Lembranças: Tudo Valeu A Pena
Certas lembranças são eternas. Como se, de tão arraigadas, fizessem parte do nosso ser. Todas as vezes que ouço uma certa música, me lembro daquela noite e dos acontecimentos daquela época.
Eu estava com minha turma de colégio num barzinho da cidade. Estávamos comemorando o final do ano letivo e também o final do curso. Estávamos terminando o segundo grau ou científico, como era chamado na época. Eu estava com dezessete anos e muitos planos e sonhos. Sempre fui uma garota rebelde e à frente do meu tempo. Na minha pouca idade pensava que era uma adulta e que podia fazer tudo o que quisesse. Eu já estava acostumada a consumir um pouco de bebida alcóolica e estávamos todos bebendo naquela noite.
De repente eu olhei para a frente e percebi dois lindos olhos me olhando fixamente. E aquela música estava tocando. Eu me senti hipnotizada e não conseguis parar de olhar para ele. Meus colegas estavam muito empolgados com a comemoração e nem perceberam que eu nem estava vivendo a comemoração.
Aquele homem parecia bem mais velho que eu. Eu me senti enfeitiçada por seus lindos olhos azuis. Seu sorriso me desarmou. Ele era lindo e eu senti que ali estava o amor da minha vida.
Ele estava sozinho e ficamos nos olhando por algum tempo. Até que ele fez um sinal me chamando e como alguém que está sob o comando do outro eu fui até ele. Ficamos conversando e tudo que ele dizia parecia interessante e inteligente.
Mais tarde ele me levou em casa e ficamos de nos encontrar no dia seguinte. Ele estava na cidade a trabalho e ficaria ali por mais um tempo.
Depois do segundo encontro eu já estava completamente apaixonada. Ele me chamou pra tomar um drink em seu hotel e eu fui. Não me importava com nada.
E ali eu me entreguei a ele sem me importar em perder a minha virgindade que na época ainda era um troféu pra ser entregue ao marido. Naquele instante eu pensava que aquele homem seria o amor de toda a minha vida.
Eu passei a me encontrar com ele praticamente todos os dias. Sempre nos finais de semana ele ia pra sua cidade. Mas eu não me importava com isto. Afinal eu estava apaixonada e ele também e declarava pra mim. Eu estava vivendo aquele amor com a certeza que um dia ficaríamos juntos.
Dois meses depois eu soube que estava grávida. Na nossa total entrega e irresponsabilidade, nunca tomamos a menor precaução. Acho que isto não tinha a mínima importância pra ele.
Marquei de encontrar com ele naquele mesmo barzinho. Eu cheguei e ele já estava me esperando. Aquele mesma música estava tocando. Pensei que o acaso estava me dizendo que tudo ficaria bem.
Eu contei pra ele sobre a gravidez. Esperava que ele fizesse uma festa e ficasse feliz. Mas ele não teve qualquer reação. Ouviu calado e assim permaneceu. Eu fiquei apreensiva. Meu coração ficou apertado. Ele simplesmente disse que ia me levar em casa. Quando eu perguntei o que a gente faria, ele me disse que conversaríamos depois.
Depois de três dias de absoluto silêncio dele, eu o procurei e soube que ele tinha ido embora da cidade. Não voltaria mais.
Neste dia eu chorei, eu me desesperei. Fiquei sem chão e sem saber o que fazer. Não sei se me sentia mais decepcionada com a covardia e falsidade dele ou mais insegura e amedrontada com aquela gravidez. Não poderia esconder de meus pais. Mas estava morrendo de medo pois eles eram conservadores e muito rígidos com as condutas morais.
Por fim, eu tive que contar aos meus pais que estava grávida. Foi um Deus nos acuda. Meu pai gritava comigo, minha mãe chorava e se descabelava.
-Quem é o pai desta criança, sua vagabunda? Como você me aparece grávida assim? Você me envergonha. Como vou andar de cabeça erguida agora? Se tenho uma filha que se perdeu, que agiu feito uma qualquer? Diga quem é o pai?
-Eu não sei.
-Não sabe? Então virou uma prostituta que vai com qualquer um e nem sabe de qual deles é o seu filho?
-Não. Ele foi embora e eu nem sei quem ele é ou onde mora.
-Se entregou a quem nem conhecia?
Eu contei pra meu pai quem era e onde ele trabalhava. Ele foi lá e tentou obter informações sobre ele.
Meu pai chegou em casa furioso. Partiu pra cima de mim. Ele me batia e minha mãe tentava me proteger dizendo pra ele que não podia me bater por causa da gravidez.
-Vai ser muito bom se ela perder este bastardo que espera. Sabia que o homem a quem você se entregou é casado? Que tem esposa e filhos? Na hora de se perder você nem se importou com isso, não é? Você vai fazer um aborto.
Eu permaneci calada e minha mãe disse:
-Isso eu não aceito. Aborto está fora de cogitação. Ela fez, ela que assuma.
Ficaram discutindo lá e eu fui para o meu quarto.
Meus pais estavam envergonhados e se preocupavam muito mais com o que a sociedade ia pensar ou dizer do que com o bem estar da filha. Como se um filho não tivesse o direito de errar.
Mais tarde meu pai foi até meu quarto e disse que eu estava proibida de sair de casa, que não me expulsaria mas que também eu não pertencia mais à família, que iria fazer uma reforma num quarto que ficava nos fundos de nossa casa pra eu morar.
Eu chorei a noite toda. Além do que estava passando ainda tive que enfrentar a rejeição de meus pais a mim e ao neto deles.
Eu fiquei como uma presidiária naquele cubículo durante toda a minha gravidez. Não pude sair de casa. Estava confinada naquele quartinho, passando frio, calor, abandono. Comi o pão que o diabo amassou. Nem meus pais nem meu irmão falavam comigo.
A mulher que trabalhava na casa trazia as minhas refeições e perguntava pelas minhas necessidades. Não tive direito a consultar um médico durante todo este período.
Não houve um dia durante toda a gestação em que eu não tivesse chorado, me desesperado, me sentido arrependida e culpada por toda esta situação. Minha mãe providenciou um parco enxoval para a criança.
Meu bebê ia crescendo na minha barriga e eu me lembrava do seu pai, aquele homem covarde, sem caráter, sem escrúpulos que me enganou, me iludiu e me deixou na situação em que eu me encontrava. Tentava odiá-lo mas não conseguia. Eu ainda o amava com todas as forças do meu ser e sofria pelo seu abandono.
Quando entrei em trabalho de parto, eles não me levaram para o hospital, pois as pessoas iriam saber da filha perdida e eles ficariam desmoralizados. Chamaram uma parteira que naquela época ainda era comum naquela pequena cidade.
Meu filho nasceu. Era um menino lindo e saudável. Ficava pensando se o pai algum dia pensou nesse filho chamado “bastardo”.
Ele recebeu o nome de Arthur e meus pais, alheios à minha vontade, fizeram o registro dele como se fosse um bebê que eles tivessem adotado.
Para a sociedade eles eram caridosos e bonzinhos. Adotaram um órfão. Mas em casa, eles nem olhavam na cara do pobrezinho. Eu continuava morar no quartinho do fundo com meu filho. Nunca me ajudaram em nada. Apenas pagaram uma enfermeira por um mês pra me ajudar. E depois, com toda a minha inexperiência, eu tive que me virar.
Eles nos davam aquele quartinho pra morar, roupa e comida.
Um ano depois, meu pai perguntou se eu queria voltar a estudar. Fazer uma faculdade. Como condição pra ele cuidar do “bastardo”, como sempre chamou meu filho, pra eu estudar ele impôs que eu não me aproximasse ou namorasse nenhum homem. Mal ele sabia que eu ainda amava o pai do meu filho e que estava tão magoada que não teria olhos pra mais ninguém. Eu fui estudar. Ele mandava me levar e buscar na faculdade.
Eu me apeguei a esta oportunidade.
Por fim quando formei fui trabalhar. Com o tempo eu consegui ir morar sozinha. Meu filho já estava com quase dez anos.
Criou-se um impasse. Ele não queria ficar com o Arthur pois nunca o aceitou, mas não queria que eu o levasse pois poderia dar o que falar na tão importante sociedade local.
Eu fui e levei meu filho sem nem dar atenção aos meus pais.
E deu o que falar na naquela sociedade hipócrita. Por muito tempo falaram e me apontaram na rua como uma perdida. Por muitos anos meus pais não falaram comigo, como se eu nem existisse.
Mas eu não importava. Meu filho sempre foi lindo e inteligente. Herdou a aparência e os lindos olhos azuis do pai. Aquela criança era o que eu tinha de bom na vida. Sempre fomos companheiros, amigos. Como se ele pressentisse que foi abandonado pelo pai, nunca perguntou por ele. E o pai nunca perguntou pelo filho também. Nunca voltou, nunca o conheceu.
Eu vivia para o meu filho e para o trabalho. E ele cresceu e sempre foi um bom filho, uma boa pessoa.
Tempos depois quando meu filho já estava com vinte anos, conheci um homem que se encantou comigo. Eu não me entusiasmei muito. Depois de muita insistência dele, começamos a namorar. Algum tempo depois, como nosso namoro estivesse ficando firme, eu contei a ele toda a minha história. Ele, como o homem gentil, bom e amoroso que sempre foi, aceitou e entendeu a minha situação. Coisa que meus pais nunca fizeram.
Quando me casei com este homem, meus pais aos poucos foram voltando a conviver comigo. Tive uma filha e eles a aceitaram como neta. Ah! Sim. Esta neta a sociedade aceitaria e acolheria como legítima. Nunca aceitei ou entendi esta hipocrisia. Perdoei meus pais. Mas nunca esqueci o que fizeram comigo e com meu amado filho.
Eu fui abandonada por meus pais e por aquele homem covarde, mas nunca abandonei meu filho.
Nunca amei meu marido como amei o pai do meu filho. Mas sempre gostei muito dele e o respeitei. Vivemos um casamento feliz, saudável e sólido.
Mas as lembranças, tanto boas como ruins, daquela tórrida paixão vivem em mim, são parte de mim.