Metamorfose (2)
Ela corria na chuva, carregando um pacote enorme embaixo do braço direito. Não sabia ao certo o que era; seu patrão a havia incumbido de levá-lo até uma estação de metrô, do outro lado da cidade. Recebeu do chefe instruções claras, concisas e tão veementes que qualquer um se sentiria importante por carregar um pacote importante, mas ela não. Sentiu-se explorada e diminuída, e começou a imaginar o que será que tinha ali dentro do pacote que ele mesmo não poderia levar. “Aquele mal-amado não consegue fazer nada sozinho”, pensou. “Aposto que sua esposa faz o próprio gozo”. Se surpreendeu com esse pensamento, há meses não pensava em sexo, sequer lembrava-se disso. Sacudiu a cabeça e tentou usar a dica de seu psiquiatra: respirar fundo imaginando-se numa praia ensolarada, segurando uma taça de margarita com um minúsculo guarda-chuva de glitter. Não funcionou. “Tenho certeza que ele me quer fora dessa empresa de merda! Sou uma ameaça à sua mente ultrapassada e fraca. Mas ele não vai se ver livre de mim tão cedo... Ah, não vai mesmo!” Ela deveria levar a encomenda até o metrô, esperar que um contato da filial a encontrasse e, logo depois, enviar um e-mail ao chefe confirmando a entrega. Não precisaria esperar muito, o patrão disse, o contato já estaria por lá.
Colocou o pacote no banco do carona, gemendo de dor nas costas pelo peso do pacote, ligou o carro e saiu da vaga. “Pode ser que dê tempo de assistir a novela”, pensou. Essa possibilidade faiscou um ânimo, e ela acelerou mais um pouco, sem se dar conta. Cortou um, dois, três carros; passou por um semáforo na luz amarela e quase não parou numa lombada, não queria nem tirar da quinta marcha. Por isso, ela não se deu conta quando o pacote se rasgou na lateral, de tanto chacoalhar e friccionar na porta. “Mais quinze minutos e chego lá”, ela supôs, ligando o rádio e colocando o CD do Caetano. Curvou uma esquina à direita, passou por três quadras, curvou à esquerda. Dirigiu por mais cinco minutos, quando de súbito sentiu algo gelado no pescoço. O susto foi tão grande que quase a fez perder o controle do carro. O gelo veio como algo pesado, pegajoso, levou a mão ao pescoço e sentiu nele o que a estava enlaçando. Suou frio, as pernas tremiam. Não conseguia acreditar. O coração bateu depressa, espancou, doeu. Medo.
A via onde se encontrava não possuía margem nem acostamento, dava acesso a uma ponte importante que recebia três outras vias. O tráfego aquela hora do dia era intransponível e todos os transportes públicos interestaduais passavam por ali. Ela precisava parar, sair rápido daquele carro e não olhar mais pra trás. Precisava gritar por socorro, urgentemente! Tinha uma cobra em seu pescoço e ela não tinha como escapar!
Olhou pro pacote ao seu lado e viu o embrulho rasgado, revelando uma gaiola de alumínio já retorcido, que anteriormente abrigava a cobra que agora enroscava seu pescoço, sufocando-a. Debatia-se o máximo que podia, gritava a plenos pulmões, tentava arrancar a serpente com toda a força que tinha . Nada parecia funcionar. Sua respiração já não era regular, sua visão embaçava. Sua roupa encharcada de suor e chuva colava no corpo, a sandália de salto agulha sambava no seu pé, como se precisasse sair dali.“É, chefe... Não é que você conseguiu mesmo? Maldito seja!”, praguejou alto, num último lampejo de consciência. O volante tremulou em suas mãos, virou à esquerda e, por causa da alta velocidade, a reação do veículo foi ampla. O carro atingiu um ônibus que a acompanhava na faixa lateral, que tombou com o impacto. O estrago foi enorme. A perícia terminou a investigação com apenas duas supostas provas da causa do acidente. Engana-se quem pensou que uma delas era uma cobra. Havia no celular da motorista uma mensagem de alerta: “Seu remédio acabou há cinco dias e eu não consigo falar contigo para vir buscar mais. Você precisa dele urgentemente, pode entrar em surto a qualquer momento. Por favor, me ligue assim que puder. Pereira, seu psiquiatra.”