempo; aquela casa até deixava transparecer que tinha motivação própria dentro de seu silêncio de sítio; as pessoas passavam e imprimiam no inconsciente o castelo mal-assombrado, de pau a pique e marcas das chuvas e dos sóis deixadas na fachada como a revelar lágrimas de dias tristes (a mulher engasgada e morta pelo marido traído... nesse século em que traição nem é crime, e muito menos motivo para tamanha brutalidade e violência).
O caboclo, arfante, olhos atônitos como a procurar por algo, por alguém, por ninguém, ou como a fugir de, na interpretação que fez ao ver o avô a encará-lo, adentrou a casa, viu a mãe, o pai e, voltando-se novamente para o avô (ainda pensou na aula que perdera – “O professor ensinou o quê? Perdi algum trabalho?”) e depois indagou:
_ Cadê aqueles dois doidos que me deixaram no mato?!
A perplexidade tomou novamente seu corpo quando foi informado que os manos haviam viajado para a capital três dias atrás, “como você mesmo sabe, home!”.
E na sua mente o pensamento do professor (ou era dele mesmo?) a respeito daquele “dia do Berto” trazia o resmungo do padre “Danação!”. Desejava desincorporar as modas de bruxaria estrangeira, de fora, a querer atazanar toda sua memória, todo seu corpo, pesado de ecos, e leve como o éter: “Como você mesmo sabe, home!”
Repousou num banco próximo à mesa da cozinha, cruzou os braços nela, abaixou a cabeça sobre eles e relatou o acontecido. A reportagem se fazia necessária, não que fosse exigida, mas necessária, ao menos para ele. Contudo, e se voltasse amanhã? Convidaria um primo, um amigo... Encontraria a saca cheia de bacuris? E a verdade apareceria... E de súbito os murros dentro dos caixões enterrados agora tinham a mesma altura, a mesma frequência dos estrondos dos frutos que o bacurizeiro desmamava, socando a terra, o barro, um pedaço de pau úmido... Não notara isso na hora da colheita, ou por isso mesmo foi que fugira?
A mãe preocupou-se daquela entrada:
_ Não se inquente, meu filho; tudo passa, tudo passa.
E ela continuou com a história da comadre que só feriu o marido porque, no dia do Berto, a faca atirada resvalou no assoalho da casa, “deu uma nhacada no ar (fez o gesto com a mão esquerda, dobrando o punho) e lanhou a criatura bebinha”. Mas “Tudo passa, meu filho, tudo passa!”.
_ Te avisei que é dia do Berto! Num te avisei?! E nem é tempo de bacuri!, terminou o avô que fumava um tabaco extraforte advindo do comércio do Tibúrcio, onde tira fiado. E gravado ainda se tinha a língua do pároco: “Sono tutti morbidi!”.Te avisei!!!
Assim que, unindo os causos relatados aqui, é que ratifico Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra...!”. Mas assim que também faço alusão aos questionamentos inquietantes. Quem sabe um dia entendamos nosso universo... para que depois possamos navegar pelos múltiplos versos das nossas versões de vida.
E nossa gente que, se inteirando mesmo! da nossa história, saiba edificar o nosso futuro. Enquanto isso, os rios e igarapés guardam nas curvas os mistérios das consciências que por aqui passaram.
_ Não te falei, home!
_ E por que só o senhor vai dar aula? E a outra professora?
_ Dia do Berto, padre. As pessoas não gostam de sair de casa, nem para conversar quanto mais para trabalhar, padre.
_ Mas todo dia é dia de santo! Se fosse por isso, ninguém trabalhava nunca!
_ Por essas bandas, padre, o Berto é ser tinhoso e seu dia é respeitado. É o dia de ele mijar nos açaizais para pretejar o fruto.
_ E os alunos? Vêm?
_ Poucos, padre. Mais os evangélicos...
_ Danação! Não tinha que ser assim. Todo dia é dia de santo! – saiu o padre a palavrear pelo caminho. “La fama. Il brasiliano è puttana! Tutti pigri. Sono tutti morbidi!” - Se me ficou algo da língua italiana do sacerdote. Se queríamos mesmo folga, por que então ir ao trabalho?
E vinha na cabeça, ainda mistificada do lente, aquele caso em que, em um dia desses, um apanhador de açaí saiu para colher os frutos dentro do açaizal que a família mantinha; saiu, mas demorou para retornar – foi sozinho. Quando voltou, seus familiares, ainda no resmungo de proibição, notaram que ele estava meio atônito, fora de si, falava pouco e não dizia coisa com coisa. Mas o professor em seus pensamentos também sabia que era dia de trabalho e precisava quebrar o misticismo por detrás daquelas especulações interioranas, mesmo que os resquícios das histórias que ouvira quando menino vinham à tona: o velho do saco, o bicho-papão, a mula-sem-cabeça, a mulher de branco do caminho, a velha que vira porca, uiara, cobra-grande... E resolveu ir ao trabalho. E como previsto, poucos alunos. E como dito, mais evangélicos. O padre há de passar aqui e dar um sermão para que fosse transmitido aos pais dos pequenos – pensava o docente. Era dia do Berto. E dia de todos os caboclos encantados que revoavam sua imaginação. “Danação!”. Contos fantásticos tomam feições de verdade na região: “Juro que vi!”, diz a criaturada.
A comunidade parava quase... No entanto, dizem que havia os desavisados. É daí que tomo a deixa para narrar também fato que virou conto fantasioso nas redondezas... Porque faltaram na escola nesse dia os Silva. Coisas fragmentárias. Pulemos uns meses? Não, continuemos – a memória falha e não se há certeza do tempo.
Aqueles três irmãos ouviram falar que na cidade haveria a primeira comemoração do helloween – as pessoas se vestem de fantasmas, assombrações, caveiras, bruxas, e tais, para a farra de importação estadunidense. A empolgação contaminava um a um à medida que, adentrando no mato cerrado para a coleta de bacuris, os rapazes espalhavam a novidade aos ventos daquela tarde prenunciando penumbra e frialdade; os ventos cochichavam nas folhas das árvores como que reportando também, só que com desprezo, a fabulação da humana criaturada naquelas cercanias. Os passarinhos pararam para ouvir os cochichos como radares conectados não só à natureza, mas também àqueles sons artificiais, melhor dizer, convencionais; viravam de lado as cabeças para o alcance dos fonemas humanos. As vibrações absorvidas do ar se codificavam na matéria terrena, e cada partícula de ser se decidia em transmorfos irradiados para os nervos de Macaxeira – um dos três, o que mais desafiava as lendas e os mitos do lugar. A voz levemente grave e serena do avô dividia em antes e depois de estar ali, no trabalho de quê: “Dia do Berto!”. E por que saiu? A precaução do avô somada à interrogação do rapaz só fazia aumentar a gana de sustentar uma falsa fama de desafiador. Naquela nesga da ilha sempre ouvira dizer que fulano ou sicrano aguentavam as dores da vida por serem destemidos. Assim ele queria também..., necessitava que suas dores também fossem enfrentadas; todavia, sentia algo vago, disperso no ar e no pensamento de nada construir de satisfatório para a empreita, daí a falsa fama. Sigamos...
Açaí, bacuri, manga, goiaba, cupuaçu, caju, carambola, bacaba, tucumã, cacau, banana, coco, taperebá, miriti, ingá-de-metro e mais... Professor gosta, padre gosta, todos gostam. Mas havia datas de maturação, tempo de produção, época de cada, safras e safras de determinados e de indeterminados – nossos daqui ou de outros lugares. Os caboclos sabem disso tudo; mas há quem deslize pela floresta à procura de um fora de rumo no tempo, de outro que floresceu tardiamente e vingou fruto para depois. À custa dessas improvisações da natureza é que surgem causos acreditados por muitos dentro da grandeza natural do mato, dos bichos a se mexerem nas folhas, e das coisas ainda em mistérios dentro da escuridão dos cerrados, das nascentes de braços de igarapés, dos furos de onde saem os sararás, das vozes formadas pelos silêncios da noite dentro do mundão de distâncias e inequívocos, indiciados como risos e choros dentro dos mormaços, ora calados, ora batucados, ora gritados, ora martelados, ora isso tudo junto de e para pôr medo em desacostumados corações e cabeças arvoadas. As árvores mortas, podres deixam buracos, deixam ocos, ocas – as casas dos pretinhos do mato (seres que ele nunca viu, mas a certeza lhe fazia pedir licença para transpor o lugar) – sensação de causos advindos dos mais velhos para terminar o dia, e do início dos tempos para o começo das eras.
Mas voltemos aos bacuris, ou melhor, àquele dia 24 de agosto de um ano indefinido. Obediência! queriam os bichos das florestas, as entidades misteriosas; e os causos mal contados, os acidentes soturnos, as mentes insanas - profilaxia telúrica – emendavam textos para consertar o rasgo de um ou de outro incidente.
_ O bacurizeiro do cemitério está carregado. O vento cai e encheremos as sacas logo, logo – falou alto o mais velho dos três coletores.
Falou alto para os manos ouvirem (foi o que percebeu Macaxeira); no entanto, ainda tinha na cabeça a história de comemoração de sustos que se deviam pregar no helloween. Furada! – pensou Macaxeira. Queriam festa esses tontos, era o que era! Porque tanto mistério, porque tanto segredo, porque tantos causos incrivelmente certeiros é que temos que nem precisamos dessas importações abusivas. Porque temos lendas e mitos, abusões que só querem respeito para fato de existir também, existência fora dos nossos olhos e demais sentidos – afora em certos dias e noites em que de um lado e de outro acontecem esbarramentos coincidentes, coisa de dois mundos que, paralelos, de quando em vez (e raramente) se atritam sem que um entenda o outro; sem que se atente para a infinidade de possibilidades que acontecem na nossa e em outras realidades. A natureza sabe! Deus sabe! E quem sabe até os passarinhos! O mestre, o padre, o dramaturgo inglês, o filósofo, o caboclo, todos devem entender; Macaxeira há de saber também! E qual é a ciência que esconde dele a verdade, a sua verdade?
Macaxeira, calado e avesso à conversação, se adianta rumo ao caminho: “O bacurizeiro do cemitério está carregado!”. Porém, seus pensamentos se fazem perceber pelo jeito atento e receoso de adentrar na mata pelos bacuris. Tivesse ido à escola, ouviria do professor a ralhação do padre, contaria à pequena turma as histórias de quando ele menino ouvia dos avós; tivesse ido à escola, perderia os bacuris docinhos que venderia na taberna do Tibúrcio. Nisso ia, e já imaginava passos seguindo os dele pelo caminho. Já enxergando as cruzes, lembrou-se de que certa noite (a porta da cozinha deixara aberta?) sentiu um arrepio, não soube se de aragem arejando a casa ou de medo carregando seu corpo. “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa filosofia vã”, o professor que trazia a ciência e as explicações, deixando bem claro que nem tudo tem explicação; e se tem, ainda não e, talvez, nunca conheceremos. O padre não convencia e Shakespeare metia mais coisa nas caraminholas agudas, espertas e criativas de nossa gente. E homem das letras no meio de tudo dava uma confiança que sequer tinha. “Este é o cemitério, lugar dos corpos silenciosos, de espectros vistos de relance, de parentes enterrados nos olhando tortos”, imaginou o rapaz. Ruminava agora: não necessitamos dos escritos ingleses; tínhamos o velho Vico que nos moralizava com semelhantes filosofias, vivas e próximas. Preparamo-nos para a vida (malamar!) e nos esquecemos da morte.
Arregalou os olhos que percorreram de baixo acima aquela imponente árvore quase no meio do campo sagrado. E de tempo quase regulares uns baques na terra assinavam frutos maduros deixando a saia da mãe, porque as mãos translúcidas dos ventos são feitas de assombrações, daí que os frutos caiam no pé. Esse “truque” quase abafado (desprendimento de suas seivas verdes, porque tempo daqueles universos acontecerem também; e se tempo, também espaço: endereço e hora) era o mistério da vida que andava para a frente rumo a uma evolução lenta e entropicamente ajeitada – continuava a mente inquieta do jovem rapaz, entregue aos olhinhos de inúmeros seres que lhe indagavam: “Se eu/você não existisse, esse mundaréu todo existiria?” Fica a questão, embora os mortos ali enterrados saibam que sobre seus peitos, suas matérias desfeitas andavam medrosos ou fingidores espectros na tentativa de se manterem energia. E a voz do avô relutava tentando impedir que “saíssem” no dia do Berto para a caça, para a pesca, para a apanhação de açaí, para a coleta no mato de frutas... Porque o Berto é solto no dia 24 de agosto para aprontar suas presepadas: acidentes com facão, ataques de tataíras, estrepadas em lascas de pau na base da touceira... Crescem esses sinistros, porque é hora de ganhar o pão com o trabalho nos açaizais. Fica o não dito sobre as técnicas rudimentares do serviço mateiro.
Para o professor e para os alunos que foram à escola, porque era dia letivo sim!, aprender o que havia nos livros prescrito concedia a experiência de desacreditar no medo imposto desde primordiais lembranças, desde que nossos antepassados ditavam que por ser assim era que deveria ser assim. Todavia, e inconscientemente, aquele aprendizado pudesse quebrar as amarras da temeridade para questionar qualquer verdade: espíritos maus, almas penadas, mundo sobrenatural só precisam de uma desobediência para habitar a cosmologia social na manutenção da já imposta ordem, não sei que se dita natural. O novo muitas vezes traz medo também! Medo! Quem não tem?
Os dois outros irmãos demoravam para chegar ao bacurizeiro dito; Macaxeira enchera já uma saca de serapilheira quando aquele mesmo arrepio de outrora o fez flutuar, separando-o dos frutos já colhidos, numa sensação de alerta e pavor. Helloween! Não fazia bem a ideia dessas comemorações estrangeiras; só vinham na mente imagens de caveiras, abóboras com olhos e bocas luminosos, e monstros outros de todos os tipos. Talvez tivesse a cena pelas imagens de TV desses filmes hollywoodianos que vendem milhões em nossos cinemas só para se ouvir a batida frase “Tá de brincadeira!” ou “Só pode estar brincando!”. Agora, não parecia brincadeira aquela situação dentro do mato, mais porque a assombração de sua casa ainda hoje não tivera explicação plausível: ouviu a voz de licença para entrar e permitiu, sabendo que o ser era um ente de casa, um irmão, a mãe, o pai, sabe-se lá, o avô. A pele arrepiou, e sentiu na barriga as jorradas de adrenalina, fazendo-o arfar ainda mais, perder a voz no borbulhar quente que lhe subia ao corpo; e uns dois dedos flutuados fora do chão lhe fizeram perceber que a gravidade é controlada pelo medo também, porque não viu ninguém; ainda procurou pelos quartos, no quintal (estava escuro) com a lanterna de luz fraca... (essas coisas sempre acontecem em momentos como esses!). No outro dia, aguentou a reprimenda do avô que, zangado na procura pelo seu tabaco, relembrava-o do respeito que se tinha que ter pelos mais velhos e pelas coisas interioranas, soberanas, místicas do nosso lugarejo... Vinha então a imagem (construída pelo medo?) da velha malina, da ave do assobio agourento que sobrevoava a circunvizinhança pelo fumo pedido no dia anterior. Matintaperera, essa entidade habitante agora das cidades maiores, não esquecia seu ambiente primordial: vizinhança de gente que tem fumo. “Matintinha, Matintinha, vem buscar o teu tabaco! Vem, que guardado está o teu!” – brincava o pai na noite de lua e assobios de aves preludiando a monotonia, tendo a espingarda à altura do peito.
Macaxeira sentia agora a cabeça meio zonza; os estrondos – porque eram mais fortes os baques dos bacuris no solo – desenhavam murros dados nos caixões em seus túmulos: murros de mortos que acordaram na mais completa escuridão, abissal, e sem se notarem mortos ou vivos, apenas solicitavam respostas para os desatinos absurdos da existência, talvez não deles, “mas minha, nossa!”.
Deu por si sobre um túmulo e já era noite; noite ou penumbra. Não há muros no cemitério (afastado da comunidade), no matão; este que, quando pronunciado, agravava-se apenas por suas duas sílabas, assim dita “ma-tão!”. Assustado, de carreira, demorou para encontrar a vicinal que lhe poria no rumo da vila. O coração disparado não ajudava na escolha dos caminhos, mas conseguiu chegar a sua casa. A casa era a terceira da viela secundária do lugar, feita totalmente de madeira, virgem de pintura e carcomida pelo tempo; aquela casa até deixava transparecer que tinha motivação própria dentro de seu silêncio de sítio; as pessoas passavam e imprimiam no inconsciente o castelo mal-assombrado, de pau a pique e marcas das chuvas e dos sóis deixadas na fachada como a revelar lágrimas de dias tristes (a mulher engasgada e morta pelo marido traído... nesse século em que traição nem é crime, e muito menos motivo para tamanha brutalidade e violência).
O caboclo, arfante, olhos atônitos como a procurar por algo, por alguém, por ninguém, ou como a fugir de, na interpretação que fez ao ver o avô a encará-lo, adentrou a casa, viu a mãe, o pai e, voltando-se novamente para o avô (ainda pensou na aula que perdera – “O professor ensinou o quê? Perdi algum trabalho?”) e depois indagou:
_ Cadê aqueles dois doidos que me deixaram no mato?!
A perplexidade tomou novamente seu corpo quando foi informado que os manos haviam viajado para a capital três dias atrás, “como você mesmo sabe, home!”.
E na sua mente o pensamento do professor (ou era dele mesmo?) a respeito daquele “dia do Berto” trazia o resmungo do padre “Danação!”. Desejava desincorporar as modas de bruxaria estrangeira, de fora, a querer atazanar toda sua memória, todo seu corpo, pesado de ecos, e leve como o éter: “Como você mesmo sabe, home!”
Repousou num banco próximo à mesa da cozinha, cruzou os braços nela, abaixou a cabeça sobre eles e relatou o acontecido. A reportagem se fazia necessária, não que fosse exigida, mas necessária, ao menos para ele. Contudo, e se voltasse amanhã? Convidaria um primo, um amigo... Encontraria a saca cheia de bacuris? E a verdade apareceria... E de súbito os murros dentro dos caixões enterrados agora tinham a mesma altura, a mesma frequência dos estrondos dos frutos que o bacurizeiro desmamava, socando a terra, o barro, um pedaço de pau úmido... Não notara isso na hora da colheita, ou por isso mesmo foi que fugira?
A mãe preocupou-se daquela entrada:
_ Não se inquente, meu filho; tudo passa, tudo passa.
E ela continuou com a história da comadre que só feriu o marido porque, no dia do Berto, a faca atirada resvalou no assoalho da casa, “deu uma nhacada no ar (fez o gesto com a mão esquerda, dobrando o punho) e lanhou a criatura bebinha”. Mas “Tudo passa, meu filho, tudo passa!”.
_ Te avisei que é dia do Berto! Num te avisei?! E nem é tempo de bacuri!, terminou o avô que fumava um tabaco extraforte advindo do comércio do Tibúrcio, onde tira fiado. E gravado ainda se tinha a língua do pároco: “Sono tutti morbidi!”.Te avisei!!!
Assim que, unindo os causos relatados aqui, é que ratifico Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra...!”. Mas assim que também faço alusão aos questionamentos inquietantes. Quem sabe um dia entendamos nosso universo... para que depois possamos navegar pelos múltiplos versos das nossas versões de vida.
E nossa gente que, se inteirando mesmo! da nossa história, saiba edificar o nosso futuro. Enquanto isso, os rios e igarapés guardam nas curvas os mistérios das consciências que por aqui passaram.
_ Não te falei, home!