Eu fui para Ratanabá
Fez-se um auê dos infernos em torno da misteriosa Ratanabá, cidade mística incrustada, há trezentos milhões de anos, na floresta Amazônica. Está Ratanabá no centro de uma discussão que peca pela ignorância e descompromisso com a verdade, muitos que dela participam a fazerem-se de engraçados, sem que o sejam, unicamente para ridicularizar e difamar os oponentes políticos e religiosos. É deveras frustrante ver seres supostamente inteligentes envolvendo-se em deselegantes palestras que invariavelmente culminam em palavras ofensivas e, não raro, agressões físicas. Desejassem as pessoas, se dotadas de educação que o tema exige, ir ao encontro da, e não de encontro à, verdade, demonstrariam disposição, não apenas para ouvir as anotações divergentes, mas para executar estudos sérios e, principalmente, empreender uma expedição, à Amazônia, até a região em que, numa era remota, antediluviana, uma raça superior erigiu uma cidade gigantesca.
Aqui, nestas folhas de sulfite, escrevo, com uma caneta esferográfica de ponta fina que eu comprei, ontem, na papelaria perto de casa, o testemunho de uma aventura que protagonizei, há uns três anos. Uma aventura inesquecível.
Assim começou a minha história: em um domingo, ao verificar no extrato bancário a minha caderneta de poupança, vi, para a minha alegria, que eu tinha um saldo razoavelmente elevado, que me propiciaria realizar a viagem dos meus sonhos: ir à floresta amazônica, que sempre me despertou os instintos selvagens. Os olhos brilhando tamanha era a minha emoção, agradeci aos céus a educação que de meus pais e avós recebi, educação que me fez um homem parcimonioso, de hábitos simples, de refeições frugais. À noite, dormi, com os anjos, digo, tal qual uma pedra. Tratei, no dia seguinte, de agendar a viagem para dali uma semana. E no dia anotado para embarcar no avião, compareci ao aeroporto, entrei na nave espacial, e rumei à maior floresta da Terra. Estabeleci-me, na capital baré, em um hotel simples e aconchegante. Passeei por Manaus, durante os cinco dias seguintes. E neste quinto dia de viagem, ouvi, no mercado, três homens a conversarem, reservadamente, despertando-me a curiosidade. Falavam de Ratanabá, discretamente, perceptivelmente constrangidos, esforçando-se os três para não se fazerem ouvir por nenhuma outra pessoa. Foi em vão o esforço deles, afinal eu os ouvi. Intrigado com a história que acidentalmente me chegara aos ouvidos, acheguei-me, respeitosa, e prudentemente, dos três palestrantes, receando deles receber tratamento hostil, e perguntei-lhes, minha voz a transmitir seriedade, onde se situava a cidade misteriosa de que eles falavam tão apaixonadamente. De início, entreolharam-se, desconfiados, mas a minha postura, a minha fisionomia, o meu tom de voz, as palavras que usei para expressar-me, fê-los entender que comigo poderiam falar aberta e livremente a respeito de Ratanabá.
A tertúlia, animada, franca. Deram-me aqueles homens a localização da antiga cidade, há muito tempo perdida na floresta amazônica, misteriosa e selvagem floresta. Despediram-se de mim os três homens, e eles eu nenhuma outra vez os encontrei.
Duas semanas deles, apropriadamente vestido e apetrechado e munido com um bom sortimento de alimento enlatado, embrenhei-me na floresta, sem que pelas suas entranhas me ciceroneasse um poeta, e, enveredando-lhe pelo labirinto de árvores, a avistar animais sem conta, deparei-me com mistérios insondáveis. Eu me incursionava por uma região de mata densa, quase intransponível; feri-me, não poucas vezes, em espinhos pontiagudos de arbustos cujas folhas, verde-amarelo-alaranjadas rescendiam olor para mim até então desconnecido. E as feridas que os espinhos me abriram nos braços e mãos e rosto atormentaram-me durante algumas horas, poucas. Passaram-se os dias. Um dia, não sei eu quantos dias após o início da minha expedição, vislumbrei um objeto, que me pareceu uma cabeça, a uns quatro metros de altura. Cuidadoso, lentamente, circunvagando o olhar à procura de qualquer animal e coisa que pudesse me prejudicar, fui até ele. Era, reconheci de uma certa distância, ser uma cabeça aquele objeto, uma cabeça semicoberta pela exuberante vegetação, e cuja figura encontrava-se inscrustrada de residências de insetos e de cujo olho direito escapou uma serpente fina e compridíssima, que deslizou pelos interstícios da estátua, seu ombro direito, até desaparecer sob uma espessa camada de galhos, folhas, cipós e raízes. Tinha a cabeça, que era rochosa, o triplo do tamanho da cabeça de um homem adulto; estava seu nariz desgastado; seu queixo, com dois furos, um distante do outro um centímetro, o inferior um pouco maior do que o superior. Fitei-o ao ouvir, dele originado, assobios roucos, que se me assemelharam aos ouvidos vozes humanas. Intrigado, detive-me. Não movi nem sequer um dedo; suspendi a respiração. Assim que me senti seguro, após alguns segundos - não sei quantos, pois o tempo, assim me parecia, havia cessado -, movi-me, e foi então que notei que nenhuma folha, nenhum galho, nenhum cipó de nenhuma árvore se movia e que nenhum som ecoava na floresta em cujo interior eu me encontrava. Aterrorizei-me com o silêncio reinante, agourento, tétrico. Não era o silêncio um bom sinal. Era a bonança antes da tempestade (não é a imagem a melhor que eu poderia usar neste momento, todavia, embora incorreta, ela é, entendo, apropriada - além disso, eu sei que os meus leitores, que estão dispostos a acompanhar o desenrolar desta narrativa, compreenderam o que eu quis expressar, mesmo que façam ressalvas à figura que usei).
Não era, pensei, o silêncio símbolo de um ambiente hospitaleiro. Assim que movi um dedo, o indicador da mão esquerda, para levá-lo ao nariz, e coçá-lo, a cabeça rochosa moveu-se, petrificando-me - e aqui não uso força de expressão; é a imagem literal: eu estava petrificado, transformado em pedra. Creio que Fídias não apreciaria a escultura - compreensível: não fui agraciado com a beleza de Apolo. A cabeça de pedra moveu-se em minha direção, trazendo consigo folhas, raízes, cipós, galhos, e animas peçonhentos, e insetos, e serpentes, e roedores, e um corpo de pedra, que se destacou do que me pareceu uma vetusta muralha, e deu poucos passos em minha direção, revelando-se-me por inteiro: tinha uns cinco metros de altura e estava desgastada em inúmeros pontos, todavia conservava o seu esplendor, penso, original, de dimensões majestática. Assim que se deteve a um passo de mim, ordenou-me: "Entre." E abriu-se à direita dele um portão. Obedeci-lhe. Ao umbral, vi, diante de meus olhos, a escuridão absoluta, que me encegueceu. Iniciei jornada pelo amplo corredor, e às minhas costas fechou-se o portão. E desfez-se a escuridão que me havia envolvido. Apresentou-se-me a imensa cidadela, reluzente, aos olhos maravilhados. Prendi-me a admirá-la até o momento que senti, tocando-me a mão, uma pele fria e macia, que me chamou a atenção. Uma criatura pequena, de, se muito, meio metro de altura, de três olhos, quatro pés e seis braços, de doze mãos, dois em cada braço, e com oito dedos, de trinta centímetros cada, em cada mão, fitava-me, sorridente, a irradiar felicidade, como se esperasse por mim. Falou-me; não lhe entendi uma palavra sequer; entendi-lhe o gesto: pediu-me que lhe seguisse os passos. De todas as palavras que ela pronunciou, identifiquei apenas uma: Ratanabá. Eu estava na cidadela misteriosa, da qual há muito tempo se fala, e da qual nada se sabia a não ser lendas e mitos saídos da cachola de pessoas que não são conhecidas pela sensatez e pelo compromisso com a verdade - em outras palavras, da cabeça de pescadores.
Não me atiçou suspeitas aquela escalafobética criatura, cuja aparência, estranhamente me inspirava simpatia.
Ciceroneou-me a criatura pelas amplas avenidas de Ratanabá. Deslumbrado com a magnífica e esplendorosa arquitetura de seus grandiosos edifícios, não ocupei-me em ouvir o que o meu guia me falava - e se o ouvisse, eu nada compreenderia, pois não lhe conhecia a língua, que não sabia eu se era da Terra, de outro planeta da Via-Láctea, de outra galáxia, de outro universo, de outra dimensão. Apresentou-me o meu guia uma das maravilhas da cidadela, uma biblioteca esplendorosa, repleta de livros grandiosos, de um, dois, três metros de altura, em pé, inclinados, abertos, e ratanabenses a compulsá-los com uma vareta flexível dourada. Eram os símbolos alfabéticos maravilhosamente desenhados, com esmero. Reinava o silêncio, silêncio hierático, e de ares hieráticos era, também, a conduta de todos os indivíduos presentes. Maravilhei-me com o que vi. Saímos da magnífica biblioteca, e caminhamos por uma ampla avenida; milhares de ratanabenses iam e vinham de todas as direções e para todas as direções, numa tagarelice contagiante - embora eu nada entendia do que falavam, senti que eles falavam de temas alegres. Eu me sentia feliz, estranhamente feliz, entre eles. Visitei museus, parques de diversões, palácios reluzentes, estádios esportivos; fui ao topo de um edifício grandioso, e, circunvagando o olhar, revelou-se-me toda a extensão da cidadela.
Caminhamos meu guia e eu durante não sei quanto tempo, e chegamos a um prédio que destoava do ambiente: era tétrico, agourento, inspirava repulsa, medo, terror. A criatura que era meu guia - e nomeio-a, a partir de agora, Dédalo -, alterou sua fisionomia, que assumiu aspectos sobranceiros, indicando que aquele prédio era uma chaga da cidadela. Não precisei de muito tempo para saber da explicação para a mudança de humor de meu guia, que me pediu que eu o acompanhasse para o interior do edifício, tão tenebroso! tão assustador! que fez-me engolir em seco e suspender a respiração. Se temia tanto aquele prédio e o que, eu presumia, no interior dele havia, por que Dédalo nele iria adentrar? Eu soube, ao ver o que ele pretendia me mostrar. À porta, bafejou-me o rosto, empalicedendo-me, ar gélido. Notei, acredito, tremores percorrerem o pequeno, estranho, corpo do meu guia. Seguimos a adentrar o prédio. Entramos em um corredor, de cujos domínios exalava odor putrefato, corrosivo. Metros adiante, deteve-se Dédalo diante de uma porta. Foi então que entendi: estávamos em uma prisão, em cujas entranhas, encarcerados, os mais asquerosos e repulsivos monstros de Ratanabá. Detive-me à direita do estranho Dédalo, e voltei-me para a porta diante da qual ele se encontrava. A porta deslizou-se para a nossa esquerda, e atrás dela havia uma parede transparente de não sei quantos centímetros de espessura, a revelar-nos uma cela de não mais do que vinte metros cúbicos,e ao fundo da cela via-se uma criatura teratológica, encolhida, de uns três metros de altura e dotada de nove tentáculos; cobria-lhe a cabeça pêlame espesso, ondulado, de um tom preto-fosco cadavérico; abriu a criatura a boca, e emitiu um grunhido, roufenho, desgracioso, grotesco. Um espetáculo horripilante. Fechou-se a porta. Caminhou Dédalo mais uns vinte metros, e deteve-se diante de outra porta; eu o segui, e conservei-me à direita dele. Tão logo a porta se abriu, tal qual a da primeira cela, vimos, no interior do cubículo, uma criatura esquálida de uns dois metros de altura dotada de caixa craniana transparente em cujo interior estava o cérebro, que mais parecia uma hortaliça verde-clara de aparência inconsistente coberto de minúsculas protuberâncias pontudas. Tinha entre os olhos um apêndice rígido, desmesuradamente desproporcional à cabeça, que lhe servia de nariz e boca - assemelhava-se a um bico de pássaro. Não tinha tal criatura mãos, e eram suas pernas, duas, finas. Não me pareceu um personagem antipático, e tampouco asqueroso como o da primeira cela, o de nove tentáculos - parecia, ao contrário daquele, bem asseado. Assim que foi a porta fechada, seguido por mim, Dédalo foi até a terceira cela, cuja porta abriu-se a um comando dele. No interior de tal cela, uma criatura de aspecto desgracioso - eu não sabia dizer se macho, se fêmea. Eram seus movimentos mecânicos, robóticos; sua voz, irritantemente metálica. Despertou-me sua estrambótica figura risos silenciosos. Fechada a porta desta cela, tocou-me Dédalo, com sua testa, que, distendendo-se, assumiu a silhueta de um, assim direi, funil, a testa, e invadiram-me a mente, numa velocidade estonteante, imagens que apresentavam a ação das três criaturas que eu vi encarceradas, e então vim a saber que era a de nove tentáculos ilusionista crudelíssimo, a de caixa craniana transparente transmorfa e a terceira uma entidade cujo maior talento era controlar os fenômenos naturais, em maior escala os ventos. Eram as três, todas elas malfazejas, oriundas de outras galáxias. Na Terra, há milhões de anos, aportaram em Ratanabá, e seduziram os seus habitantes, que,encantados com elas, as idolatraram, delas fazendo entidades celestiais. Aos olhos de minha mente, vi uma cena emblemática: as três criaturas extra-terrenas a palestrarem livremente, e uma barulhenta multidão a louvá-las em alto brado, mesmerizadas, a prosternarem-se diante delas. Transmitiu-me Dédalo, em nossa conexão mental, imagens do interior do cérebro dos indivíduos ajoelhados à frente dos três extra-terrestres: o cérebro deles desfazia-se em inconsistente massa pastosa preta-amarronzada. E sempre que abriam a boca, tais indivíduos, ao pronunciarem ou não qualquer palavra, exalavam odor mefítico que empesteava o ar num raio de duzentos metros, corroendo, assim, o corpo e apodrecendo o espírito de todo indivíduo que porventura se encontrasse em tal área. Mostrou-me Dédalo que, diante dos males que aquelas três criaturas causavam aos ratanabenses, o imperador de Ratanabá decidiu trancafiá-las e conservá-las encarceradas durante todos os anos que lhes restassem de vida.
Retiramo-nos Dédalo e eu dos domínios da tétrica prisão, de dar calafrios em todo homem, de enregelar o sangue de todo homo sapiens, e passeamos pelos parques e praças, e museus e bibliotecas. Saudamos centenas, talvez milhares, de moradores de Ratanabá. E não me cansei. E em nenhum momento senti-me desconfortável, constrangido, intimidado, à presença dos ratanabenses. Quantas horas - dias, talvez - cobri toda a extensão da misteriosa cidadela perdida em algum lugar da Amazônia, não sei. Sei, apenas, que foi tal expedição, uma viagem inesquecível, o melhor capítulo da história da minha vida.
Enfim, despedi-me de meu novo amigo, Dédalo, e retirei-me de Ratanabá.
Um ano depois, consultando as minhas anotações, seguindo as coordenadas que eu havia registrado em meu bloco de anotações, empreendi segunda jornada à Ratanabá - mas, para a minha surpresa, desagradável surpresa, e para o meu desgosto, eu não a encontrei. Ratanabá não estava onde ela devia estar. Tenho certeza de que fui ao mesmo local onde um ano antes eu encontrara Ratanabá. Sei que não me perdi, que eu não me confundi. Fui, eu sei, para o local, e o local exato, respeitando as minhas anotações, onde estava Ratanabá. Todavia, lá Ratanabá não estava. Estou certo de que a minha presença na cidadela misteriosa tenha convencido os seres que a habitam a de lá se retirarem, transferirem-se para outro ponto da floresta, ou para outra região da Terra, região que os humanos jamais pisamos. Assim pensando, cientes de que eu poderia vir a divulgar as minhas descobertas - o que, ao contrário do que, acredito, tenham pensado, não fiz -, os ratanabenses decidiram, não apenas emigrarem, mas moverem toda Ratanabá para um local que os humanos ignoramos.
Este é o meu testemunho, que ora publico, que irá servir de fonte para estudos sérios, e não para os néscios fazerem um fuzuê danado acerca da misteriosa Ratanabá.