Congelado

Arthur estava aflito; tentou desbloquear o celular com as mão sujas de farinha mas só conseguiu sujar a tela. Encarou a mistureba de farinha e manteiga com desconfiança e lavou as mãos na pia. Limpou a tela com um pano de prato e pode ler com clareza “misture seis colheres de água gelada”.

Ele não queria desobedecer a receita, mas não havia água gelada na geladeira. Ele se sentia um idiota por não ter antecipado essa questão; bastaria ter lido a receita com antecedência.

Ah, mas Arthur não era desse tipo de gente, que se planeja. Se virava bem no improviso, no risco, no inventado, no presente. Antecipar não era com ele. Exceto em relação a dor. Arthur sofria. “Ela vai chegar e eu ainda vou estar aqui” – pensou misturando três pedras de gelo num copo de água para dar continuidade a receita.

“Ela”, no caso, era a atual namorada de Arthur que tinha feito uma viagem de três semanas para outro país. Como bom namorado, ele a incentivou na empreitada: “vai ser ótimo para sua carreira, para a sua vida, para o seu trabalho”. Por dentro, claro, ele se corroía de ciúmes: da namorada que veria homens mais interessantes que ele e que falavam francês; da carreira da namorada muito mais movimentada que a sua, das histórias que ela teria para contar das quais ele não faria parte. E Arthur sofria antecipando tudo que ela poderia dizer quando cruzasse aquela porta: “eu não te amo mais; eu quero me mudar para lá; você nunca vai entender como a França é incrível”.

A mistureba agora estava uniforme e lisa. Suas mão seguravam uma bola de massa que deveria descansar na geladeira por trinta minutos. Segundo a receita, tempo para ele fazer o recheio. Lavou as maças e começou a descascá-las e picá-las. Talvez a viagem tivesse sido difícil. Talvez ela confessasse – entre uma mordida e outra – o medo e o desespero que ela sentiu em terras internacionais. E talvez ela procurasse o colo dele, e se aconchegasse nele, e ele se sentisse o homem mais poderoso do mundo porque era o porto seguro dessa pessoa. Corte, sangue. Ele tinha conseguido se cortar com uma faca de serra.

Lavou o ferimento em água corrente e estancou a ferida com um curativo. Observou, com um misto de asco e fascínio, um filete de sangue se espalhar sobre a superfície da água com limão que recobria maçãs. Descartou a água e enxaguou as maças rapidamente; talvez houvesse algum sangue na torta, mas ele não precisava se preocupar com a vigilância sanitária.

Era um torta cujo o recheio era cozido antes da iguaria ir ao forno. Era a parte que ele mais temia pois envolvia fazer um caramelo e ele tinha experiência terríveis com isso. Para sua surpresa, tudo correu bem. Seu peito se encheu de confiança. Abriu a massa da torta – que já descansava por quase uma hora na geladeira – e apesar de algumas partes desniveladas a massa parecia boa. Deu uma ultima espiada na receita antes de derramar o recheio sobre ela. Sinal vermelho. O recheio devia ser colocado frio.

“Quanto tempo de congelador será que precisa?”. O relógio não era seu amigo. Ela já tinha mandado mensagem dizendo que tinha desembarcado. Ele ainda precisava arrumar a cozinha. Queria receber ela com uma torta, um chá quentinho, um cheiro de casa e aconchego. E seria algo novo, algo que ele nunca tinha feito para ela. Algo sobre o qual pudessem falar quando finalmente não houvesse mais nada sobre a França para dizer. Ela está a caminho e as maças ainda estão quentes. Quinze minutos devia ser bastante.

Então ele foi arrumar a bagunça, limpar a farinha derramada sobre o vidro, guardar os pacotes no armário, varrer o açúcar derramado próximo ao fogão. Atender ao telefone que vibrava insistentemente sobre o rack da sala. Era um amigo querendo contar o feito extraordinário da noite anterior que envolvia duas garotas, o banco de trás de um fiesta e uma caixa de morangos. Arthur iniciou a conversa resistente, mas logo foi capturado pela aleatoriedade e comicidade das palavras do amigo. Até que o interfone tocou.

De volta a realidade, Arthur viu que tinha uma mensagem da namorada dizendo que ela já havia chegado e esperava na portaria. Apertou o botão do interfone, escondeu a massa vazia no forno, e no congelador, infelizmente as maças tinham congelado. Teria apenas a si mesmo para oferecer para namorada. Destrancou a porta, respirou fundo. Teria que ser o suficiente, afinal ele não era um homem de planejamento, era bom em improviso.