O ENCONTRO
O encontro
Olhou-se uma vez mais no espelho, conferindo a maquiagem feita nos olhos. Sombras e traços os faziam maiores, profundos e brilhantes. Era esse o efeito desejado, visto que os descrevera como olhos grandes de turca. Gostara da descrição ouvida na letra de uma canção. Não previra que a partir da troca de simples e-mails chegaria a render-se a um encontro pessoal. Outros relacionamentos virtuais que tivera haviam terminado muito antes de se cogitar uma aproximação.
Arrependia-se agora das enganosas descrições feitas de si para impressionar a Plínio, e as enumerou enquanto retocava caprichosamente a maquiagem. Espelhara-se no jeito de ser de Celine, sua irmã mais nova: a poética palidez, a melancólica expressão, os cabelos longos e lisos e –absurdamente – a ele apresentara como seu, um poema escrito por Celine, decantando um amor perdido! (A irmã sofria por um noivado desfeito, derramando sua tristeza nas páginas de um diário escrito em versos).
Pousou o pincel com que tentava disfarçar o tom moreno rosado de suas faces sadias. Estava confusa: que outras mentiras sobre si mesma havia escrito em seus e-mails? Dissera-se desiludida dos homens com a perda de um amor... reduzira em três anos sua verdadeira idade...descrevera –se fisicamente frágil, ainda que seu corpo fosse, embora sem exageros, malhado com exercícios diários na academia.
Escovou os cabelos, colocou habilmente o aplique de cabelos naturais que sugeria um rabo de cavalo; mirou-se pela última vez no espelho, dando-se por satisfeita com o leve vestido, cujo efeito a remoçava; calçou a moderna sandália, afivelando-a nas pernas esbeltas: e, afastando do pensamento qualquer culpa saiu para o encontro marcado.
Conheceram-se através de um site de relacionamento; e trocavam mensagens quase diárias.
Ela se intitulara uma solitária Rosa do Deserto, desejando encontrar um Badawim que a colhesse.
Ele se apresentou como Ariocarpus, propondo ficar ao seu lado no areal, desértico, acompanhando-a na solidão: (A flor colhida logo seria perdida, esquecida, abandonada pelo beduíno nas suas intermináveis andanças, enquanto, uma Rosa do Deserto e um Ariocarpus vicejando juntos, seriam, enquanto vivessem, bons companheiros).
Dessa brincadeira criou-se o interesse, prolongou-se o costume, cresceu a amizade. Já não eram imaginárias plantas congêneres crescendo num silencioso areal, mas homem e mulher, Plínio e Celenita trocando opiniões, contando histórias, manifestando sentimentos... daí o desejo de deixarem de ser apenas amigos virtuais.
Plinio a havia convidado para a exposição de pintura que um amigo fazia num shopping; feita a visita, almoçariam no decorrer da tarde.
Do piso onde se encontrava ela o viu, no andar de baixo, diante do painel que abria o Vernissage. Reconheceu-o pela descrição feita do traje que usaria. Observando-o concluiu que ele não tinha a altura que dissera ter: (meço ai uns 1,80!). À distância, lhe pareceu mais baixo.
Desceu as escadas, aproximou-se, colhendo-o de surpresa. Fitaram-se sorridentes, reconhecendo-se: de pronto Celenita constatou que enquanto espadaúdo e de postura elegante, ele era de fato mais baixo; Plínio estranhou que a ela faltasse a fragilidade física e a palidez com que se havia descrito. Era uma sílfide de fato, mas embora delicada, exibia músculos bem torneados, firmes, cútis dourada pelo sol, que desmentia alguém que escondida nas sombras, sofria sob vascas de melancolia. Percorrendo o vernissage, olhando as mostras, conversando, examinando-se, iam, reciprocamente, descobrindo as mentiras trocadas nos papos virtuais.
“Dizem que me pareço com Bradley Cooper”, ele dissera... (...Faz-se por parecer... ela pensou, observando a barba bem curta que ele usava, o jeito de pentear os cabelo, que lembravam o estilo do ator... mas parecer... parecer...!!)
Entretanto, era melhor esquecer... ela contara inverdades, que comparadas às dele eram menos perdoáveis.
Trocando ideias se entenderam bem; partilhavam gostos comuns: apreciavam as mesmas bandas musicais, não eram frequentadores de baladas, gostavam de cinema, de musicais antigos, de pintura clássica... eram pessoas afins.
No restaurante Plínio esmerou-se em gentilezas: escolheu um bom vinho sugeriu com bom gosto os pratos do cardápio; e ela rendeu-se ao cavalheirismo de seus atos, à sua primorosa atenção, aos seus cuidados.
Dela ele apreciou o contentamento, a vivacidade, os comentários inteligentes, a graça do sorriso amplo de dentes perfeitos; uma visão antagônica à descrição que ela fizera de si mesma. (Onde a amargura, onde a recusa de entregar-se à alegria, onde a fuga para a quietude, onde a nostálgica solidão?)
Entregaram-se, entretanto, à magia do momento. De mãos dadas fizeram o circuito das vitrines, apreciando, exprimindo preferências; farejaram-se saboreando seus cheiros naturais, indisfarçáveis; tocados pela atração física, livremente se entregaram ao ardor de beijos e abraços,
Reconhecendo as mútuas afinidades, a ambos ocorreu o pensamento do que seria o próximo passo. Silenciaram, sem conter os corações alvoroçados.
Plinio ensaiou mentalmente palavras do convite, mas algo o deteve. Pela quinta vez sentiu a vibração leve do smarthphone no seu bolso. Verificara as chamadas aos dois primeiros toques... “Problemas??” - Celenita, perguntara. “Coisas do trabalho, nada importante, assunto resolvido‘‘ – explicara – passando então a ignorar as subsequentes vibrações. Mas desde o primeiro toque, sabia...: Eram chamadas de Mônica, que em sua vida tornara-se uma presença incômoda, que ele, por indolência, ia deixando permanecer, sem luta.
O que havia dito a Celenita a esse respeito quando ela historiara suas desditas amorosas? “ Também sofri dissabores”, - dissera. “Divorciei-me há três anos”... - o assunto não passando desse simples comentário, ficou esquecido.
A verdade, no entanto, era outra: nunca houvera divorcio, pois não existira um casamento. Ele e Mônica haviam mantido uma associação comercial e um relacionamento pessoal íntimo, cheio de altos e baixos. Descontente, retirara-se da empresa com o intuito de afastar-se, também, do convívio pessoal com Mônica; ela, inconformada com a separação, procurava-o assiduamente; sob os mais diversos pretextos, pedia-lhe aconselhamentos, pormenorizava o andamento da empresa,( como se ele ainda fosse o sócio) enquanto ela própria, sozinha, sabia gerencia-la de maneira brilhante. Insinuante, persistente, Mônica o manipulava: meiga, cariciosa, sensual, mantinha-o cativo, e ele se deixava levar...
Reprovou-se. Não seria justo para com aquela moça tão especial, que a ele tanto agradava, fazer uma proposta baseada apenas em emoções momentâneas. Controlado, afagou-a docemente, tomou-a pelas mãos.
“Saiba que você encantou-me, Celenita. Desejo que esse encontro seja o início de um relacionamento em que firmaremos nossa confiança e nos conheceremos melhor”. – disse, fitando-a nos olhos, com sinceridade.
“Gosto e agradeço que pense assim”, – ela afirmou, contente e aliviada, por ter-lhe sido dado tempo para corrigir a tolice de seus erros.
Já era noite. No estacionamento onde estavam seus carros, despediram-se. Plínio acompanhou-a até onde se encontrava o dela e a viu partir... Dirigiu-se- ao seu. Sem pressa tirou do bolso o aparelho que não parava de vibrar. Leu com desgosto as insistentes mensagens enviadas por Mônica. E, pela primeira vez em todos aqueles anos, sem lhes dar resposta, simplesmente apagou todos os recados... e desligou o celular.