Caminho de Santiago - Cap. 26/32 - Em Ponferrada
E lá estava eu em Ponferrada, uma das maiores cidades do Caminho com seus 67.000 habitantes. O nome vem de “pons ferrata”, ou Ponte de Ferro. È que o Bispo de Astorga, Osmundo, fez reforçar em ferro a antiga ponte de pedra ali existente que fora construída pelos romanos.
Outro ponto de real interesse da cidade é o Castelo dos Templários, o mais conservado nesse gênero de que se tem notícia em toda a Europa. Ele foi edificado no século XI para proteger os peregrinos que por ali passavam com destino a Santiago de Compostela.
Já hospedado no excelente Albergue Municipal San Nicolás de Flüe com 142 leitos, saí para conhecer a cidade, firmemente disposto a comer umas lulas fritas, daquelas em formato de anéis (Calamares a La Romana). Eu tinha saído de Astorga só pensando nelas.
Resolvi perguntar a um homem de uns 30 anos que vinha pela calçada em sentido oposto, se ele poderia me recomendar algum lugar específico para eu matar minha vontade.
- Claro que conheço, respondeu-me – É no Restaurante El Bodegón aqui perto, mas está fechado agora.
Agradeci imensamente e assim que me virei ele perguntou: – és brasileiro?
- Sim, por quê?
- É que gosto muito das coisas do seu país. Vocês lá têm samba, futebol e mulheres, muitas mulheres. Meu nome é Fabio.
- Prazer Fabio – chamo-me Sergio, mas no meu país não temos somente samba, futebol e mulheres. Somos conhecidos também por outras coisas – disse-lhe na intenção de deixar claro que tínhamos predicados diferentes desses.
- Sim eu sei, respondeu-me – vocês também têm muita violência e corrupção por lá. Aqui nós temos televisão e todas essas coisas se sabem, arrematou.
- A Espanha também tem seus problemas, continuou falando. Eu, por exemplo, estou desempregado há mais de um ano sem perspectiva de recolocação. Ainda bem que minha mulher está trabalhando e é quem praticamente está nos sustentando. Aceitas que eu te convide para tomar uma cerveja?
- Por que não, pensei comigo mesmo. Eu tinha que esperar que o El Bodegón abrisse e, além disso, uma cerveja não seria nada mau depois da longa caminhada que eu acabara de fazer.
Entramos num bom restaurante, todo espelhado internamente e com pesadas mesas de ferro com tampo de mármore. Sobre o balcão, aquelas magníficas chopeiras de cobre. Lindo lugar para um desempregado beber, pensei enquanto minha cabeça, como um periscópio, escrutinava detalhadamente o local.
Ficamos ali batendo papo sobre os fatos que vivenciei no Caminho, sobre as coisas boas do Brasil e também sobre as não tão boas assim. Quando falávamos da Espanha, podia-se perceber claramente nele uma revolta latente em relação à sua situação de desempregado. Sentia-se humilhado pelo fato da sua mulher estar honrando quase todas as despesas da casa.
O tempo começou a correr velozmente, pois a conversa era interessante e tal qual um correspondente lotado no exterior, eu me sentia satisfeito por estar ali em outro país interagindo diretamente com um de seus cidadãos. O problema era que Fabio não parava de pedir um chope após o outro. E eu, claro, acompanhando, mas um pouco preocupado com o meu pé esquerdo. A cada nova tulipa que chegava, Fabio repetia: "Arriba, abajo, al centro y adentro" - levantando verticalmente o copo de bebida, depois abaixando, para em seguida levá-lo à altura do rosto e finalmente bebê-lo. Depois da segunda tulipa eu já tinha aprendido e fazia o mesmo: "Arriba, abajo, al centro y adentro".
Achei que aquilo não acabaria bem. Em breve iria anoitecer.
Preocupado, perguntei a Fabio se o tal Restaurante El Bodegón já não estaria aberto.
- Claro, claro, amigo, me desculpe. Eu esqueci completamente que tu queres comer uns anéis de lula. Eu te levo até lá.
Fiz menção de pagar a despesa, mas fui rapidamente interrompido por ele – aqui não pagas nada, pois és meu convidado.
- Ramón, disse dirigindo-se ao homem que estava atrás do balcão e que me pareceu ser o proprietário: coloca aí na minha conta que depois acerto contigo.
O tal Ramón ficou meio bravo, mas aceitou dizendo: não vais levar três meses para pagar como fizeste da última vez, hein? Se demorares, vou cobrar da tua mulher de novo e ela não vai gostar.
Isso foi o bastante para arrasar o infeliz Fabio. Era visível seu constrangimento com aquela situação e com a resposta recebida. Seu orgulho havia sido atingido em cheio.
E lá fomos os dois já meio “alegres” em direção ao El Bodegón.
- É aqui, disse-me Fabio estendendo sua mão para despedir-se quando chegamos.
- Nada disso – vais entrar e jantar comigo, pois agora tu és o meu convidado, falei. Achei que era o mínimo que eu poderia fazer como retribuição.
O local estava completamente lotado e tivemos que ficar aguardando a nossa vez. Fábio recomendou-me o vinho da casa. O garçom nos trouxe uma garrafa de El Bodegón, um vinho tinto da Região Del Bierzo onde estávamos e que tinha no rótulo o mesmo nome do restaurante. Fomos finalmente anunciados e jantamos alegres entre uma taça e outra do vinho.
Saímos do El Bodegón e encaminhei-me para o albergue antes que este fechasse suas portas. Eu já estava trocando os passos, mas sentia-me bem e feliz. Fabio veio atrás de mim visivelmente "borracho" entoando uma canção espanhola revolucionária.
Ao passarmos diante do restaurante do tal Ramón, ele disse para entrarmos, pois queria tomar mais um chope, a tal "saideira".
Recusei a oferta por motivos óbvios. Ele ficou bastante aborrecido e me acompanhou até o albergue, insistindo para que ao menos eu fosse à sua casa onde sua esposa teria prazer em fazer-nos um café.
- Obrigado Fabio, mas vou para o albergue - preciso descansar porque amanhã tenho um longo caminho pela frente.
- Se tu fosses jovem como eu, não necessitarias desse descanso. Eu seria capaz de sair andando agora mesmo sem parar até Santiago de Compostela, respondeu-me.
Achei que talvez ele não chegasse nem em casa. Despedi-me e acelerei o passo. Ainda podia ouvir sua voz lá atrás dizendo coisas incompreensíveis.
Pobre Fabio, pensei. És mais jovem que eu, mas amanhã eu estarei livre para fazer o que quero, enquanto tu ficarás prisioneiro desta cidade, sentindo-te humilhado pela tua condição e vagando pelas ruas em busca de alento e consolo.
Antes de adormecer desejei firmemente que as forças do universo lhe conseguissem uma ocupação digna, pois um homem sem trabalho não tem honra e, sem honra, as pessoas são capazes de tudo.
Na manhã seguinte outro trecho do Caminho me aguardava.