Cigarros e álcool
Amos Ferguson sentou-se à minha mesa no restaurante, e perguntei-lhe o que iria beber.
- Um clarete cairia bem - declarou, satisfeito.
Chamei o garçom e pedi-lhe que trouxesse um Bordeaux novo - aquilo que Ferguson chamava de "clarete".
- E como foi a sua estadia na Índia? - Indaguei.
- A Índia... oh, você sabe - começou ele a falar, como que organizando os pensamentos. - A Índia é um lugar onde se vai por obrigação. Somente os nativos é que podem lá viver sem consequências...
- Mas há muitos europeus vivendo na Índia, bons súditos da rainha Vitória, com suas famílias - provoquei. - Até mesmo têm seus filhos lá.
- Oh, você não queira saber - redarguiu Ferguson, expressão angustiada. - A Índia... calor e humidade, chuvas devastadoras, animais peçonhentos, doenças contagiosas, nativos preguiçosos... certamente, é um local que não foi feito para que homens brancos prosperem. Até mesmo PENSAR ali é difícil... não admira que tantos peçam licenças médicas para voltar à Inglaterra, acometidos de neurastenia!
- Não é o seu caso, espero - inquiri.
- Se ficasse em Calcutá mais tempo, provavelmente seria este meu fim - admitiu ele. - Mas, não. Voltei a Londres para apresentar o meu relatório de auditoria ao Colonial Office. Espero não ter que pôr os meus pés nos trópicos tão cedo...
O garçom trouxe o Bordeaux e serviu-o em taças. Ergui a minha para fazer um brinde.
- Ao maravilhoso clima de Londres, que nos permite apreciar um clarete na temperatura ideal - propus.
- Bem... nem tão maravilhoso assim - avaliou ele. - Mas certamente, com um clima apropriado para o desenvolvimento de um império onde o sol nunca se põe.
Brindamos ao Império. Em seguida, apanhei minha cigarreira de prata no bolso do fraque, e a ofereci a Ferguson, que declinou.
- Grato, mas cigarros... não sabia que também causam neurastenia?
- Cigarros? - Questionei, sem deixar de acender o cigarro.
- Cigarros e álcool - acrescentou ele enfaticamente.
Abri as mãos.
- Isto faz de mim um sério candidato a me tornar neurastênico - avaliei, taça de vinho na mão, cigarro no canto da boca.
- Talvez devesse voltar aos charutos - aconselhou-me paternalmente. - Além do mais, cigarros são para a classe baixa... ou diletantes.
- Diletantes - repeti, como que apreciando a sonoridade da palavra. - Mas você ainda fuma charutos?
- Tento evitar este vício - assegurou solenemente.
- De fato... - acedi. - Como também contém tabaco, podem contribuir para que você também seja atacado pela neurastenia.
- Longe de mim tal sina! - Exclamou ele, erguendo as mãos como que para se proteger. - Mas creio que na Europa, o clima frio nos protege dos efeitos deletérios que o fumo provoca nos trópicos.
- É uma teoria interessante - concedi. - Talvez devesse desenvolvê-la, cientificamente falando.
Ferguson balançou negativamente a cabeça, ar de riso.
- Você sabe que sou apenas um auditor da Coroa, não um cientista.
- De qualquer forma, vou adotá-la, quando me perguntarem porque fumo cigarros, e não charutos - repliquei.
Ferguson encarou-me, desta vez confuso.
- Bem... certo... mas não cite o meu nome, por favor - declarou.
- Claro que não - garanti.- Não vou dar margem a que o nome de um auditor da Coroa seja associado a um hábito das classes populares...
E soltei uma baforada para o teto do restaurante.
- [10-11-2019]