pular no amor (ou do prédio)
ela estava finalizando um relatório importante para entregar a sua chefe, antes das 18h. não queria, mas achava que precisaria ficar depois do horário, outra vez, para adiantar algumas demandas. perdida dentro desse espiral de papeis, teclado e xícaras de café, o celular apita e ela olha a barra de notificações. era ele. deu um sorrisinho e abriu a mensagem.
“bora para o nosso lugar de sempre? eu quero te ver e tenho uma garrafa de vinho rs”. ela mordeu os lábios, em dúvida. tinha muita coisa para fazer, mas estava tão cansada e vê-lo seria tão bom. respondeu que sim e voltou ao computador para terminar o relatório. as coisas que esperasse o dia seguinte. saiu do escritório às 18:30. o sol estava indo embora, mas ainda havia claridade. foi andando até o velho prédio que se tornou o cantinho deles. adentrou no prédio, pegou o elevador e depois as escadas, que a levaram até o topo. ele já a aguardava com uma toalha estendida no parapeito, uma garrafa de vinho e duas taças. ele abriu um sorriso enorme ao vê-la. ela deixou a bolsa e os cadernos no chão e foi até ele. sentou no parapeito e aconchegou a cabeça no ombro dele. ele beijou o topo de sua cabeça e ficaram assim, observando o céu perdendo os tons laranjas e ganhar os tons variados de azul e as estrelas brilhando. abriram o vinho e brindaram, sem dizerem uma palavra. só os olhares eram o suficiente por enquanto. ficaram abraçados assim, por tempo indeterminado, seus pés se tocando, apreciando a companhia um do outro. até que ela quebra o silêncio. “é engraçado, né?” - ela diz. “o quê?” - ele responde, olhando-a com curiosidade. “você já pensou em se jogar daqui, alguma vez?” - ela devolveu a pergunta, sem olhá-lo de volta. ele ficou um pouco assombrado com a pergunta, mas já a conhecia o suficiente para vê além da esquisitice dela. tudo o que dizia tinha mais camadas e profundidade do que aparentava. “como assim? é meio esquisito perguntar isso, até para você.” ela achou graça. “por que é esquisito? olhar lá para baixo nunca te suscitou uma pequena curiosidade de como seria pular?”. “não sei, depende. - ele respondeu, coçando a cabeça. - não sei bem o que quer que eu responda. você nunca faz uma pergunta de forma aleatória”. ela ficou em silêncio por um tempo. ele aproveitou para observá-la bem. em como seu cabelo se soltava do coque frouxo, em como as sardas do seu rosto formavam uma constelação particular, em como seus olhos castanhos traziam um mistério que ele adoraria desvendar. “sabe, quando eu era criança, eu adorava ir para o apartamento da minha avó, mesmo ela morando no térreo. mas aí eu fiz amizade com uma menina que morava no sétimo andar. uma vez ela me chamou para brincar e fui para a casa dela. o apartamento era lindo e fui logo para a varanda. fiquei fascinada”. “o que te fascinou?” - ele perguntou, interessado. “sei lá, o vento, o sol, as copas das árvores vistas de cima, as crianças brincando lá embaixo, estar mais pertinho do céu…” ela fez uma pausa, sorriu para ele e tocou o rosto dele. ele pegou a mão dela e beijou-a. ela retomou a conversa. “acho que o que me chamou atenção foi ter uma nova perspectiva das coisas”. ele riu. “uma perspectiva diferente, gostei disso. você realmente acredita nisso?”. ela pendeu a cabeça para o lado e riu. “claro, se você está no alto, percebe as coisas por outro ângulo. é mais entregue a tudo”. ele balança a cabeça, ponderando. “não sei se estou entendendo o que quer dizer.” ela virou o rosto para encará-lo melhor e demorou seu olhar no dele. respondeu com um sorriso nos lábios. “me conta uma coisa bonita”. - ela pediu. ele quis dizer. quase deixou escapar o que vinha guardando a tanto tempo. pigarreou e desconversou. uma coisa bonita. “sardas” - ele respondeu. ela ficou surpresa, mas sorriu. “ótimo, agora imagine que está aqui e a pessoa que ama lá embaixo. o que faria?”. “agora entendi. eu teria vontade de pular para mais rápido estar com a pessoa que amo.” ela pega a mão dele. “sim, é isso. amar alguém, além da vulnerabilidade, anseio, euforia, é entrega. é se jogar não literalmente, do prédio, mas se jogar no sentimento, sabendo que ele vai te amparar.” ela sorriu e voltou a olhar para as luzes acesas da cidade. ele ficou em silêncio, absorvendo as palavras dela, enquanto olhava para ela. admirando seu perfil, com o sorriso no canto da boca. ela era naturalmente alegre. vibrante, esquisita, profunda. linda demais. “e se eu disser que quero me jogar agora? no amor, não do prédio, óbvio.” - ele perguntou, com expectativa. ela o olhou, analisando suas palavras. virou o corpo, para ficar de frente para ele e entrelaçou os dedos nos dele, se inclinou e beijou sua bochecha. “eu também quero me jogar no amor. - ela diz. e acho que seria a melhor queda da nossa vida”. eles se olham por um tempo, encostando as testas e respirando o mesmo ar. se abraçaram e parecia que estavam em casa. ele percebeu que ela trocou de perfume. ela entendeu as entrelinhas dele. aquele haveria de ser o encontro mais bonito da vida deles. o início de tudo.