Cobra Grande
O sol estava quase se pondo e seus derradeiros raios luminosos incidiam sobre a àgua barrenta espalhando sua luz brilhante. Ao longe uma pequena canoa navegava tranquilamente. Dentro dela, um jovem rapaz que voltava para casa depois de um dia inteiro de trabalho, vinha remando como se estivesse caminhando em um parque, lentamente, o cansaço e a solidão no imenso rio só eram amenizados pelos saltos acrobáticos de três botos cinzas que cercavam um cardume de sardinhas e deslizavam apressados na direção contrária a ele. Altair era o único filho de um casal que morava nas proximidades da cidade de Silves, e é nesse ponto que nossa história se desenrola num misto de veracidade, mas também de lenda. Enquanto o astro-rei se despedia de mais um dia, os primeiros reflexos de uma luz prateada começavam a surgir no horizonte, era a lua majestosa e meiga que aos campos e aos homens veio clarear. Por trás das imensas árvores que compoem a nossa floresta amazônica aquela grande luz começou a resplandecer.
O vento nos finais das tardes amazônicas costumava ser um pouco mais forte, porém naquele inicio de noite chegou embalando apenas uma leve brisa e, era exatamente por isso que a canoa deslizava suavemente ao sabor de si mesma, pois o jovem naquele momento apenas segurava o remo como fosse um leme. Ficara absorto, contemplativo, visto que a lua chegava completamente cheia deixando as águas barrenta do rio Solimões, toda iluminada por sua luz prata. Aqui, ali e acolá, uma ondulação embalava a canoa e o rapaz exausto, porém em estado de contemplação que estava desperta colocando firmeza no remo atrás da canoa, corrigindo assim, sua rota. De repente, um barulho o fez olhar para traz e viu dois grandes focos acessos e imaginou ser algum barco pesqueiro, rápido fez uma pequena manobra e saiu logo da frente, esperou um pouco, porém quando nada aconteceu olhou novamente e viu o engano; o perigo que estava correndo. Não se tratava de nenhuma embarcação e sim de uma cobra grande. Aqueles dois focos acessos eram seus grandes olhos sob o reflexo da luz da lua resplandecente.
Apavorado e ainda longe da margem, posicionou o remo e com uma força tirada do imo d'alma imprimiu velocidade, o medo que estava sentindo o fazia tirar forças de onde ele nem imaginava ter, porém nem todo esforço do mundo seria capaz de fazê-lo desviar-se de seu destino. Depois de algumas remadas, tomado pelo cansaço decidiu entregar-se a própria sorte. Recolheu o remo da água e balbuciou uma pequena oração que veio em sua mente por compreender que sua hora havia chegado. A cobra grande se aproximou. Ao encostar-se à canoa, aconteceu algo inesperado. Uma linda jovem sentou-se ao lado daquele rapaz e lhe disse:
- Não tenha medo, não vim assusta-lo, muito menos lhe fazer mal, apenas pedir sua ajuda, pois fui encantada como cobra e desde então não tenho a quem recorrer para desfazer tal maldição, você pode me ajudar?
O rapaz não conseguia dizer uma só palavra, estava paralisado pelo pavor. Ele a olhava tentando compreender como aquilo era possível, um ser gigantesco de repente transformar-se num ser humano. Seu corpo estava trêmulo, não sabia o que pensar, dizer ou fazer, ela, no entanto calma e segura daquilo que viera solicitar continuou sua fala.
- Não tenho muito tempo, mas explicarei pra que você entenda o que realmente aconteceu: Eu era uma princesa e vivi há muitos e muitos anos atrás, no lugar onde fica esta cidade. Meu pai fez a sua fundação e a transformou em um centro bem desenvolvido, muitas embarcações aportavam para comprar, vender ou fazer trocas. Ele era um homem muito inteligente e sábio, amava seus súditos e muitos o amavam também, no entanto como em qualquer lugar existem aqueles que eram contrários à ordem natural das coisas, e não se apresentavam como opositores, mas sim, como bajuladores. Eles se utilizavam de tudo para atingir o rei, como só tinha a mim como filha, sua dedicação era total. Meu pai precisava de um sucessor homem, mamãe teve alguns problemas e não podia mais lhe dar filhos. Ele era um homem que apesar de ser rei levava a vida com simplicidade. Sua moral era incontestável, não deixava dúvidas e nem dava motivo alguma para reprovação, assim, criava em torno de si, defesas diante de possíveis ataques.
O homem conhecia segredos da natureza que outras pessoas não conheciam, sua única fraqueza se é que se podia chamar assim, era a vontade de ter um filho homem e, foi justamente através desse detalhe que ele foi pego sem perceber.
Um dia, enquanto meu pai caçava, deparou-se com um jovem caído no meio da floresta quase morto e o trouxe ao castelo, cuidou dele e mandou procurar, saber de quem se tratava, onde morava e quem eram seus pais, mas eles não foram encontrados, então a afeição pelo rapaz foi tanta que ele o adotou como filho. Não adiantou nada, nem ninguém dizer a ele qualquer coisa a respeito do assunto, aquela dedicação total outrora a mim e minha mãe foi rapidamente esquecida, fomos ignoradas por um longo tempo, ele só tinha olhos para aquele filho, estava cego, porém aquele a quem ele tanto se dedicava começou a tramar às suas costas unindo-se aos seus inimigos.
O rapaz ouvia a história da moça cobra ainda petrificado, não acreditava no que estava vendo ou ouvindo e, pensava com ele mesmo que aquela era uma história maluca, mas mulher estava ali para provar a veracidade do que estava falando e, ela era igual a tantas outras mulheres, vestia-se com certeza a moda de seu tempo, não havia visto vestimenta nem mesmo parecida por aquelas paragens. As pedras que reluziam de seu pescoço, em um colar, eram verdes e combinavam com as de seus brincos, os cabelos compridos e negros escorriam a água do rio em suas costas; estavam molhando sua pele morena clara. Suas mãos magras, mas firmes, eram muito bonitas, observava ele. Por fim, resolveu falar alguma coisa sentindo que assim conseguiria superar o medo que lhe fazia tremer, se ela o quisesse devorar já o teria feito, resolveu ouvi-la mais atentamente.
- E o que mais aconteceu pra que você terminasse desse jeito, com essa maldição?
- Aquele rapaz que fora acolhido como a um filho, mais tarde percebendo o distanciamento do rei de sua mulher, conseguiu seduzi-la. Magoada pelo desprezo; o desamor do marido se deixou enganar e contou a ele tudo o que não poderia ser revelado, falando-lhe da existência de um livro de encantamento com suas porções magicas que o rei escondera pra que ninguém o achasse. Disse onde era o lugar que o colocara em um nível abaixo da sua própria câmara nupcial. Logo depois que ele apossou-se de tudo, desprezou e afastou-se de minha mãe, pois o seu desejo maior não era ela , mas o que havia conseguido. Diante de mais uma decepção ela revelou sua traição como forma de vingar-se do marido. Minha mãe foi punida com o exilio e ao sedutor expedido uma ordem de prisão, este não foi encontrado, pois aqueles aquém ele havia se associado o esconderam muito bem. O fato é que meu pai meses depois foi envenenado ao se alimentar, em seu próprio aposento. Todos esses fatos tiveram um impacto muito grande na minha vida, perdi as pessoas que mais amava dentro de pouco tempo e, aqueles cujas traições vinham fomentando há anos trouxeram novamente o traidor para que se casasse comigo e, assim, receber o trono legitimamente, porém não o aceitei, preferi a morte, então fui colocada a ferros longe das vistas de todos. Dia e noite ele estudou o livro tentando encontrar um meio de me forçar a aceita-lo, quando perdeu totalmente as esperanças de me dobrar lançou-me um encantamento transformando-me num ser horrendo.
- E o que você espera que eu, um simples rapaz possa fazer por você? Como poderei auxilia-la?
- Você pode ser minha única salvação. Primeiro procure se acalmar, supere os seus medos, tenha a certeza que não vim lhe fazer nenhum mal, terás alguns dias para refletir e decidir se vai realmente me ajudar, eu virei todas as noites para orientar como deves proceder para que eu possa me livrar do encantamento, só peço que faça um juramento e que cumpra, não esqueça, ninguém pode saber disso pra que não te chamem de louco.
- Eu mesmo já estou me achando um louco por conversar com uma mulher que se transforma em cobra. por favor, moça, me diga que isso não é um sonho ou que eu não morri.
A jovem o segurou pela mão e disse-lhe:
- É claro que isso não é um sonho muito menos que você tenha morrido; logo tudo vai passar, esperarei alguns dias e então voltarei para conversarmos novamente, confio em você.
A moça pulando dentro do rio transformou-se novamente na cobra grande e, ao mergulhar, houve um rebojo muito grande, quase a canoa afunda, o rapaz depois de equilibrar sua pequena igara e de se dar conta de que estava sozinho, remou mais que depressa em direção a sua casa, ao chegar seus pais já estava à mesa há horas esperando-o para jantar.
Ao passar pela porta como um furacão direto pro seu quarto, deitou-se em sua rede e embrulhou-se todo, na mesa os pais ficaram sem entender sua atitude, pois Altair sempre foi um rapaz educado e dado aos princípios religiosos, costumava tomar a benção dos pais, ao sair e ao chegar a sua casa, mas naquela bendita noite fora diferente.
Ao amanhecer, Altair não se levantou; o rapaz continuou embrulhado, seus pais estranharam aquele comportamento, ele era o primeiro a levantar e fazer o café, o que teria acontecido? Pensavam eles, mas deram-lhe um pouco mais de tempo, bem poderia estar muito cansado, afinal era um jovem esforçado, merecia sim um descanso. As horas foram se passando e Altair nem se mexia na rede, os pais já preocupados resolveram saber o que estava acontecendo.
- Altair meu filho o que houve? Você não jantou e esta até agora ai deitado nessa rede, eu e seu pai estamos preocupados.
Altair com a voz embargada respondeu não ser nada. O pai já sem muita paciência puxou o lençol descobrindo-o e ele com as mãos no rosto começa a chorar compulsivamente deixando os pais ainda mais preocupados.
- Filho, por favor, o que aconteceu? Fale pra nós, você está em casa e nada de mal vai lhe acontecer.
Altair começa a contar a tal história. Após revelar tudo a seus pais, os fez prometer que aquela conversa não sairia dali. Eles ficaram boquiabertos e aturdidos com aquele enredo. Primeiro acharam que o filho estava brincando porque ele era uma pessoa muito divertida, contava muitas histórias aos amigos, depois viram que a coisa era mesmo séria e que o filho realmente precisava de cuidados médicos, talvez alguma insolação, muito cansaço, talvez... Resolveram enfim deixa-lo descansar um pouco mais. E ele ficou na rede um pouco mais, um pouco mais e um pouco mais.
- Mulher que vira cobra grande, isso é história de pescador, que imaginação, disse o pai.
- Meu velho você viu a cara dele, pareceu estar desesperado, com muito medo, deve ter acontecido alguma coisa muito séria pra que ele fique assim, e os olhos? Parece que ele não dormiu nada, passou á noite toda acordado, vamos esperar até a amanhã, ele deve amanhecer melhor.
Alguns dias se passaram e Altair voltou à sua rotina diária trabalhando na lavoura com o pai, porém quando este o chamava para pescar ele se recusava não queria ir para o rio de jeito nenhum, não conseguia entrar em sua canoa, nem mesmo para ir a casa dos amigos, coisa que era costume fazer. Nessa noite, o rapaz se recolheu mais cedo, estava exausto da labuta, fez suas orações e deitou-se. Ficou por algumas horas ainda acordado pensando em tudo o que aconteceu. No destino daquela moça. Mas, e o que ele tinha a ver com aquilo? Esperava que aquele pesadelo não voltasse a acontecer, porém bastante foi concluir seus pensamentos e sentiu que alguém estava ao lado de sua rede. A princípio resolveu ficar bem quietinho fingir que estava dormindo, quem sabe não iria embora. Não foi. E logo escutou um choro baixinho e, depois aquela voz inconfundível. Era ela, era mesmo. O rapaz não queria nem se mexer, porém não havia outro jeito. Agarrou depressa todo aquele medo, colocou bem no fundo da rede, levantou o lençol e viu no canto do quarto encostada na parede, a jovem soluçando. Sentou-se segurando nos punhos e a chamou para mais perto de si dizendo-lhe:
- Vejo que não há jeito de me livrar de você. acha mesmo que posso fazer alguma coisa pra ajuda-la? Continuo pensando que não devo me meter nisso, mas enfim, qual é o próximo passo?
- Não posso obriga-lo a fazer nada, isso deve ser uma decisão sua, mas gostaria que fosse você a me libertar, além do mais posso ajuda-lo a encontrar um tesouro, assim nós dois sairíamos ganhando.
- Tesouro! Unh... Que interessante! Tudo bem. Seria muito bom encontrar algo assim... De tal importância pra melhorar a vida de meus pais, no entanto não me sentiria nada confortável se fizesse apenas pra me dar bem. Se for mesmo possível conseguir lhe libertar deverá ser por você, por todo o seu sofrimento.
- Descanse! Hoje você teve um dia duro amanhã eu volto pra conversarmos mais um pouco, assim vai superando seus medos e eu tenho alguém com quem conversar e não me sinto tão só, virei na mesma hora. Espero que dessas vez sem lágrimas.
antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a moça desapareceu e ele mais que depressa recolheu as pernas para dentro da rede cobrindo-se dos pés à cabeça, custou a dormir agarrado ao medo que estava no fundo da rede, porém, pensando na moça. Na manhã, seguinte, no café, seus pais estavam um tanto apreensivos, não sabiam como perguntar ao filho aquilo que ouviram; não queriam magoa-lo, mesmo assim resolveram saber.
- Altair o que esta acontecendo? Esta noite escutamos você falando como se estivesse conversando com alguém, ainda é aquela visão que esta lhe perturbando? Ontem falei com a comadre roxinha, pedi a ela que viesse aqui fazer uma benzedura pra ver se ela consegue afastar de você essas coisas ruins.
- Mãe, por favor, não tem necessidade disso, eu pedi a vocês que não comentassem com ninguém, lembra? As pessoas não vão entender e me chamarão de louco, preciso superar isso sozinho, não se incomode comigo, estou bem,
- Não disse nada a ela apenas pedi que viesse benzer nossa casa, eu sei que podemos confiar em você. Porém, essa história de cobra grande, de jovem encantada é um pouco demais pra nós. Tudo bem, daremos um tempo pra você superar isso, mas se não melhorar vamos leva-lo ao médico na capital.
- Esta bem, mas não se incomodem por eu conversar sozinho, tenho minhas razões, não estou ficando louco, me deem mais um tempo e tudo voltará à normalidade.
As visitas à noite continuaram até que ele estivesse pronto para realizar sua missão. Tudo que precisava fazer lhe foi explicado pela jovem. O mais engraçado é que Altair não só perdeu o medo da cobra grande como ficava ansioso pela visita da moça. Quando ela não aparecia o seu dia costumava não ser tão interessante assim, O rapaz nem percebeu, porém, estava apaixonado, tanto que até já saia sozinho por vezes, pelo rio, na intenção de encontra-la e, quando isso acontecia, reclamava de sua demora. Dizia ele que tinha um trabalho importante a fazer. Que talvez precisasse de mais detalhes... De todos os detalhes. Ficava tão nervoso e reticente que nem percebia um sorriso de canto da boca dela, mostrando que ela sim, lhe percebia.
A missão era ir até a igreja da cidade e descobrir como chegar no mausoléu, embaixo do altar. Retirar de dentro o livro de encantamento sem que ninguém desconfiasse. Essa era a primeira parte e a mais difícil, pois a Igreja ficava fechada e só o Padre tinha as chaves. Para completar a situação o clérigo vinha apenas uma vez por mês naquela paróquia. Arrombar a porta seria um sacrilégio. Porém, se o serviço tinha que ser feito, então seria. A dificuldade não o incomodava e sim a falta que a moça iria lhe fazer, pois assim que lhe explicou os primeiros passos da missão, disse que só voltaria quando ele estivesse de posse do livro, ai sim, seria explicado como desfazer o encantamento.
- Mãe a festa do divino será quando?
- No sábado é, vamos todos, eu preciso chegar mais cedo, fiquei de arrumar o salão da Igreja, colocar algumas flores pra quando seu Padre chegar estar tudo arrumado.
- Mas, e as chaves, ele não as leva?
- Leva, mas eu tenho uma cópia justamente pra fazer a limpeza.
- Bem, então a senhora pode deixar, eu mesmo vou fazer esse trabalho, minha mãezinha já trabalha tanto em casa, só preciso dos materiais.
E assim no outro dia, bem cedinho pegou a cópia da chave e se encaminhou para a Igreja, lá começou a busca por onde deveria chegar ao mausoléu. O altar era a única referência que tinha. Já exausto de tanto procurar, deu com a mão no menino Jesus e uma porta lateral de abriu onde uma escada descia até o local indicado. Estava ali a esquife daquele que aprisionara sua amada na forma de uma cobra. Abriu com muita dificuldade; estava agarrado ao livro, retirou-o com bastante cuidado, era uma relíquia de páginas borradas, afinal já estava ali sob a umidade há muito tempo. Enrolou em um lenço que trouxera e, quando já se preparava para sair, viu que debaixo dos restos mortais estavam reluzindo pedras preciosas. Havia um verdadeiro tesouro escondido. Subiu novamente foi até a sacristia onde encontrou uma mala, com certeza era do Padre, voltou novamente ao esquife, retirou o esqueleto e acondicionou bem, todas as pedras, depois colocou os ossos no lugar e fechou tudo, o esquife, a Igreja e saiu em direção a sua casa.
- Agora sim, resolverei de uma vez por todas esse mistério, nunca mais meus pais precisaram passar tantas dificuldades e ainda terei a mulher que amo junto de mim, livre daquela maldição.
Ao chegar em casa trazendo a mala com todo aquele tesouro seus pais já não estavam, haviam saído para o trabalho e assim ele pôde transferir para um saco bem resistente as pedras preciosas da mala e a esconder, voltado a Igreja e fazer aquilo que prometera a sua mão. Limpar e arrumar tudo para a festa do divino. Agora era só esperar a amada voltar e liberta-la para viver a dois longe dali. Em sua cabeça os planos já estavam feitos, tudo sairia conforme planejara. No sábado todas as pessoas dos vilarejos próximos à cidade estavam na festa do divino. Logo começou uma procissão, depois os cânticos religiosos, vieram os fogos de artifícios e uma grande fogueira foi acessa. Todos estavam se divertindo muito, mas lá num canto sentado em uma mesa, Altair estava visivelmente abatido, triste sem a mínima vontade de comemorar, só não voltou à sua casa para não deixar seus pais preocupados, estragando assim aquele dia tão esperado por eles. A festa do divino era algo sagrado e todos os anos as comemorações iam até o amanhecer do dia seguinte, depois que tudo estava limpo e arrumado era que tomavam o caminho de casa. Sua vontade, ou melhor, seus pensamentos, não estavam inteiramente na festa, no divino e, sim, na jovem encantada. Os pais, parentes e amigos ali reunidos tentavam de todas as maneiras fazer com que Altair se motivasse. Porém a apatia, o seu desinteresse até mesmo pelas conversas era visível e teimavam em não passar. Seus pais, insistiam com ele para que se divertisse, procurasse comer alguma coisa, mas nada o fazia melhorar. Até que o deixaram sozinho, largado na sua tristeza. Uma jovem sentou-se ao seu lado e ele só percebeu quando esta começou a puxar conversa.
- Você não está se divertindo por quê?
- Não estou com vontade. Disse ele.
- Está uma festa tão bonita, é uma pena que um rapaz tão jovem e simpático como você não esteja aproveitando. Estive aqui em outras festas do divino e você era o mais sorridente, muito conversador, interagia tanto com os mais velhos, quanto com os da sua idade. Se eu o convidar para dançar, você aceita?
- E quem foi que disse a você que eu sei dançar?
- Ninguém, eu mesma o vi muitas vezes dançar, como é mesmo que se diz: Há sim! Pé de valsa. Então, vamos? Quem sabe lhe faço esquecer essa tristeza.
- Está bem, mas só uma musica depois você procura outro rapaz, combinado?
- Perfeitamente. Disse a moça.
Ele levantou, lhe tomou pela mão e iniciaram aquela primeira dança. Logo depois, uma segunda, uma terceira e, assim, quanto mais dançava mais e mais sentia vontade, pois além da musica, do ritmo dos passos, a conversa dela era muito interessante, lhe fizera esquecer totalmente a tristeza. Ele foi ouvindo sua voz, sentindo seu cheiro, aqueles cabelos compridos e negros que com o vento roçavam seu rosto, o toque de suas mãos, mãos que eram pequenas e magras, mas firmes. Firmes? Perguntou-se Parou de dançar olhou-a demoradamente e finalmente a reconheceu.
- Você? Como não a reconheci se estamos dançando aqui há tanto tempo?
- Você estava muito triste, a sua alta estima, baixa, precisava te alegrar de algum jeito, não podes deixar te abater preciso de você forte, não esqueça que você é o meu herói.
- Mas como isso é possível, você pode ficar visível também para as outras pessoas? Todos estão nos observando há horas.
- Será mesmo? Diz a moça.
De repente, Altair levantou a cabeça e percebeu que não se afastara da mesa, nem um milímetro, que tudo não passou de ilusão, a musica que dançaram e ouviu era totalmente diferente da que estava tocando, pareceu que tudo aconteceu apenas em sua cabeça, mas uma coisa era certa, ela estava ali ao seu lado, linda e sorridente. Ele podia vê-la lhe fazendo entender que lhe levou a mudar de atitude; ser a pessoa que era alegre, de bem com a vida.
- E então, você esta melhor? Mesmo que tudo esteja desabando ao seu redor, se em seu coração existir um pouquinho do sentimento que chamamos esperança, nada nem ninguém conseguirá nos abater. Estou há tantos anos nessa condição e não me abati, esperei pacientemente até encontra-lo, porque você não faz o mesmo? Estamos quase lá. Ainda hoje estarei com você. Levantou-se de onde estivera sentada e aquela visão desvaneceu; isto é, sumiu.
Os parentes e amigos perceberam nele, outra pessoa, mais alegre, o Altair de sempre. Seus pais guardavam silêncio, pois sabiam que a moça encantada é que deveria ter operado aquele milagre. Tudo transcorreu como deveria, além da festa em si, era o momento de arrecadar os recursos para o melhoramento da paroquia através das quermesses e, quando tudo terminou, as primeiras luzes da manhã já estavam raiando. Os passarinhos cantavam quando Altair e os pais retornaram para casa, O dia havia sido de muito trabalho e de muitas alegrias também, naquele sábado. O domingo era do merecido descanso, ele e os pais dormiram o sono dos justos.
- Boa noite.
- Boa noite, estava esperando por você, desmaiei de sono o dia inteiro.
- Eu sei, estive aqui o tempo inteiro velando pelo seu sono, esperando você acordar, onde esta o livro?
- Está bem guardado, queres ver? Vou busca-lo.
- Não faça isso, não posso ver o livro, nem toca-lo, encontre no livro a pagina 45 onde está o segredo do desencantamento e leve-o a meia noite a beira do rio, na terceira noite de lua cheia, quando o ser em que fui encantada aparecer nas águas barrentas do Solimões, você terá poucos minutos para pronunciar as palavras sagradas antes que eu possa lhe atacar. Terás que dizer tudo sem demonstrar medo, fale com coragem, sem ela, não terás força. Devo ainda preveni-lo que outros já tentaram e não houve sucesso, a cobra os devorou, porém tens uma vantagem a teu favor, esse sentimento que vens nutrindo por mim, talvez isso impeça o monstro de te fazer mal.
- Ainda que eu fosse devorado por ti, ainda assim me sentiria feliz, já que morreria na tentativa de te salvar. Não sei o que realmente acontecerá depois, talvez tu pertenças à outra dimensão, quem sabe e, se ainda assim o for, só te peço que me leves contigo, já não vejo mais razão pra continuar aqui sem você.
- Não vamos pensar no pior, me afeiçoei a ti e farei todo o possível pra controlar o monstro que sou, te dando tempo pra fazer o que deve ser feito. Leva contigo punhal, deves desinfetá-lo. Feito isso, o consagra passando-o três vezes no fogo e na água. Prometa-me que se algo sair errado você não deixará que ela sobreviva. Em qualquer parte que a ferir ela morrerá, será melhor do que passar a eternidade assim, desse jeito. Prometes?
- Isso não será necessário, não fraquejarei, não viestes a mim por acaso, me agarro à certeza de tuas palavras, de que só eu posso te salvar da maldição.
No outro dia, no café da manhã, antes de saírem para a roça, sua mãe meio chorosa, não disfarçava o nervosismo, Altair percebendo quis saber do que se tratava.
- Aconteceu, alguma coisa minha mãe pra que a senhora esteja chorando?
- Meu filho eu e seu pai só temos você e não estamos gostando nada do rumo que isto está tomando, todas as noites escutamos você conversando com alguém, mas é só você perguntando ou respondendo, não conseguimos ver ninguém. E agora, você fala que enfrentará uma cobra grande com um punhal. Que poderá ser devorado por ela. Que livro é esse de encantamento que ouvimos na sua conversa? Isso não existe precisamos ir a capital imediatamente, você não está em seu juízo perfeito.
O rapaz levanta-se , vai até lá fora respira o ar da manhã, volta disposto a provar a seus pais que realmente não esta delirando nem tão pouco precisando de médico, o pai ainda tenta aconselha-lo a ouvir o que sua mãe esta falando, mas ele entra no quarto e puxa o saco que escondera debaixo de sua cômoda traz para a mesa do café e diz abrindo o mesmo:
- Aqui está a prova de que não estou louco, nem tão pouco precisando de médico, aqui está o livro de encantamentos e com ele descobri um tesouro que servirá pra nós vivermos uma vida melhor. E a prova irrefutável de que a moça me falou a verdade e que vem todas as noites a beira da minha rede para conversarmos.
Os pai ficaram boquiabertos com as provas, o livro realmente existe e aquelas pedras é uma riqueza nunca vista. Mesmo assim, a preocupação continua, talvez até maior por saber que o filho para salvar a vida daquela mulher, desencanta-la, terá que arriscar a sua. O risco é realmente grande. Se ele pensava em disseminar as dúvidas e afastar as preocupações de seus pais, não deu certo, só aumentaram. Agora, mais do que nunca querem o filho longe daquela ideia. Disse o rapaz na tentativa de acalma-los:
- Sempre fui um filho tranquilo e cumpridor dos meus deveres. Trabalho desde muito cedo, e estivemos sempre juntos. Amigos, eu tenho alguns, não havia me interessado por ninguém até conhecer aquela mulher, a princípio tive pavor do monstro que ela se transformou, mas com ela foi que aprendi a superar meus medos. Além disso, não acredito em coincidências, se ela veio a mim é porque alguma ligação nós temos e acredito ser a única salvação dela e, ela a minha. Se todos nós temos uma missão, essa é a minha e a dela também, portanto, vem dá tudo certo. Tranquilizem seus corações e guardem esse segredo até que tudo tenha terminado, não contem a ninguém sobre o tesouro e muito menos do livro. Amanhã será o dia em que a resgatarei, faremos uma oração nas sagradas horas abertas e vocês as continuarão até que eu cumpra essa missão. Ele tomou seu café e foi para o seu trabalho.
Na hora exata, a meia noite, a beira do rio Solimões, após ter feito suas orações, abriu o livro na página 45 e esperou o momento exato em que o monstro apareceria para então começar o trabalho de desencantamento, as águas estavam muito revoltas uma grande onda vinha em sua direção, o vento forte aumentava o banzeiro. Ela se levantou numa altura de pelo menos cinco metros, boca aberta e os olhos vermelhos, pronta para dar o bote, o rapaz imediatamente sem se importar com o barulho que a cobra fazia, começou a ler aquelas palavras sagradas e a cada palavra, ela se contorcia se debatendo na água, fazendo esguichos sobre ele, tentando distraí-lo, ele no entanto continuava impassível e ao concluir a oração, a cobra grande deu um longo grito e desabou como se debruçasse sobre as águas, na força da lua cheia com as palavras do livro, o desencantamento aconteceu e das águas caudalosas o corpo de uma mulher apareceu boiando, ele rapidamente nadou aonde ela estava e a trouxe pra terra. Ela estava desmaiada, sua pulsação muito lenta e ele com todo carinho massageou seu peito e ela voltou a si, recebeu um longo abraço que selou aquele acontecimento.
- Onde está o livro? Perguntou ela.
- Esta aqui, por que?
- Deves queima-lo e enterrar suas cinzas num lugar onde eu não possa saber.
- Mas tens de fazer de maneira correta através da magia do livro se não, não vai funcionar.
- Não tive tempo de ler o livro, não saberei como fazer, preciso mais uma vez de sua ajuda.
- Claro, eu conheço bem o livro e te direi como fazer.
A moça agora já refeita do desencantamento, segura o livro nas mãos sorrir ao moço e levanta de onde estava sentada, está surpreendentemente linda e feliz por recuperar sua condição humana, dar saltos de felicidades, corre rodopiando a beira do rio, depois volta abre o livro senta-se sobre um tronco de uma árvore caída. O rapaz também está muito feliz, afinal ele protagonizou toda aquela história, superou seus medos e o preconceito dos pais, pois pensavam que estava louco, inventando em sua mente uma mulher que virava cobra, já não há mais dúvidas ou provas a serem vencidas, pensava ele, agora era só desaparecer com o livro e terminar de uma vez por todas com todo aquele capítulo. Porém, observou que ela estava um tanto distante de si, o olhava de uma maneira diferente como se quisesse lhe dizer algo e esperava o momento exato para falar, e como pôde segurar aquele livro e abri-lo como estava fazendo. Mas, antes mesmo que ele dissesse alguma coisa ela falou.
- Você está certo quando pensa assim. Como ela pode ver, pegar ou abrir o livro, quando horas atrás havia me pedido para queima-lo, eu também posso ler pensamentos lembra, o livro eu o conheço muito bem, estudei com meu pai por anos, sei o encantamento de cada página e pacientemente todos esses anos, ou melhor, por todo esse século fiquei esperando que o filho do coração de meu pai pudesse nascer de novo, crescer se tornar um homem, pois só ele poderia desfazer o mal que tinha lançado a mim.
- Então você me usou só pra conseguir se desfazer do mal, deixou que eu me apaixonasse, claro eu envolvido por esse sentimento era mais fácil de ser manipulado. Mas, você esta enganada, é loucura, eu não sou aquele monstro que lhe aprisionou naquela fera, eu a amo deve ser o efeito do desencantamento lhe afetando deixe eu lhe ajudar, levantou e caminhou em sua direção.
- Não se aproxime ou lançarei um encantamento em você, tudo que lhe falei é verdade e tenho como lhe provar, lembra o rapaz que foi encontrado perdido quase morto na floresta? Um animal o feriu do lado direito na virilha rasgando sua carne, com certeza uma onça, pois o ferimento profundo deixou uma marca inconfundível de uma garra, eu mesmo cuidei dele até ficar totalmente bom.
- O rapaz levou a mão ao lado direito de sua virilha, confirmando o que a moça dissera.
- A cicatriz que você tem é de nascença não é mesmo. Você já se perguntou como uma marca assim apareceu em você? E é justamente a garra de um animal, eu o acompanhei todo esse tempo e chegou o momento de você pagar por tudo aquilo que fez a mim e meus pais sofrerem.
- Espere, por favor, não tenho certeza se tudo isso é verdade, mas admitindo que seja, eu fui um monstro mesmo e não mereceria ficar vivo, só peço que não faça nada a meus pais, eles são as melhores pessoas que conheci e não seria justo que eles pagasse por um erro meu, prometa que os poupará.
- Claro, não faria nada que magoasse meus pais.
Então...
Ela pronunciou as palavras do livro e o encantamento se fez, ele continuava ali só que numa outra dimensão, via e ouvia tudo e a todos, mas ninguém o conseguia ver, esse seria seu pagamento, ver a desgraça ou a felicidades dos outros sem poder participar ou interferir e assim, Altair nunca mais fora visto naquele lugar, os pais no entanto, apesar do sofrimento com a perca do filho, anos mais tarde afeiçoando-se a uma moça morena clara, de cabelos longos e negros, mãos magras, mas firmes com um nome muito, muito estranho mesmo Sevlis a adotaram como filha.
Fim