Retrato

O passatempo preferido de Adriana era a leitura, encantou-se desde o primeiro livro que lera. Os pais de Adriana já estavam acostumados com a rotina da menina; depois da aula almoçava fazia a tarefa e ia para biblioteca, gostava de ler ali pelo silêncio, já que em sua casa a todo o momento era interrompida pelos irmãos menores. Durante o tempo de sua leitura tornava-se fada, princesa, guerreira; fazia viagens pra África, Espanha, Marte, os problemas de sua vidinha eram esquecidos. E assim, foram passando-se os anos.

Quando estava com quinze anos, durante suas frequentes idas à biblioteca, um livro de capa verde chamou-lhe atenção, ergueu o braço e com bastante dificuldade conseguiu alcança-lo. Leu o título. Levou até o pequeno sofá e iniciou sua leitura, após ler algumas páginas, algo cai de dentro do livro, abaixou-se pra pegar e tirou debaixo do sofá um retrato, bem antigo, ainda em preto e branco de uma mulher muito bonita; virou o retrato e leu a mensagem:

“Este é nosso último encontro, estamos arriscando demais nossas vidas, jamais deixarei de te amar. Guarde esse retrato e quando olhar pra ele, saberá que estarei pensando em você!”

Com amor G.I

16/01/1949

Olhou ao redor pra ver se alguém observava e guardou rapidamente em sua mochila. Tentou continuar sua leitura, mas foi tomada pela curiosidade - “quem seria aquela mulher, pra quem seria aquele retrato, por que corriam perigo?”.

Foi para casa, durante a noite e ao deitar-se encarou o retrato daquela mulher com um olhar tão triste e profundo, sua imaginação de adolescente criava diversas teorias pra ela.

Naquela noite teve um terrível pesadelo:

Ao correr em um parque vazio avistou ao longe uma pessoa sentada em um balanço, cabisbaixa, pareceu-lhe que chorava, aproximou... ventava muito e algumas folhas voavam, ao chegar perto a mulher levantou o rosto, percebeu que era a mesma do retrato, encarou, então aquela face ganhou traços demoníacos e falou com uma voz aterrorizante; “devolva o meu retrato a César, meu retrato é de Cesar”, acordou assustada, o relógio marcava três horas, depois daquilo ficou se perguntando se realmente existira algum César na vida daquela mulher ou se seria apenas um sonho bobo, adormeceu.

Na manhã seguinte acordou atrasada, descia as escadas, apressada para o colégio. Então lembrou-se do retrato, voltou correndo pra pegá-lo, quando abriu a porta de seu quarto, de súbito teve a impressão de ver um fantasma, as cortinas balançavam mesmo não ventando, um arrepio subiu pela espinha, pegou o retrato e saiu rapidamente.

Na volta do colégio foi direto para biblioteca, perguntou para a atendente do balcão:

-Como os livros daqui são conseguidos?

-De várias formas, mas a maioria são doações, respondeu a moça um pouco desinteressada:

-É feito um registro de quem doou, tem uma forma de saber? É porque eu encontrei algo em um livro e preciso devolver ao dono.

A moça com cara de desdém encarou aquela adolescente e disse:

-Volte amanhã, verei com a bibliotecária se consigo essa informação. Qual seria o livro?

Adriana entregou pra atendente e foi para casa.

No dia seguinte depois do colégio retornou, a moça foi lhe informando:

-Eu consegui os dados pra você, esse livro foi doado há onze anos, foram doados outros livros também, o nome do doador é Luís Augusto Marchetti

-Tem algum endereço?

-Não, nós só anotamos o nome e data para controle.

Voltou para casa apressada, chegando, ligou o notebook para iniciar sua pesquisa, digitou no google: Luís Augusto Marchetti. Várias informações surgiram, mas nada parecia lhe interessar. Estava bem entretida quando de repente um porta-retratos foi arremessado de sua escrivaninha, fazendo-a se assustar! Ao levantar voltou os olhos para a tela e um nome chamou sua atenção; um perfil de uma rede social “Luís Marchetti”, que residia em uma cidade aos arredores.

Entrou no perfil, um senhor de aproximadamente trinta e cinco anos, algumas fotos com a família, amigos, e acabou por enviar uma solicitação, se entediou com sua busca, resolveu se entreter com os afazeres, assistir alguma série na TV, até que ouviu a notificação do celular, sabendo que sua solicitação acabara de ser aceita.

Tentou escrever uma mensagem, ficou pensando no que iria dizer, decidiu ser sincera:

“Boa noite, meu nome é Adriana, estou procurando uma pessoa, que talvez possa ser o senhor. Por acaso fez alguma doação para biblioteca pública de Ipê alguns anos? Pois encontrei algo dentro de um livro que pode pertencer ao senhor ou a alguém que conheça, caso possa me responder, por favor retorne.”

Os dias foram passando e Adriana retornou pra sua rotina de adolescente se esquecendo um pouco daquele fato, e qual não foi sua surpresa, durante uma aula inglês, quando ao olhar o celular notou que sua mensagem tinha sido respondida, ficou eufórica;

“Boa tarde Adriana, na verdade, essa doação foi feita pelo meu pai, esses livros pertenciam ao meu avô e quando ele faleceu meu pai fez a doação para biblioteca pública, o que encontrou no livro?”

Adriana carregava o retrato na mochila, tirou uma foto e encaminhou junto com a mensagem.

Você conhece essa mulher?

Não obteve a resposta de imediato, na verdade, nem nos dias que sucederam, e ela aguardava ansiosa pela resposta como uma garotinha apaixonada espera pela mensagem do namorado.

Em uma quinta-feira estava jogando vôlei na aula de Educação Física, jogou a bola pra depois da quadra onde havia um pequeno bosque, correu pra pegar, ao chegar no local observou uma movimentação e um barulho de passos nas folhas. Seguindo o barulho avistou o vulto de uma mulher que sumiu diante de seus olhos, entrou em pânico, voltou ofegante e pegou o celular para retornar a mensagem e por coincidência viu que estava sendo respondida naquele momento:

“Adriana, não sei quem é essa mulher, talvez alguma conhecida de meu falecido avô.”

“Qual o nome de seu avô”

Ficou perplexa ao ler a mensagem: “César Marchetti”

Rapidamente respondeu:

“Eu preciso devolver pro senhor esse retrato, pra mim é muito importante que fique com ele, pertence ao seu avô e talvez possa guardar com algum de seus pertences, mas eu preciso que aceite. Por favor! Como posso fazer pra encontra-lo?”

O homem que lia a mensagem achou no mínimo estranho aquela garota fazer questão de devolver um retrato a alguém que nem sequer estava vivo, mas resolveu atender aquele pedido.

"Tudo bem, vou lhe passar meu endereço e você pode me visitar amanhã à tarde, estarei em casa à partir das três da tarde, tem aqui um pequeno cofre com alguns pertences de meu avô e como faz tanta questão...... "

Adriana ficou ansiosa, teria que inventar uma desculpa, como explicaria para seus pais o fato de ir pra uma cidade vizinha visitar um senhor que nem sequer conhecia, convidou sua melhor amiga confidente e companheira, Jaqueline, ela topou, falaram que fariam um trabalho a tarde toda na biblioteca.

No dia seguinte depois da aula foram até a rodoviária, pegaram o ônibus pra cidade vizinha, o local ficava a uns quarenta minutos. Tomaram um táxi até o endereço, chegaram no local às duas e cinco. Uma casa grande e bonita com um belo jardim. Ficaram um pouco frustradas por terem que esperar cinquenta e cinco minutos, no local tinha um rapaz bem jovem e belo, provavelmente um jardineiro, cuidava de uma roseira, a roseira com as rosas vermelhas mais lindas que aquelas garotas tinham visto! O rapaz aproximou das garotas com um sorriso segurando a tesoura de jardineiro e perguntou:

-Estão esperando o Sr Marchetti?

As duas um pouco envergonhadas apenas acenaram que sim com a cabeça.

O rapaz prosseguiu:

-Realmente ele me falou algo sobre uma mocinha que viria trazer um retrato, posso ver?

Adriana mais que depressa pegou o retrato em sua mochila e entregou para o rapaz que rapidamente começou a falar:

- Foi uma das mais belas e tristes história de amor que ouvi e que aconteceu por essa região, a história de César e Giertruda! Enquanto falava as garotas perceberam que as palavras saiam pesadas dos lábios daquele desconhecido e sentiram a atmosfera densa que se formava naquela tarde;

- Ele – continuou o jovem – filho de imigrantes italianos, proprietários de uma vinícola; ela de nacionalidade polonesa, veio para o Brasil com sua família quando criança, casou nova com um homem violento e cheio de vícios. Em uma tarde na estação ferroviária ele a viu, quando olhou pra ela sentiu que algo extraordinário acontecia, é como se estivesse procurando por algo a vida toda e finalmente havia encontrado, tentou aproximar-se dela por muito, mas soube que era casada com um homem extremamente ciumento e violento, mesmo assim não conseguia tira-la da cabeça, até que conseguiu marcar um encontro às escondidas, pois o que sentia era reciproco. Se encontravam as tardes de quarta-feira, ela dizendo que ia para igreja enquanto seu marido trabalhava, conseguia ir aos encontros pois sua irmã era cumplice. O casamento de Giertruda passou a ficar insuportável e eles planejavam fugir para São Paulo, começar uma nova vida! E naquela tarde se encontraram, um encontro triste e apressado, seu marido estava muito desconfiado, pois tinha conversado com o padre que revelou que sua esposa não frequentava a missa nas quartas-feiras. Ela entregou esse retrato em lágrimas e disse que não iria mais aos encontros, e que era o fim. Ele estava decidido raptá-la, levaria embora seu grande amor! Não suportava ficar longe dela e nem vê-la sofrendo com aquele carrasco, foi até o banco buscar suas economias e planejou tudo para o dia seguinte. Mas, no dia seguinte acordou com a notícia mais triste de sua vida, ela havia sido morta pelo marido, foi espancada e esfaqueada e o mais triste foi quando constataram que ela estava grávida, esperava um filho de César!

As adolescentes ficaram comovidas e ele prosseguiu, com a história bela e cruel.

-Minha família conhece os Marchetti e essa história há anos, depois de algum tempo o Sr. César casou e constituiu uma família, ele não gostava muito de comentar o assunto pra não magoar a esposa, mas não teve um só dia que ele deixou de olhar para o retrato da amada, ela amava rosas e essas foram plantadas em sua homenagem, ele dizia que sentia sua essência enquanto cuidava das rosas, belas e perfumadas como ela.

As meninas ficaram impressionadas com a bela história e nem se deram conta que o tempo havia passado e já estava por volta das 15:00, hora combinada com Luís Marchetti. O rapaz simpático se despediu falando que tinha sido um prazer conhecê-las, mas já estava na hora de partir, pois terminara o serviço.

Mal dobrou a esquina e o Sr. Luís Marchetti chegou em seu carrão, muito educado, pediu que as meninas entrassem, ofereceu algo para beber, elas aceitaram água pois fazia muito calor naquele dia. Sentaram-se e o homem trouxe o pequeno cofre com alguns pertences de seu avô para mostrar para as garotas, e disse que para ele era muito difícil mexer naquilo já que era muito apegado à seu avô e seu pai e tinha perdido os dois não fazia muito tempo e ainda não havia superado.

Colocaram a caixa no colo e, curiosas, começaram a mexer: alguns recortes de jornal, cartas, fotos antigas, leram em um recorte bem velho e quase apagado de um jornal a notícia de morte da bela Giertruda Ibarras, assassinada a facadas aos vinte e dois anos pelo marido ciumento, até que viram algo que fizeram o semblante delas mudar, Sr. Luís que estava sentado na poltrona em frente assustou ao ver a face das garotas perdendo a cor e ficando pálida, uma das garotas derruba o copo que se espatifa no chão. Com as mãos tremulas Adriana levanta o retrato e pergunta quem era aquele homem, Luís responde que era seu avô, um retrato de quando era jovem. As meninas se entreolharam assustadas e revelam pra Luís que conversaram com ele a pouco, era o jardineiro em seu jardim cuidando da roseira, ele responde que não tem jardineiro e ele mesmo que cuida das rosas. Adriana assustada abre a bolsa pra apanhar o retrato de Giertruda e pra sua surpresa no lugar do retrato havia um botão de rosa vermelha, as meninas se emocionam, contam a história de César pra Luís, o deixando um pouco confuso, mas se comovendo diante da emoção das garotas. Estas, por sua vez, começam a chorar ao entenderem que César esteve ali para buscar o retrato de sua amada.

Adriana - que ama livros e já viverá muitas estórias através deles em sua imaginação - nunca pensou que dentro de um livro conheceria a história mais comovente de sua vida, a história de um verdadeiro amor!

Cecília Micheleto
Enviado por Cecília Micheleto em 25/11/2019
Reeditado em 09/09/2020
Código do texto: T6803235
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