Fetos gêmeos psicopatas. Conto 3: Fandango
Após um longo dia de ajustes e apresentações de planilhas financeiras, relativas ao departamento em que trabalhava, Srta. Scented saiu do escritório, exausta, por volta de 22h. Trazendo consigo, além do ventre despontado, uma madorra típica de pejada, aleitou-se no sofá chaise. Dos sonhos estrábicos que acossaram-na até o dilúculo, ao acordar, tomou nota daquele mais proeminente: enevoadas, três criaturas conduzindo uma balada sinestésica, bispadas por guitarra flamenca, corneta e pandeiro.
A partir daí, esvaiu-se nos afazeres: banho, café e trânsito. Ao chegar à firma, o porteiro saudou-lhe, com uma gentileza insólita, o que a fez derrubar a bolsa que trazia e da qual saltou a agenda que se abriu e que, de pé, era-lhe possível ler a marcação, em azul claro, da consulta pré-natal e imediatamente, conectou-se ao núcleo daquele sonho. De tal modo, boa parte da manhã foi consumida pela curiosidade em granjear a acepção.
À meia-luz do consultório, o exame transcorria assaz. Srta. Scented, entremeando o olhar, testificava gravidez trigemelar exibida no equipamento eletrônico, à direita. À frente, uma parede ostentava a reprodução de um quadro de Degas. O pronunciamento científico do médico se liquefazia junto à imagem do monitor e ao quadro, sendo a experiência maximizada pelo lied que escutara na noite anterior e interrompida pelo som da queda do pandeiro.
Após o procedimento, à Srta. Scented foram dadas as diretrizes para uma gestação saudável. Contudo, a austeridade das recomendações eram fragmentadas pela lembrança daqueles sonhos: desse modo, conjecturou o primeiro futuro dos rebentos: músicos.
Deslocou-se à ópera da capital e, para sua surpresa, constatou sessões semanais de fandangos sevilhanos. Todavia, o pandeiro tão destacado nos sonhos, não se encaixava naquele estilo musical, fazendo aquilo parecer-lhe um enigma.
As sessões musicais locupletavam seu âmago: era como se os bebês que carregava consigo estivessem participando do enredo. Adquiriu um CD com aquelas músicas e acasalava o dia ouvindo-o.
A euforia descomunal de Srta. Scent foi interrompida, numa tarde, pela notícia da morte do porteiro de sua firma: não souberam contar-lhe, com eufemismos, o que havia se sucedido. Disseram-lhe que, numa roda de samba, no domingo anterior, houve uma confusão e que o velho porteiro, que também era músico, foi acusado de ter penhorado o centenário pandeiro, em troca de não se sabe o que. E que o coração do velho não suportou tamanho acinte, infartando de modo fulminante.
Srta. Scent, desolada, começou a sentir contrações. Foi levada às pressas para a maternidade. A acompanhante exigiu que se colocasse, como música de fundo, o CD de outrora. O parto não demorou muito. O primeiro bebê foi expulso de sua entranhas sem vida: o coração não batia.
O Degas não lhe saía da cabeça.