A Sombra
Naquela manhã, eu estava na cozinha, nos fundos da casa, tomando o meu desjejum que a criada acabara de servir, quando algum tipo de premonição me fez erguer e abrir a porta que dava para o quintal. E ali, de pé à minha frente, talvez um metro distante, vi meu amigo Brentano, olhando imóvel para mim. Estava vestido com roupas pesadas de alpinista, a barba por fazer, e - o que era mais notável - eu podia ver através do seu corpo as árvores do pomar atrás dele.
- Brentano! - Gritei.
Ele abriu e fechou a boca, sem dizer palavra, como se o esforço fosse demasiado. Estendeu o braço em minha direção - e desapareceu no ar. Fechei a porta da cozinha, lívido.
- Aurnia! - Gritei para dentro da casa, chamando a criada. Ela apareceu instantes depois.
- Senhor?
- Quem possui um aparelho de telefone nas redondezas?
- Lady Gilbert, senhor - respondeu ela, sem hesitação.
- Avise ao Colm para preparar o carro, preciso ir até a Mansão Callaway.
- Sim, senhor - replicou Aurnia, saindo em seguida.
Subi para o meu quarto, coloquei uma roupa de sair e apanhei a agenda, onde tinha anotado nomes e endereços dos parentes e amigos. A residência de Brentano em Londres possuía um telefone, e certamente haveria alguém capaz de me dizer onde ele estava.
Quando desci, o motorista já estava à minha espera.
- Mansão Callaway, senhor? - Indagou.
- Exato - retruquei, colocando uma boina xadrez na cabeça.
Em frente à casa, o meu modesto Austin 7 azul petróleo aguardava, motor ligado. Sentei-me no banco de trás e o motorista assumiu a direção, tomando o rumo da propriedade dos Callaway.
* * *
Lady Gilbert instruiu seu mordomo a me franquear o acesso à biblioteca da mansão, onde o telefone fora instalado. Quando a telefonista atendeu, pedi que me ligasse com a residência de Brentano, em Londres. Alguns minutos depois, consegui finalmente falar com a governanta dele.
- Onde Brentano deve estar, Florence?
- O senhor Brentano viajou para a Suíça semana passada... foi convidado para uma escalada ao Pico Dufour, nos Alpes Suíços.
- Certamente, não deve haver nenhum telefone próximo - ponderei. - Creio que terei que recorrer ao telégrafo...
Solicitei à Florence as informações de contato dos anfitriões de Brentano no cantão do Valais, Suíça, e depois de agradecer à Lady Gilbert pela gentileza, instruí ao motorista que me levasse ao posto de correios da vila, onde redigi uma série de telegramas. Missão concluída, só me restava agora voltar para casa e torcer pelo melhor.
* * *
Só fui ter notícias de Brentano dois dias depois, por telegrama. Ele e seu grupo de alpinistas haviam sido surpreendidos por uma avalanche, na descida do Dufour, e Brentano só escapara de morrer por ter se abrigado numa exígua cavidade de rocha, onde foi descoberto por um são-bernardo das equipes de resgate. Brentano havia pedido para me agradecerem, pois se eu não tivesse dado o alarme imediatamente, provavelmente o resgate teria chegado tarde demais e todos teriam morrido de hipotermia.
Meses depois, quando nos reencontramos em Londres, contei-lhe sobre a visão que tivera dele, naquela manhã no quintal. Brentano contou-me que, no seu desespero, após ter sido soterrado pela avalanche, tentou pensar em quem poderia lhe socorrer naquela situação.
- Parece-me que, por um instante, a sua alma separou-se do corpo e veio até mim, no campo inglês - ponderei.
- Felizmente, devia saber o caminho de volta - replicou Brentano, bem-humorado. - Creio que não poderia viver sem ela...
- [10-05-2019]