O ÚLTIMO PEDIDO: Onde tudo começou

Enquanto folheava algumas páginas do jornal diário naquela noite, uma xícara de chocolate quente esfriava ao meu lado. Alguns minutos depois, não sei precisar ao certo, ouvi um grande estrondo na porta principal de minha casa. Alguém batia ali desesperadamente como se houvesse a necessidade instantânea de adentrar em meu recinto.

Levantei da cadeira e atravessei a sala indo em direção a porta. Demorei um pouco a girar a chave.

- Me desculpe o adiantar da hora Evandro... Mas o que tenho pra lhe falar é muito urgente – disse Nhoêmia entrando pela casa antes mesmo que eu pudesse ter tempo de dizer alguma palavra.

Nhoêmia era uma das enfermeiras do hospital onde meu avô estava internado.

- Aconteceu algo com o meu avô? – interroguei já esperando o pior.

Nhoêmia estava com as mãos nos bolsos de sua calça jeans clara. Estava aflita. Tão aflita que não conseguia dizer nada. Parecia ter engolido as palavras.

Vou até a cozinha. Abro a geladeira e encho um copo americano pela metade com um pouco de água.

- Beba isso, vai lhe fazer bem.

Naquele momento pude notar o quão tolo poderia estar sendo ao dizer para uma enfermeira o que poderia ou não lhe fazer bem.

- Seu avô está chamando por você. Disse que quer lhe pedir algo muito importante.

- Você poderia ter me ligado, não precisaria ter vindo até aqui.

- Eu tentei te ligar mais... Interrompeu a fala ao tomar um gole de água - seu telefone cai direto na caixa postal - continuou.

Percebi que meu celular estava sem bateria e esqueci-me de colocar para carregar desde que retornei do trabalho.

Imediatamente liguei meu carro e fui em direção ao hospital. Ficava um pouco distante de minha casa.

- Que bom que veio meu neto – disse com um pouco de dificuldade. Suas palavras eram cortadas ao meio interrompidas por uma tosse maldita que lhe afligia.

Segurei firme em uma de suas mãos e olhei fixamente em direção aos seus olhos.

- Eu quero te pedir uma coisa meu neto.

- Pode falar vô, eu faço o que o senhor quiser.

Naquele momento percebi que ele desviou seu olhar que até então estava em minha direção e esquivou os olhos castanhos para a direção contrária. Sem que dissesse ao menos uma palavra notei que ele queria que eu fechasse a porta do quarto que havia deixado entre aberta quando entrei desesperadamente naquele quarto gelado de hospital.

Fechei a porta por completo e voltei ao leito de meu avô e atentamente ouvi suas palavras. Minha memória não era das melhores, apesar de ainda estar com trinta anos, então anotei tudo em um pequeno caderno de espiral que sempre carregava comigo.

Deixei meu avô aos cuidados de Nhoêmia e sai.

Ao chegar à calçada percebi a forte chuva que caia do lado de fora. Meu carro estava do outro lado da rua. Seria impossível não me molhar. Tudo o que eu queria era atender o pedido de meu avô o mais breve possível, afinal não sabia quanto tempo eu tinha pra isso. Mesmo não compreendendo tão bem aquele pedido dei continuidade.

Confesso que estava andando um pouco acima da velocidade pelas ruas esburacadas da cidade. Por vezes as pessoas que passavam pelas calçadas tomavam um verdadeiro “banho” todas as vezes que as rodas de meu carro passavam rapidamente pelas poças barrentas de água. Não era intencional. Eu juro. Em pensamento me desculpava com aquelas pessoas que não tinham nada a ver com o que estava acontecendo comigo ou com o que eu tinha que fazer. Porém o tempo não jogava a meu favor.

Andei por algumas ruas até que finalmente cheguei ao meu destino. A casa de meu avô. Era uma rua escura, apenas com um fraco feixe de luz que emanava de um único poste. A prefeitura não se importava muito com os bairros mais distantes. A rua era tranquila, silenciosa e aquela chuvarada que caía contribuiu para afastar qualquer pessoa da rua. Nem mesmo sinal de algum cachorro, ou sei lá o que. O único som que ouvi depois de desligar meu carro era da forte enxurrada que arrastava um amontoado de lixo por aquelas ruas de paralelepípedo.

A casa de meu avô, a um primeiro momento, olhando do lado de fora, não era muito convidativa. Era uma construção centenária, histórica. A fachada pintada em um tom claro de azul já estava desgastada pela ação do tempo, algumas partes do revestimento externo já não se faziam presentes sendo possível ver os tijolos. As janelas de madeira que davam de frente para a rua também estavam velhas. Em frente a casa havia um jardim, que naquele momento estava encoberto por um matagal e algumas ervas daninha enroscaram-se nas arvores ao lado.

Empurrei com um pouco de dificuldade o portão enferrujado. Seu ranger era tão alto que poderia despertar a atenção da vizinhança.

Já na sala, sentei em uma das poltronas de cor vermelho escuro. A casa cheirava mofo. Havia muita poeira. Desde que meu avô ficou viúvo não se importou mais em cuidar da casa e em manter um ambiente agradável para si mesmo. Dirigi uma de minhas mãos até o bolso esquerdo da minha calça.

- Droga! – esbravejei ao notar que meu caderno de anotações não estava ali.

Aquele maldito caderno de espiral talvez não fosse tão útil naquele momento não fossem as recomendações que meu avô havia me passado. Sem elas mal poderia me mover dentro daquela casa. Sim, não é exagero. Ali estava todo o passo a passo, uma sequencia que eu mesmo construi para atender o pedido de meu avô da melhor maneira possível.

Fui até o portão. Olhei de um lado para o outro. Pensei em refazer o trajeto que havia feito ate aqui na tentativa de encontrar o tal caderno. Talvez pudesse estar dentro do carro. Poderia ter caído. Pensei.

Prestes a abrir a porta do carro, vejo as gotas da chuva, que agora já estava branda, desfazerem um pedaço de papel.

- Meu caderno – resmunguei em tom de raiva.

As folhas estavam molhadas. Não completamente. A capa de paisagem já havia se desfazido um pouco. Mais seu interior ainda estava conservado. Foi o que pensei.

Resolvo acender a pequena lareira que havia na sala. Abro meu caderno e aproximo as folhas do calor do fogo brando. Não muito tempo depois, refaço a leitura de minhas anotações que anteriormente fiz no hospital.

Subo as escadas. Agarro-me no corrimão velho de madeira consumido pelos cupins. Vou até o último quarto da esquerda, no final do corredor. Sem dificuldade consigo abrir a porta. O quarto é escuro. Aciono o interruptor e alguns segundos depois a luz se acende. O que vejo são um conjunto de velharias, móveis antigos, cortinas amareladas. O odor ardente de mofo invadia minhas narinas. Ando de um lado para o outro. O caderno esta em minhas mãos.

- Agora que estou aqui, não tenho como desistir – digo para mim mesmo.

Após alguns passos percebo uma parte oca do carpete velho.

- É aqui!

Começou ali o meu trabalho. Com o auxílio de um martelo retirei um a um alguns pregos enferrujados. A madeira se soltou por completo. Estava diante de um buraco escuro. Bastante escuro. Tiro do bolso uma pequena lanterna. Começo a descer por uma escada móvel de madeira não tão bem conservada. Não sei o que me espera lá me baixo. Milhões de coisas passam por minha mente nesse momento em que por vezes considero uma loucura. Estou descendo de costas e olhando para baixo. Consigo notar o último degrau.

Cheguei ao porão. Assim resolvi denominar esse lugar sombrio. Aciono a lanterna e giro meu corpo em trezentos e sessenta observando atentamente aquele local. Sempre freqüentei a casa de meu avô, desde criança, porém jamais soube desse porão. Talvez ainda não fosse à hora, como meu avô mesmo costuma dizer. Um pequeno armário velho, uma escrivaninha empoeirada com um espelho pendurado logo acima, uma cadeira, muitos papéis empilhados, quadros, fotografias antigas, muitas caixas, algumas de papelão em sua maioria e outras de madeira, e mais um amontoado de coisas e objetos. Assim é o que meus olhos vêem em um primeiro momento. Um cômodo minúsculo, escuro, abafado e demasiado apertado para tanta coisa. A cada movimento que faço uma parte de meu corpo esbarra em algo.

Continuo revendo minhas anotações. Deixo meu caderno sobre a escrivaninha. Nesse momento estou precisamente em frente ao armário velho. Abro a porta. Alguns casacos pendurados em cabides. Mais o que procuro esta logo mais acima. Vejo uma espécie de caixa de madeira, para ser mais preciso, é um baú, não tão grande. Ergo meus braços e puxo o objeto aos poucos. É pesado. Carrego até a escrivaninha e apoio sobre o móvel.

Nesse exato momento, ouço o ranger do carpete de madeira na casa. Percebo uma sombra. Alguém está aqui. Dou as costas para o porão e subo as escadas com rapidez. Saio do quarto e começo a caminhar pelo corredor.

- Quem esta ai?

Continuo a caminhar. Devagar. O chão de madeira continua rangendo a cada passo. Minhas mãos soam frio. Meus olhos estão esbugalhados. As pernas trêmulas. Abro a porta de cada um dos cômodos da casa por onde passo. Não encontro nada. Insisto em perguntar:

- Quem esta ai?

Nenhuma resposta.

Porém sinto estar chegando próximo. De algo que ainda desconheço.

Desço as escadas e caminho até a cozinha. Vasculho uma das gavetas na tentativa de encontrar algo com o qual possa me defender.

Ouço a porta principal bater. Deixo a gaveta entre aberta e vou em direção a sala, um pouco devagar, mas não de maneira que não pudesse ver um homem alto, magro, usando chapéu, sair correndo dali.

- Desgraçado! Quem é você?

Corro até o portão, não vejo nada. O maldito homem parece ter sumido em meio à escuridão.

Paro no meio da rua. Bem próximo a meu carro. Olho de um lado para o outro. Vasculho a redondeza no raio em que meus olhos podem alcançar. Tenho a sensação que devo verificar algo.

- Droga, o baú!

Tinha a sensação de estar dando desgosto para meu avô. Tinha certeza que estava. Ele não gostaria de saber que o neto é um covarde e que se quer não consegue atender a um último pedido de um velho doente que agoniza em um leito frio de hospital. Meu avô era o que restou de minha família. Se meus pais estivessem aqui com certeza não sentiriam orgulho de mim. Um turbilhão de pensamentos atravessa minha cabeça. Tenho objetivos a cumprir, porem mal consigo sair do lugar.

- Idiota, idiota, idiota – revoltei-me contra me mim mesmo batendo a cabeça na parede.

O baú não estava mais ali.

Faço-me algumas perguntas:

- O que de tão importante aquele baú carrega? Por que meu avô o quer tanto? Quem é aquele maldito homem e porque entrou aqui e levou justamente aquele baú? Qual o interesse?

Muitas perguntas e nenhuma resposta.

Naquele momento Nhoêmia já deveria estar preocupada com meu sumiço repentino do hospital. Meu avô então...

Saio novamente para a rua. Percorro as ruas do bairro. Ando em meio à escuridão. Jogo-me na noite fria enquanto uma brisa leve bate em meu rosto. Não encontro o maldito. Era esse o nome que resolvi dar aquele sujeito.

Não sei em que pensar. Tenho certeza que devo uma satisfação ao meu avô. E essa é a parte mais difícil. Ainda não sei como dizer isso. Por um momento vasculho em meu âmago procurando as palavras mais pertinentes. Vou até minha casa. Tomo uma ducha rápida e escolho a primeira camisa que vejo no guarda roupa. Visto uma calça jeans em tom escuro. Calço um tênis qualquer.

Saio para o hospital.

Observo que Nhoêmia esta falando ao telefone. Esta discutindo. Seu tom de voz é um pouco alto para um ambiente hospitalar. Ao mesmo tempo em que quase chega a berrar com a pessoa do outro lado da linha, ela gesticula os braços com raiva. Dobra a cabeça do lado esquerdo fixando o celular em seu ombro de modo que pudesse continuar falando. Retira um pouco de café de uma garrafa preta que esta sobre uma pequena mesa no corredor próximo a recepção. Toma em um gole só parecendo não se importar com a bebida demasiada quente cuja fumaça que emanava era vista de longe do ponto em que me encontro. Dou alguns passos em sua direção. Ela interrompe a ligação ao notar minha presença.

- Problemas? – pergunto.

- Parentes.

Percebo que Nhoêmia esta um tanto sem jeito, desajeitada. Parece estar desconfortável com algo.

- Entendo – respondo sem querer parecer indelicado e prolongar aquele assunto.

Vou até o quarto de meu avô. Paro em frente à porta e encaro o número 304 à minha frente. Tomo coragem e entro.

- Evandro! Pensei que não fosse lhe ver antes de morrer.

- Eu sei que eu demorei avô, mais é que...

- Fez o que eu te pedi?

Silêncio.

- Responda!

Meu avô começava a dar sinais de agitação.

Realmente por algum motivo aquele maldito baú é de grande valia para ele. Seus olhos traduzem claramente isso.

- Diga Evandro, diga logo.

Sua agitação começa a aumentar. Sua respiração esta ofegante. Esta pálido. Os aparelhos do quarto apitam em tons descontínuos e um tanto alto. O som parece estar se interrompendo. Ele ergue os braços em minha direção. Sinto que esta pedindo algo. Sei o que é. Uma resposta. Nesse exato momento não encontro outra solução. Caminho de um lado para o outro naquele quarto de hospital. Coloco as mãos na cabeça quase arrancando alguns fios pretos do meu cabelo. Sei que o que vou fazer pode não ser o correto. Tenho convicção disso. É preciso tomar uma decisão mesmo que conviva com o peso desta para o resto de minha vida.

- O baú, eu o encontrei. Ele esta em minha casa, em segurança – disse a ele segurando uma de suas mãos.

Espero não me arrepender disso.

O que presencio logo em seguida jamais poderá ser extinto de minha memória. Ele olha pra mim, é um olhar de gratidão. Antes que seus olhos fechassem por completo uma lágrima escorreu de seu rosto. Fiquei ali por um bom tempo e senti sua mão esfriar junto a minha.

Prometi a mim mesmo que iria encontrar o tal baú e descobrir toda essa história.

Saio do quarto. Deixo o corpo aos cuidados de duas enfermeiras. Nenhuma delas é Nhoêmia. Quando fecho por completo a porta do quarto, olho para um dos lados do corredor. Nhoêmia esta ali. Falando ao telefone como estava anteriormente. No mesmo lugar. A cena se repete. Caminho um tanto desajeitado e inconsolado no corredor. Já estou bem próximo de Nhoêmia quando consigo ouvir que ela fala a palavra “baú” em tom grosseiro com alguém do outro lado da linha.

Luccas Nascimentto
Enviado por Luccas Nascimentto em 22/12/2019
Código do texto: T6824773
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