CONTO DE UM MOÇO E DE UMA MOÇA DE OLHOS AZUIS
Era uma tarde de inverno!
Caminhava convictamente solitário por uma rua quase deserta, segurando o casaco contra o peito, como se, se o soltasse, ele o deixasse, pela força do vento frio.
Não chovia! Apenas o ar era tão gélido, que lhe batia no peito e no rosto, que parecia molhar.
Queria não pensar. Pensar, muitas vezes, dói! Mas, não tinha como evitar. Como aquela tarde, aquela rua quase vazia e aquele vento frio se parecia com o seu coração!
Decidira não mais amar! Não queria lutar contra a certeza de que amar significa se decepcionar.
Ou, talvez, não fosse isso. Era provável que criasse expectativas que não correspondesse a realidade do “amar”.
O fato é que, do alto seus trinta e poucos anos, tomara a decisão de que, viver sozinho, seria a garantia de não sofrer.
Não que fosse importante, mas, realmente acordar, pela manhã e não ter a quem dar um “bom dia!”, era maçante. Cozinhar para um e não dividir a mesa, tirava o sabor do alimento... porém, dane-se! Não tinha com quem se entristecer.
E a tristeza depende de quem?
Ora bolas! Ele não queria pensar. Só queria chegar logo em casa e sentar-se ao lado de uma lareira quentinha, ler um bom livro e tomar um café quente.
Continuava, de cabeça baixa, protegendo-a do ar frio, chutando as pedras do caminho e tentando afastar os seus pensamentos.
De repente, surpreendeu-o um gemido doído! Forçou-se a levantar o rosto e viu, à sua frente, uma pessoa que, ao pisar em uma falha da calçada, tropeçara e caíra. O gemido denotava a dor que sentira.
Muito embora preferisse evitar, ele não pode deixar de abaixar-se ao lado dela, com o intuito de lhe ajudar.
De dentro de todos aqueles agasalhos, ao olhar para ela, deparou-se com dois olhos, de um azul límpido e molhados pela dor, que, não queria, não queria, dardejou-o com uma força que atravessou a sua prudência.
Não tinha importância, fora apenas um segundo. Não seria um olhar, mesmo de olhos tão bonitos, que iria lhe abalar.
Estendeu-lhe as mãos para ajudá-la a se levantar, pensando consigo que não faria com isto, mais do que a sua obrigação.
Na tentativa de não ser tão rude, obrigou-se a perguntar: - você está bem?
Devia ter ficado calado! Apenas lhe estenderia a mão e seguiria em frente.
Ela respondeu: - Dói um pouco o meu tornozelo, mas, estou bem. Estou perto de casa e, com um pouco de esforço, consigo chegar. Obrigado!
Ok! Então, que se fosse. Mas, como se não tivesse controle sobre o que falava, falou: - Se ajudar, eu posso lhe acompanhar.
- Seria bastante útil, mas, não quero lhe incomodar.
A sua boca, mais uma vez, de moto próprio, abre-se: - Não será nenhum incômodo. Apoie-se em meu braço e lhe acompanharei.
Ela assim o fez e, como se não houvesse tantos agasalhos, sentiu, como um calor vindo da moça dos olhos azuis.
A sua voz era suave e os seus olhos, não obstante a dor, ou talvez mais por isto, passava uma serenidade que não julgara existir. Não que ele acreditasse em anjos, mas, julgou que seria um.
O caminho que fazia era curto, mas, parecia, a ele, que nunca chegava, porque era insuficiente para tentar ordenar os seus pensamentos e perseverar nas suas velhas convicções.
Neste cismar, despertou com a voz da moça dos olhos azuis: - Pronto! Chegamos. É aqui que eu moro.
Voltou, enfim, à realidade, e deparou-se com uma casinha modesta que primava, porém, pela beleza da simplicidade. Era pintada de branco e as suas portas e janelas, pintadas de azul em tom claro, um jardim bem cuidado, em seu gramado e suas flores, cercavam-lhe todos os lados. Como uma moldura, uma cerca confeccionada em madeira também na cor branca. Parecia uma paisagem exposta em um quadro.
- Obrigado pela sua companhia! Gostaria de entrar um pouco? Em um instante posso lhe preparar um café quente.
Naquele frio, a ideia era tentadora, porém, de forma quase rude, respondeu-lhe: - Não! Agora que você está bem, preciso ir-me.
Com uma ponta, quase imperceptível, de desapontamento em seu olhar, ela aquiesceu, agradeceu mais uma vez e entrou em sua casa.
Ao ver a porta se fechar, retirou-se, quase orgulhoso de si mesmo. Afinal, fez o que era necessário e agora podia voltar para a sua casa na paz da consciência.
Voltara para casa como todos os dias.
Voltara para casa como todos os dias...
Era a mesma casa, a mesma mesa de refeição, os mesmos livros da mesma estante, era a mesma leitura.
Entretanto, não conseguia ter a mesma concentração. Talvez que por ter tido a rotina quebrada por um pequeno incidente!
E aí, rememorou o acontecido.
Mesmo a contragosto, percebeu que se portara de forma descortês. Notou que, no caminho, ela o olhava, vez por outra, com o intuito de puxar conversa amistosa, talvez por gratidão. Só então percebeu que a sua postura não lhe possibilitara maior aproximação. Um pouco assustado percebeu que nem o mesmo o seu nome ele sabia. Ela também não sabia do seu.
Voltou a sua atenção para a leitura de um livro qualquer.
O relógio despertara lhe avisando que a noite já se fora. Sonhos estranhos! O que não sonhou, mas, quisera ter sonhado, é que despertaria para um dia de sol, mas, sonho é sonho e realidade não é sonho.
O frio era intenso e a rua estava coberta por uma leve camada de neve, o que tornava o seu coração mais melancólico.
O caminho de volta era o mesmo. O horário era o mesmo. Não havia nenhuma diferença.
Não havia nenhuma diferença, mas, parecia que havia. Lembrava, a contragosto, do acontecido no dia anterior e se perguntava o porquê de dar tanta atenção a uma situação tão banal.
O fato é que aqueles olhos, que olhara por um segundo, tivera o poder de lhe aquecer a alma que, não percebia, estava tão fria!
Fazia o caminho para casa. Mas, se apenas por exercício mental, pensou, fizesse a experiência de pensar naqueles olhos tão azuis? Apenas como exercício, ele pensaria. Já vira olhares tantos, mas, aquele, ele nunca vira.
Parecia que eles pediam permissão para invadir o seu coração, mas, como invadir um coração que nem porta mais tinha?
Para que se preocupar com isto se a sua vida estava em paz?
Mas o exercício era viciante e era, também, uma forma de se aquecer naquela tarde fria.
Voltou a atenção para o caminho; vai, que ele também tropeçaria!
Descobriu, inconformado, aborrecido e afogueado que, nas suas divagações, desviara o seu caminho e encontrava-se, outra vez, diante do portão da casa da moça de olhos azuis.
Rubro, afastou-se apavorado com a possibilidade de a sua infantilidade e imprudência terem sidas percebidas por ela. Certamente achá-lo-ia um tolo.
Seus passos nunca foram tão apressados.
Voltou para a sua casa jurando por um ponto final a tamanho desvario.
A noite doía! O frio doía! A solidão, que achara não sentir, doía! E não lembrava como doía!
Parvo! Tão acostumado e decidido em relação às suas convicções, tropeçava agora por tão pouco!
Outra noite, outro dia, voltava para casa. Fazia frio! O caminho para a sua casa era longo. Vai ver que mais longo se tornara porque de novo tomara o caminho da casinha branca de janelas azuis.
*
Ao se despedir, a moça de olhos azuis entrara em sua casa, pensando na sorte que tivera de não ter machucado seriamente o seu pé e na sorte de ter aparecido aquele desconhecido que a ajudara no caminho da sua casa.
Simpático, o moço, se bem, que meio esquisito! Bem, esquisito talvez não fosse bem o termo: caladão e esforçado para se parecer antipático.
Esquentava a água para o café enquanto repassava, em breves traços, a sua vida recente. Lembrava da mãezinha que partira, há um ano, deixando-a sozinha no mundo.
Lembrava dos dias que, quando voltava do trabalho, encontrava o café já quentinho feito pela sua mãe que lhe dava, também, abraços bem quentinhos. E a sua vida era assim: uma doce rotina de trabalho e de companhia querida. Quentinha!
Mas, o implacável tempo, dia a dia, minava as energias da sua doce velhinha até o dia que a energia se acabou e, como se o vento frio soprasse, a chama se apagou e a sua velhinha partiu, serena, dever cumprido mas, deixando-a sozinha.
E agora era diferente chegar em casa. Ela fazia o café. E tomava sozinha. E não conversava a não ser consigo mesma.
Uma amizade aqui, outra acolá, passavam-se os dias e a moça dos olhos azuis não se lembrava de que poderia dividir a sua vida com mais alguém que não fosse a sua boa velhinha.
Acostumara-se! Acostumara-se tanto que não se sabia solitária.
Por que se lembrava daquele moço com tanta insistência? Tudo não ultrapassou 15 minutos. Um olhar fugidio, um braço estendido e um silêncio torturante durante todo o caminho. Mas, aquele olhar fugidio lhe tocara bem fundo.
É como se encontrasse, sem nunca ter conhecido, alguém muito querido. Foi um instante. Ele mal falara com ela. Porque dar tanta importância.
Que sensação era aquela que lhe tomava por inquietação? A sua vida não era perfeita? O fato é que aquele olhar aquecera a alma da moça de olhos azuis.
Mas, e daí? Não sabia nada daquele moço, nem mesmo o seu nome e, ainda que quisesse não teria como o encontrar.
Voltava para casa como todos os dias. O seu tornozelo, que inchara um pouco, não a impedia de caminhar. Como sempre fazia, todos os dias, fazia o seu café. Na xícara, a café sereno e a fumaça em direção as telhas. Naquela hora, sem que assim o desejasse, lembrava daquele moço. A imagem dele, que mal vira, tomava forma diante dela como se ali ele estivesse.
Bobagem de moça! Travessura juvenil!
Um dia está bom: travessura juvenil! Mas, porque, no dia seguinte a imagem lhe voltara a mesma hora? Era uma insistência impertinente. Não podia ter a sua paz alterada por uma imagem que voltava com hora marcada.
Suas pernas a levantara e, independentes, a levaram até a janela, ornada com uma bela cortina amarrada em seus lados por um laço de fita.
Estacara sem crer que o que estava vendo era o que estava vendo: o moço estranho estava ali, a frente do seu portão, parado como um poste, olhando para a porta da sua casa. Não! A imaginação a levara muito longe. Não podia materializar um pensamento.
Não! Ele estava ali, de fato! As suas mão tremiam, mas não era de frio, era do fato. O que aquele moço fazia ali, parado, naquele frio, a olhar para a porta da casa da moça dos olhos azuis?
Sem saber como deveria agir naquela situação, não agiu: deixou que o coração o fizesse em seu lugar: com passos rápidos dirigiu-se a porta, abriu-a e eles se olhavam, ambos assustados, os corações agitados.
Ela não o convidou para entrar. Não era necessário. Naturalmente ele atravessou o jardim e passou pela porta.
Pensaram o que falar e não conseguiram falar uma palavra. Ele era o moço e ela, a moça dos olhos azuis.
Ele era solitário. Ela era solitária. Ele não tinha planos. Ela não tinha planos.
A vida, os planos, se fazem por si só. É só não os atrapalharmos.
O café estava quente e, naquela tarde de frio inverno, não o podiam deixar esfriar.
Eram duas xícaras!
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