A lagoa

Há uma lagoa em um parque estadual no interior do Brasil, pode-se afirmar que existem milhares iguais a essa em todo território brasileiro, porém uma é em especial pela história a ser contada. Há uma lenda urbana local que se popularizou e pessoas começaram a visitar do mundo todo para conhecer e reviver os fatos ou somente sentir a magia do lugar. Cercada por mata nativa e montanhas volumosas, as trilhas de acesso não são de extrema dificuldade para os aficionados em aventura e a estrada de terra é perfeita para off-Road, um carro comum se não for um Uno da fiat ou preparado para terra corre o risco de não chegar, com destino final uma lagoa de grande volume de água, sem abastecer nenhuma cidade ou um povo ribeirinho próximo, a recompensa da aventura uma encantadora beleza natural e em suas margens uma cabana de moradia bem simples, alguns dizem se tratar do século passado outros historiadores já publicaram artigos datando-a mais antiga ainda. A pequena cabana é feita de grandes troncos de madeira e barro para fechar as frestas, possuí somente uma porta e duas janelas, uma chaminé para a lareira e fogão a lenha, utensílios domésticos como panelas de ferro e bule para o café também permaneceram intactos por anos e por mais incrível que possa ser, são do percursor morador da cabana, seu construtor. Tudo no local está original e os visitantes que se aventuraram por visitá-la mantiveram intacta, como um século atrás e sempre deixavam tudo no lugar sem nada a levar, além das memorias e fotografias, um radinho de pilha antigo fora adicionado posteriormente e ganhou um charme a mais. Só de imaginar um lugar desses já podemos chamar de lenda. Mas essa lenda vai além de uma simples moradia, acreditava-se quem se hospedasse criaria os laços com o fundador e explorador secular e de alguma forma reiterasse a vida simples do caboclo. Não há fiscalização ou valores para a hospedagem. Porém a história não é da lagoa cercada por montanhas e animais silvestres com natureza intocada pelo homem, nem da singela maloca que comecei aqui descrever e sim de um conto de amor que aconteceu no interior da casa de madeira, como não ser uma história de amor? Uma lagoa, uma cabana, fauna intocada, sem energia elétrica, sem centros urbanos próximos, local perfeito para um casal apaixonado aflorar o amor um pelo outro. Momentos que passariam juntos a natureza e reviverem-se como Adão e Eva no paraíso. Na ocasião o lugar era procurado por poucos casais na primavera ou no verão, apesar da exuberante beleza não era notoriamente conhecida e certa dificuldade de chegar não parecia ser um local muito atrativo para os jovens que esperavam conforto, pelo menos até os acontecimentos não.

Começamos a história que virou a lenda, um casal entrelaçados de amor, o que não é nenhuma novidade para você imagino e sem querer ser piegas mas eles eram perfeitamente lindos juntos Ele um pouco mais velho e ela com sua jovialidade a flor, a idade não é exatamente necessária percorrer, nosso protagonista vindo do interior havia mudado para a capital há muitos anos, cidade natal dela e onde se conheceram, estavam com intenção a beira de se casarem, faltava só o pedido oficial, quem não se apaixonaria por uma bela menina mulher? muito afetiva, de laços familiares muito forte, com uma pele branca como a neve e olhos verdes, cabelos negros e lisos, seria o amor à primeira vista. Eles conheciam as histórias da existência de uma cabana as margens da lagoa no parque estadual, próximo da cidade onde passariam um final de semana e com o namoro em pleno curso visitar alguns parentes entre os pais dele. A ocasião seria perfeita para um dia na cabana onde os laços de amor poderiam ser concretizados em um sim, aceito, a intenção de pedir a mão da jovem e bela seria perfeito. Malas prontas, partiram para o interior, com uma caminhonete 4x4, levaram alguns mantimentos em conserva para apenas um dia e uma noite e retornariam no começo da tarde, era final de outono e o inverno se aproximava, casacos, roupas de frio, cobertas faziam parte da lista de sobrevivência, além de lanterna, um fogareiro a gás, algumas panelas (porque não se pode acreditar nas lendas que tudo estaria intacto na cabana) e duas varas de pesca. Como a intenção era pedir a mão da jovem o plano orquestrado era primeiro ir a cabana e depois a visita aos parentes, assim poderia já apresentá-la como noiva, muito astuto. A viagem foi bem tranquila 4h em uma estrada vicinal até a entrada do parque, o mapa para o lago estava em uma revista antiga onde fora feito uma a matéria do lugar e quase inviolável, na verdade eu os admiro são dois verdadeiros aventureiros e exploradores, sabiam da existência desse lugar e se não houvesse mais uma cabana, improvisariam sua pernoite em uma barraca, algo muito comum para eles que gostavam de viajar de encontro com a natureza. A partir da entrada do parque todas as estradas eram de terra, haviam muitas grutas e piscinas naturais e mais adiante desses pontos turísticos principais outra estrada em uma mata virgem fechada, o caminho para o paraíso. Via estreita e fora muito útil uma caminhonete 4x4, uma verdadeira aventura de jepeiros, enfrentar os atoleiros pelo caminho, alguns trechos o facão seria necessário em meio a mata fechada, por não ser usada por alguns anos a natureza recompôs-se no meio da passagem. Quando chegaram ao fim da via, havia um clarão no meio da mata com vista para a lagoa, era espetacular, só a viagem para conhecer o requinte natural já teria valido a pena, cercado por montanhas e nascentes naturais, cachoeiras e uma grande lagoa de águas límpidas, a vida aflorada, Estacionaram até onde era possível seguir trajeto e depois continuaram a pé até próximos a margem e logo encontraram a cabana feita de toras de madeira, como havíamos descrito e como nossos amantes puderam imaginar, tudo intacto, era consolador e a alegria tomou conta do deles, um abraço da bela em seu companheiro lhe dizendo – encontramos amor. Foi um momento de extrema felicidade. Com um pouco de força abriram a porta e as janelas, como há muito anos sem hospedar ninguém havia necessidade de uma limpeza, mas nada que desapontasse nossos protagonistas. A intenção era ficar até o dia seguinte, chegaram a cabana no começo da tarde, depois pegaram lenha para a lareira e no começo da noite já haviam se acomodado.

O lugar era perfeitamente incrível e romântico, ele acendeu o lampião com querosene e a lareira (sim eles levaram o inflamável e o lampião pertencia ao casebre) enquanto se alimentavam dos mantimentos trazidos, como já começara anoitecer o frio chegava de mansinho, se enrolaram em cobertas bem grossas e abraçados sentados à beira da cabana, tiveram o privilégio momentâneo da visão de ver o sol a se pôr entre as águas da lagoa, era possível ouvir a ebulição no momento em que o sol tocou a água, os raios cintilavam amarelos nas ondas que o vento soprava, a melodia era orquestrada pelo canto dos pássaros procurando abrigo, seguido dos cri-cri-cri dos grilos, era o momento perfeito para tirar a aliança escondida e pedir a jovem em casamento, ato concedido ajoelhado e pedido feito, o sim veio junto ao cerimonial das cigarras que testemunharam o momento mais feliz da vida deles, eternizado nas lembranças e nas histórias a contar para seus filhos e netos, assim profetizaram. Com a chegada da noite a visão das estrelas formavam a Via-Láctea e com ausência de iluminação artificial das cidades próximas era possível ter uma visão do infinito espelhando na superfície das águas calmas do mar doce, traçando o caminho para a constelação dos sonhos e desejos do casal, quando adentraram a cabana a meia luz do lampião, aqueceram seus corpos no desejo interminável de se amar, as sombras dos poucos utensílios pendurados do primeiro morador que detivera em vida outrora faziam o charme da arquitetura, no chão deitados em colchonetes os beijos volumosos e o padecer da inocência com os gritos e gemidos dos quais assustaram até as feras mais temidas da fauna local, uma noite onde os vagalumes invejaram as chamas que ardiam de dentro pra fora da rupestre morada, os animais todos estavam paralisados diante de tamanha devoção de acontecimentos carnais antes nunca presenciado. Seria uma noite da qual todo o frio que afora fazia nunca poderia penetrar dentro do pequeno paraíso formado. A luz da lua cheia enfim iluminava toda as recéns descobertas montanhosas, dava para ver o chão de terra viva, ver toda a floresta que não dormia, estavam eles no centro do palco, nada mais haviam para se preocupar ou mesmo planejar, a vida como nos primórdios, simples e afortunada, sem fim. Naquela noite abraçados na eternidade e pelo calor emanado pelos corpos ardentes, os primeiros raios de sol despontaram por trás da cabana, o verde das árvores ficaram coloridos, o canto do pintassilgo o despertar para o novo dia, a beleza do amanhecer ao lado de quem se ama não há como decifrar em palavras. Deveria ser bem cedo quando acordaram, não se tem previsão do horário, tudo o que era mundano ficara do lado de fora daquela cabana, com brasas ainda acesas e o bule com água fresca fervente, o café no coador de pano era a centelha do recomeço, haviam feito suas juras para sempre e aquele deslumbroso dia apenas começara. Tudo conforme haviam sonhado, até o momento da triste da partida.

Não tinham eles feito planos para pendurar mais alguns dias na cabana a beira do lago, mas como tudo era o mais próximo que chegaram do paraíso na terra, a dúvida pairou entre eles de ir embora, o dia lindo, o calor do sol no meio dia já lhes permitia banhos nas águas doce e cristalino lago, não precisavam cobrir suas vergonhas, podiam estar como a mãe natureza os abençoou, era um contato com tudo que nós perdemos ao viver e morrer com a pressa de não saber por qual razão. Tempo, era tudo o que eles tinham, permanecer seria a melhor e única opção, mas não por força maior ou do destino, mas pela força do querer, ambos estavam felizes como nunca estiveram antes, ainda sobraram algumas mercearias e dividir era tudo o que mais sabiam fazer, as varas de pesca também lhes seriam úteis a expansão da natureza lhes serviam o banquete que necessitavam, tudo a vontade somente estender a mão e colher. As horas viraram dias e os dias semanas, não pensavam em outro lugar, a magia do criador tudo ao natural. Os dias culminaram e os princípios da vida moderna não faziam mais sentido, viveram da pesca e da caça de pequenos mamíferos, das colheitas dos frutos nativos, tudo como se o espírito do primeiro morador moldassem seu novo estilo de vida, abandonando suas antigas vidas, renasceram no interior da mata, livres.

Naquele ano o inverno chegara forte, enquanto os Beatles saíram para turnê, o mais intenso inverno glacial os pegou, já não havia mais caminho de volta, a lagoa congelara, a neve cobriu todo o vasto campo com gelo, os animais que ali ficaram pereceram os outros migraram, somente era possível ouvir o choro do lobo uivando para sua solidão imensurável e do branco gélido frio que descansava no chão da floresta, tudo havia cessado. Os anos seguintes se passaram sem ninguém procurar a cabana, caiu-se em esquecimento coletivo, a fauna tomou conta novamente do seu habitat, a trilha fechou, a caminhonete se consumiu pelo tempo e pelo mato, as arvores cresceram ao seu redor tampando qualquer vista anterior a ela, a vida continuava em plena forma na canção dos pássaros, nos pica-paus que faziam seus ninhos nas ocas das grandes árvores, a onça pintada regressou a ser o animal mais feroz com seu gemido mais temível do lugar, a lagoa quase secou de tristeza mas as chuvas e as cascatas das nascentes levaram anos a consolar suas águas. Como nada nesse mundo morre de verdade, um dia tudo renasce, patrulheiros redescobriram a cabana do lago, alguns alunos historiadores da faculdade local ingressaram em documentos antigos que retratavam a lagoa e a cabana, com uma equipe de corajosos aventureiros desbravaram a mata para encontrar e redescobriram o mito esquecido, porém muito mais que que uma lagoa de lágrimas esquecidas e uma cabana de troncos da saudade, uma história que deveria a ser contada.

Uma história perdida, um diário de capa de couro achado e toda trajetória dos amantes que pereceram, o planejamento para a hospedagem em uma cabana esquecida à beira de um lago, o pedido de casamento, a primeira noite juntos a luz da lua como testemunha, o amor consagrado, a partida que nunca aconteceu, o lampião que desnudava os jovens em eterno e o singular ato de louvor, os dias correntes e subsequentes, como a natureza lhes proporcionava o fruto de cada dia. Toda a saga naquele pequeno caderno de capa de couro e escrito a mão, duas eram as caligrafias, duas almas compuseram suas histórias e a suas existências, como o inverno rigoroso os pegou e acreditou-se ter ceifado suas vidas. Dias depois a caminhonete fora achada ao meio da mata e nele documentos do casal, uma busca por antigos boletins de ocorrência descobriram posteriormente se tratar de desaparecidos de muitos anos atrás. Houve uma comoção dos moradores da cidade local e bombeiros fizeram buscas incessantes pelos esqueletos ou restos mortais que acreditava-se estar nas imediações, por dois meses trilharam o lugar e nunca encontraram nada. Biólogos afirmaram que seria muito difícil os animais terem esvaindo seus corpos sem deixar nenhum vestígio, apesar dos anos que passara, nem as mortalhas dos fúnebres foram encontradas. Novamente uma trilha foi aberta até a beira do lago e os primeiros a reviver o lugar único foram os habitantes vizinhos, depois outros casais começaram a pernoitar no lugar vindos de mais longe e a lenda começou a perder fronteiras quando os jovens amantes se desnudavam de toda a vida cotidiana e somente neles prevalecia o amor e quando o entardecer do sol encontrava as águas cintilantes da lagoa, com suas luzes amarelas corriam toda a sua extensão do mar doce, porem não mais se ouvia a ebulição da água em contato com o fogo do sol e sim do casal perdido a fazer amor incessantemente entre as constelações que agora lhe pertenciam. Na lenda de quem os visitou se diz encontrar uma árvore talhada a mão com seus nomes em volta de um coração: Paulo e Aline.

Fim