Quem quer?

Começo de noite quente em Belém, cidade morena! Como de costume, os moradores do bairro da Pedreira sentam-se a porta das casas para "pegar um vento" e amenizar o calor. Mas nesse dia, em particular, não foi somente o calor que levou a vizinhança da Travessa Barão do Triunfo para fora de casa, a curiosidade e o medo pairavam no ar! Um vizinho muito conhecido havia falecido naquele dia e diziam os moradores que a causa da morte dele foi uma dívida não paga com a Matinta Pereira.

Muitos moradores riam e brincavam com a situação: "Matinta Pereira não existe! Isso é lenda! Outros preferiam não duvidar da velha bruxa e se acautelavam dizendo: "Não duvido da Matinta. Eu é que não brinco com ela! Semana retrasada ouvi o assovio dela... Ela anda por aí!".Assim todos aguardavam a chegada do corpo para o velório e, desse modo, poder saber mais sobre a causa da morte tão repentina de Seu Candóca.

Seu Candóca era velho conhecido da vizinhança, gostava de contar causos de quando morava no interior, lá em Cotijuba. Era simpático e falador, estava na casa dos 50 e tantos, jovem ainda, galanteador, em frente a sua casa havia todas as noites uma partida de dominó, regada a café e, às vezes, quando a sua esposa estava de "bom humor", entenda-se bem disposta, algumas boas tapiocas amanteigadas e uma bacia de pupunhas, quando era tempo. Todos gostavam muito dele, por isso a consternação era grande naquela vizinhanças.

Em meio a multidão e o burburinho, apareceu Lúcia, uma moça alegre e sempre bem disposta, querida por todos e principalmente pela família de Seu Candóca. Lúcia trabalha em um shopping Center para ajudar nas despesas da casa e acabara de chegar do trabalho. Ela sabia que ele não andava bem, mas não pensou que aconteceria o pior. Parou em frente a casa do falecido e indagou o que se passava, tamanho foi o susto que ela teve ao saber da morte do vizinho e amigo. Resolveu entrar e falar com a esposa de Seu Candóca, que estava inconformada. "Lúcia, minha filha, meu marido se foi!" Disse a viúva aos prantos. Lúcia se limitou a amparar a mulher e a consolá-la com um abraço, em silêncio, compreendia a dor, pois havia tido uma grande perda em sua vida, quando ainda era criança, seu pai morrera em um acidente de carro. "Lúcia. Ele tinha algo pra você, mas não sei o que era.", disse Dona Joana, "Não se preocupe, já não importa agora.", disse Lúcia, vendo o estado da vizinha,"Ele gostava muito de ti, eras como uma filha pra ele!", "Sim, eu sei...", concordou a jovem. Ela ficou por ali algumas horas, e depois foi ter com a mãe, pois já devia estar preocupada com a sua demora, mas prometeu voltar para o velório.

Ao chegar em casa, Lúcia encontrou sua mãe, Dona Marisa, sentada e pensativa, ela já sabia o que havia acontecido, a notícia da morte do vizinho logo se espalhou por toda a redondeza e junto com ela o seu suposto motivo!

"Oi, Mãe! cheguei!, disse Lúcia ao abrir a porta da sala.

"Oi, filha", respondeu Dona Marisa com uma voz triste. A filha logo percebeu o que a mãe estava pensando.

"A senhora lembrou do papai, não foi?".

"Sim. Pensei em nós, no que sentimos, eles devem estar sentindo o mesmo.", respondeu a mãe.

"Eu estive lá com a Dona. Joana, fiquei um pouco, mas tive que vir pra casa, disse que depois voltava".

"Sim, vamos lá depois!".

"Mãe, vou tomar banho, estou cansada".

"Tem café e tapioca, fiz ainda agora!".

"Que bom, estou com fome!".

A vida era tranquila na casa de Dona Marisa e Lúcia, as duas se entendiam bem e eram muito queridas pela vizinhança.

Na casa de seu Candóca a aglomeração aumentou com a chegada do corpo. Todos queriam ir ver o amigo e vizinho e comentar sobre a causa de sua partida tão repentina. No pátio da casa estava armada a mesa de dominó, com os amigos de costume, para a partida habitual, mas dessa vez, invés de as histórias de Seu Candóca, todos falavam da Matinta que rondavam a vizinhança e que teria enfeitiçado o pobre homem até levá-lo à morte.

"Ela anda por aí sim! Semana passada o Seu Mané da quitanda ouviu o assovio dela!", disse um dos jogadores.

"Mano, deixa de ser leso, em pleno século XXI e tu ainda acreditas em Matinta Pereira!", respondeu um outro. Uns riam-se, outros ficavam calados. Mas a verdade é que ninguém conseguia explicar a morte de Candóca, nem mesmo a família. Segundo o laudo médico, ele morreu de uma anemia profunda. Contava a mulher do defunto a todos que perguntavam: "Ele começou a se sentir mal há umas duas semanas "atrás". Começou com uma febre baixa, pensamos que fosse uma virose, não dei muita importância, mas o homem não dormia direito, dizia que não conseguia dormir, que ela vinha assombrar ele porque ele não cumpriu com o prometido. Quando perguntava quem era ela, ele só dizia que era a Bruxa Velha. Ficou assim durante cinco dias, depois a febre piorou e ele começou a ter delírios durante o dia também. Levamos ele ao médico, fizeram vários exames, mas não encontraram nada, disseram que os delírios eram por causa da febre alta e que ele estava com a resistência muito baixa. Passaram uma receita e mandaram de volta pra casa. Em casa ele só piorou, voltamos ao médico e fizeram outros exames, mas não encontraram nada que justificasse o estado dele. Ficou internado até que não resistiu. Os médicos disseram que ele teve uma anemia profunda, mas ele não se alimentava, vivia assombrado, falando da Matinta. Tanto contou essas estórias que elas acabaram levando ele!", lamentava a esposa.

A estás horas, a casa de Dona Joana já estava cheia e a filha Luana servia café com biscoitos as pessoas que iam dar condolências à família. Foi quando chegaram Dona Maísa e Lúcia, as duas foram ao encontro da viúva: "Sinto muito, Joana!", disse Dona Maísa à amiga, "Agora somos duas viúvas!", lamentou a outra e se puseram a falar da vida. Lúcia foi ao centro da sala, onde estava o caixão com Seu Candóca, olhou bem para o corpo, não sentiu nem medo e nem dó, parecia que o homem apenas dormia, disse algumas palavras baixinhos e logo foi falar com a amiga Luana. As duas sempre foram muito amigas desde que o pai de Lúcia, que também era muito amigo de Candóca, se foi; Luana chorou ao ver a amiga, mas foi pouco, parecia conformada ou estava a tentar ser forte por causa da mãe e dos dois irmãos menores. As duas recordaram vários episódios da vida delas e das suas famílias juntas e um dos que mais marcou foi a viagem para Cotijuba, terra das histórias do Seu Candóca: "Essa viagem foi marcante!", lembrou Luana, "Tu sumiste e nós todos fomos a tua procura.", as duas riram por um instante, Lúcia ficou pensativa, parecia reviver a história.: "Lembra que a casa da vó dava pra uma mata, meu pai gostava de ficar deitado na rede no pátio da casa, ouvindo os pássaros cantarem lá na mata. Ele dizia que lá no meio do mato morava a Matinta... Sempre com as histórias dele, nem quando estava perto da morte parou de contar... Eu lembro do dia em que nós estávamos todos nos preparando para ir à praia e tu sumistes, te aprontastes antes de todos e saíste, foste pro meio da mata, só voltaste umas três depois, deixamos de aproveitar a praia por três horas por tua causa!", riu Luana ao lembrar da história: "Aonde fostes afinal?", indagou a amiga. Lúcia ficou introspectiva, ela começou a recordar cada momento daquele dia desde o minuto em que estava no pátio da casa ao lado da rede de Seu Candóca. Naquele dia Lúcia estava muito feliz e ansiosa para chegar à praia, era adolescente, iria completar quatorze anos em três meses, era corajosa, não tinha medo de nada e Seu Candocá sabia da valentia da menina, ele estava deitado na rede e a embalava devagarinho quando Lúcia apareceu: Lúcia, sabia que ali no meio do mato mora a Matinta Pereira?", indagou seu Candóca com ar provocativo, "Matinta Pereira não existe!" respondeu Lúcia, rindo das parvoíces do vizinho, por quem ela tinha grande respeito, "Existe sim. Eu já fui na casa dela", brincou o homem, "Deixa de besteira. Eu vou lá e vou mostrar que não tem nada!", desafiou a menina e os dois saíram em direção a mata que ficava por trás da casa. Ao entrarem na mata, Lúcia viu que tudo era muito bonito, as árvores eram muito altas e frondosas e havia muitos pássaros a cantar, mas não havia nenhuma casa e nem Matinta Pereira, ela disse ao vizinho: "Tá vendo. não tem casa nem uma, Matinta Pereira não existe!", mas quando se virou não viu mais Seu Candóca e ouviu uma voz perguntar "Quem quer?", ela perguntou quem era, mas a voz repetiu "Quem quer?", "O quê?", perguntou a menina, novamente a voz perguntou "Quem quer?", ela pensou que era o vizinho, fazendo alguma brincadeira e respondeu: "Eu quero!", nesse momento ela sentiu uma mão agarrá-la pela nuca e jogá-la no chão, foi algo muito rápido e a menina logo se levantou e voltou correndo para a casa. Todos já estavam muito preocupados a procura dela. Dona Maísa já chorava desesperadamente com medo de ter perdido a filha também, todos entraram na mata e procuraram em todos os lados, apesar de densa, a floresta era pequena e não havia como alguém se perder lá. Ao verem Lúcia, todos ficaram aliviados e questionaram aonde ela esteve durante todo aquele tempo, a menina contou que estava na mata, bem perto da casa, mas ninguém acreditou, pois era impossível eles não a terem visto. Lúcia também não entendia o que havia acontecido e tentou falar com Seu Candóca, mas ele parecia não lembrar de nada. Dona Maísa resolveu não discutir com a filha para não atrasar ainda mais a ida à praia e ficou de falar com ela na volta. Assim foram todos aproveitar o dia e acabaram por esquecer o ocorrido, a mãe só advertiu que a filha não saíssem mais sozinha de casa. Lúcia recordou todo esse episódio como se mergulhasse em um sonho, ao voltar a realidade, olhou para o meio da sala onde estava o caixão de Seu Candóca e suspirou pesadamente, depois olhou a amiga e disse: "Eu estava escondida de vocês!", ela sorriu, "Eu sabia, Lú. Era mesmo a tua cara fazer esse tipo de coisa!", as duas sorriram.

Já estava perto da meia-noite, Dona Maísa chamou a filha para irem para casa descansar, pois voltariam no outro dia para o enterro, as duas se despediram dos familiares e amigos e partiram para casa que ficava a uns duzentos metros. A noite estava quente e estrelada, havia ainda muitas pessoas na rua, todos comentando sobre a misteriosa partida do vizinho.

Em casa as duas conversaram um pouco sobre todo o dia e depois foram para seus quartos dormir, estavam exaustas. Dona Marisa sempre foi uma mulher forte, mas ficou abatida depois da morte trágica do marido, desde então sofria com problemas de hipertensão e insônia, tendo que recorrer a medicamentos para dormir. Cuidava da casa e da filha e trabalhava como professora em uma escola particular do Bairro. Muito dedica a tudo que fazia e principalmente à Lúcia, sempre fez de tudo para que a filha não sentisse a ausência do pai. Naquela noite, Dona Marisa levantou às dua horas da madrugada, não conseguia dormir, havia esquecido de tomar os remédios. Ela foi até a cozinha para apanhar água e viu que a porta estava entreaberta, ficou assustada e ia correr para o quarto da filha, quando viu uma silhueta conhecida, era Lúcias, ela estava no meio do quintal, "de cabelos soltos!" Pensou dona Marisa, a filha quase nuca soltava os cabelos, "Como estão bonitos!" Pensou novamente a mãe. Lúcia parecia dançar abraçada a si mesma, envolta nos cabelos que pareciam ter vida própria. Dona Marisa ficou encantada com aquela cena. A filha girava com tanta leveza que não parecia tocar o chão, até que ela parou dobrou os joelhos até ao chão e os seus cabelos ganharam um volume estranho que a cobriu por completo, em seguiu, para assombro de Dona Marisa, duas enormes asas negras se abriram e um grande pássaro negro voo sobre as casas da vizinhança, logo se ouviu um estridente e aterrador assovio. Todos os moradores da redondeza trataram de entrar em suas casas e trancar bem as portas e janelas, pedindo proteção contra a maldição da Matinta Pereira.

Márcia Miranda Rodrigues
Enviado por Márcia Miranda Rodrigues em 03/12/2019
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