Cafuné Materno
A ave maria começa a ser tocada no auto falante, impreterivelmente às 18:00 h autorizando o badalar do sino e a explosão de melancolia acentuada pela ausência de luz elétrica. Sentada no sofá, com olhar distante, ela se deixa embalar pelo canto que vem do alto da torre da igreja. Apesar da tristeza exposta na sua face, às vezes é possível perceber um riso retraído que escapa sutilmente pelo canto da boca. Me aproximo receando despertá-la e não raro fracasso na minha intenção sendo, muitas vezes, apartado com impaciência.
- Onde estava? Vá para o banho, rápido, sem reclamação - não ia de pronto, ela se deixava esquecer.
Aconchegava minha cabeça no seu colo e desejava que o tempo parasse. Semicerrava os olhos e uma névoa imaginária mesclada de aconchego e silêncio me envolvia dando início a um momento mágico em que seus dedos mornos deslizavam por entre meus cabelos parindo um cafuné único e inesquecível. Nesses instantes, sentia um medo enorme de perdê-la e, às vezes, acordava do meu estado de sonho para fazer alguma pergunta aleatória só para ter certeza de que ela estava presente naquele momento.
- Qual a origem do meu nome? - Era o nome de um herói romântico de uma radionovela, bom, amoroso, vivia para sua amada. Ele a salvava de todos os perigos e tinha sempre uma palavra gentil para consolá-la. E a voz, nem me fale, era grave, pausada e quanta emoção transmitia! E, além de tudo, era muito bonito - .
- Como sabe, se no rádio apenas se ouve e não se pode ver? -
- Como uma pessoa com tantas qualidades pode ser feia? E para que serve a imaginação? Ele era bonito, sim, como você. Seja como ele: justo e amoroso e não deixe de correr atrás dos seus sonhos. Quanto a mim, só me resta sonhar, meu tempo passou; não soube ou não pude, sei lá???, conduzir minha vida. Com os olhos marejados ela tenta disfarçar o desapontamento consigo mesmo e a tristeza sentida -
A melancolia daquele momento ampliada pelo som da ave maria que sai da torre da igreja lhe alcança de chofre levando-a a reviver mais uma vez os desejos e sonhos não realizados. Hoje, mesmo adulto e sem nenhum dos fios cabelos de outrora, ainda sinto seus dedos mornos e o cafuné cheio de afeto que só as mães têm o poder de nos fazer vivenciar.