A batalha no covil do monstro
Já não podia mais adiar a batalha. Fugira dela diversas vezes nos últimos dias. Por motivos diversos, mas ainda assim, não importava quanto fugisse, seu destino aguardava pacientemente.
Naquela manhã, não haveria escapatória, se quisesse comer teria que enfrentar o monstro que vinha evitando propositalmente. Já não tinha certeza se conseguiria vencê-lo a essa altura. Havia crescido de maneira descomunal e disforme, como se tivessem empilhado coisa sobre coisa. Seus companheiros lhe haviam dado o desafio; teria que enfrentar sozinho seu maior medo e derrotar, de uma vez por todas, aquele monstro que só crescia. Se não o fizesse, ele e seus amigos talvez tivessem que passar fome naquele dia.
Armou-se da melhor maneira que pôde. Vestiu a túnica para que nada entrasse em contato com a pele, pegou sua arma, áspera e desgastada pelo uso excessivo, e por fim passou na nela o líquido viscoso e inodoro, que era venenoso para o monstro que estava prestes a enfrentar. Estava pronto!
Entrou na toca daquele ser disforme e tenebroso. Com cautela, analisou o que lhe esperava. Era difícil identificar exatamente do que se tratava, o monstro era um monte de pedras com cantos pontiagudos, curvaturas grossas e fortes, ossos e restos das últimas refeições presos as saliências de seu corpo. O guerreiro sentiu repulsa e ódio ao ver os restos mortais de seus antecessores em meios aos destroços na caverna. Ele teria que enfrentar o que outros não ousavam. Mas havia feito uma promessa e a levaria até o fim! Ergueu sua arma e foi para a batalha.
A criatura nem ao menos revidou no primeiro instante. Estava submersa em meio a seu sono de dias. Quando o guerreiro conseguiu com um golpe de sua arma retirar uma de suas carapaças, o demônio da caverna respondeu em fúria. Fez desabar pedaços de seu corpo pesado de pedra e fez um estrondo de ensurdecer os deuses.
— Não entrem aqui! — gritou para seus companheiros do lado de fora. — Eu consigo!
Golpe após golpe a fera diminuía de tamanho, perdendo partes de si e dando esperança ao bravo guerreiro que ganhava confiança em seus ataques sucessivos. O veneno parecia estar surtindo efeito e enfraquecendo a criatura que passara de um tamanho assustador para um gerenciável numa batalha corpo a corpo. Mas quando tudo parecia estar se caminhando para a vitória, a criatura começou a se multiplicar. De dentro de suas partes já separadas do corpo principal, o guerreiro percebeu que ela se subdividia. Era como se tivesse cortado a cabeça da Hidra e as cabeças se multiplicassem, mas ao invés de um único monstro de várias cabeças, este era formado por diversos corpos disformes e sujos que vinham em sua direção. Um deles esquivou do ataque do guerreiro e caiu no fundo da caverna. Um fio de água começou a cair dentro da caverna, vindo de uma saliência no teto.
— Com mil demônio! — praguejou ele, golpeando um, dois, três atacantes.
Como em um piscar de olhos ele estava cercado. A água sumindo e começando a inundar a caverna. A sujeira do monstro tornava a água que descia límpida em um líquido opaco e fétido. Com dificuldade conseguiu esquivar de um ataque certeiro que lhe atingiria os olhos. A essa altura já havia se molhado inteiro e os monstros lhe feriram as mãos. A fraqueza já começava a tomar conta de seu corpo, mas não podia desistir. Estava perto do objetivo!
Em um grito de ódio e pavor, reuniu as forças necessárias para tirar um pedaço de um dos monstros e fazer o veneno aderir a sua pele e finalmente o matar. Jogou o corpo da vítima na água e passou para o próximo. Este era repugnante e coberto de crostas verdes e vermelhas, que causavam náuseas e preocupação ao guerreiro. De certo são venenosas, concluiu ele em pensamento. Com todo cuidado desferiu seu ataque. A crosta era lisa e a arma deslizou rapidamente, sem efeito prático. Enfurecido e com nojo o guerreiro lhe deu um pontapé e o jogou para longe, vendo-o submergir na água escura. Na queda, o monstro se chocou com alguma coisa e o som de vasos quebrando ecoou pela caverna. Produzindo aplausos de seus companheiros do lado de fora da caverna.
— Me deixem em paz! — gritou ele, para que mantivesse a concentração. Não queria se distrair, não agora que estava tão perto do fim.
A caverna já estava quase toda inundada quando ele viu um ponto de escape. Um dos corpos dos monstros caídos bloqueava a saída de água e fazia como uma tampa faz em um bueiro. Em seu caminho até lá, monstros menores surgiam de debaixo da água. Tentando lhe agredir e ferir o orgulho. Mas sendo ele um valente e poderoso combatente, desferiu os golpes mortais que tiraram do seu caminho aqueles seres repugnantes. Ele se apressou para retirar o corpo que bloqueava a saída de água. Deu-lhe um golpe bem dado e o retirou da frente. Como se tivesse feito um furo no fundo de uma garrafa, a caverna se esvaziou rapidamente, revelando seres ainda por serem combatidos.
Cansado, mas com determinação, o guerreiro partiu ao ataque dos monstros que ainda se postavam de pé. O último e mais tenebroso era o que tinha em seu corpo as crostas nojentas e pegajosas que ele havia jogado para debaixo da água. O monstro agora parecia enraivecido. Os dois travaram uma batalha épica, golpe atrás de golpe os dois combatentes se digladiavam como titãs. O guerreiro que já ficara sem o veneno em sua arma podia contar apenas com a aspereza da arma para causar maior dano ao monstro.
Foi então que teve uma ideia. Rolou para o lado e pegou um dos monstros abatidos que tinha um corpo mais pontiagudo. Usou essa ponta para desferir um golpe mortal em seu oponente e depois lhe atravessou a arma para encerrar a batalha.
Havia vencido.
Soltou a arma, limpou as mãos na túnica e se encheu de orgulho. Estufou o peito, ergueu a cabeça e foi em direção ao prêmio. Ele e seus companheiros comeriam essa noite.
Saindo da caverna em direção ao sol, o guerreiro surpreendeu a todos com o prêmio de usa batalha. Gerando comoção e despertando as palmas e recebendo tapas de comemoração e reconhecimento em suas costas. Colocou o objeto sobre a mesa e se sentou pesadamente.
— Está vendo? Não foi tão difícil — disse um de seus companheiros com um sorriso no rosto.
— Para vocês! Eu tive que enfrentar tudo sozinho!
— Mas isso é culpa sua, nós tínhamos te avisado para fazer isso antes — comentou outro.
— Eu sei, mas agora podemos comer finalmente — disse o guerreiro dando o objeto ao cozinheiro do grupo.
O cozinheiro pegou o objeto e o analisou com calma. Parecia pronto para o uso. Fez um sinal de concordância e aprovação com a cabeça para o guerreiro e pôs-se a seu trabalho.
— Mas afinal, quem é o próximo a lavar a louça?