Até que a vida nos separe...
Até que a vida nos separe…
Num país pequenino em que as distâncias se consideram longas, longe nos anos e nas localidades, nasceram duas pessoas com o destino em rota de colisão.
Vinda de um meio desprotegido onde a finalidade das mulheres era constituir família, uma rapariguinha foi crescendo. Já mulherzinha apaixonou-se e, como qualquer apaixonado, amou sem restrições. Como se diz, o fruto proibido é o mais apetecido, numa altura de rígidos valores morais, acabou grávida e sozinha. O namorado assim que soube do bebé que aí vinha simplesmente abandonou-a.
Que grande escândalo, grávida e sem homem!
Numa terra distante um homem já feito resolveu partir fugindo a algumas dificuldades com que a vida teimou em presenteá-lo. Solteiro e sem compromisso conheceu esta jovem. Apaixonou-se, ou não… sei lá, resolveu casar e adotar como sua a criança que se estava a gerar.
Tudo parecia ter retomado o bom caminho. A rapariga deixou de ser falada pois já tinha pai para a sua criança e ele, tinha adquirido a estabilidade de ter uma esposa em casa para o ajudar.
Desengane-se, querido leitor, se pensa que tudo foram rosas. Talvez tenham sido, mas totalmente cobertas de espinhos.
O senhor que se tornou, ou tinha sido sempre, dependente da bebida, passava a vida embriagado. Não se metia em confusões com os seus conterrâneos, muito pelo contrário fugia sempre delas. Já quando chegava a casa a situação era completamente diferente. Ciumento como só um bêbedo consegue ser, e talvez porque o álcool lhe limitasse algum desempenho, acreditava plenamente que a mulher tinha amantes e que os filhos não eram dele. O facto é que a idoneidade da senhora era inquestionável, pessoa mais correta e respeitadora não havia nem haverá e de amantes nem uma ténue suspeita.
Entre pancada forte e feia na pobre mulher e com algumas ameaças de morte á mistura a vida ia avançando penosamente. Frequentemente a senhora tinha de fugir de casa e refugiar-se num acampamento de ciganos que existia na proximidade.
Neste acampamento existia muita solidariedade. Quem conhece as pessoas desta etnia sabe que entre eles a solidariedade é um dado adquirido. Sabe também que podem ser muito duros e inclementes em algumas situações. Já solidariedade para os não ciganos é algo que não é muito vulgar.
De notar que eu não partilho desta opinião. Por experiência própria sei o podem ser bastante.
Um dia cai no meio da rua e nenhum transeunte se dignou sequer a perguntar se estava bem. Um casal de ciganos correu em minha ajuda, ajudou-me a erguer e até quis levar-me para o hospital. Sempre há gente boa em todo o lado!
Para esta senhora eles foram como família. Davam-lhe abrigo, comida e consolo. Diversas vezes até roupa porque frequentemente tinha de fugir a meio da noite só de camisa de dormir
Num tempo em que a separação era uma vergonha, a senhora lá voltava para casa com a família assim que as bebedeiras do marido lhe o permitiam. O medo era constante e o sofrimento incomensurável.
O dia a dia tornou-se cada vez mais penoso. O dinheiro esfumava-se em álcool e a comida rareava em casa. A pobre senhora, já com vários filhos pequenos, tentava obter o sustento para a família. Lavava roupa no rio, por vezes descongelando a sua superfície, para algumas pessoas da terra, e fazia alguns trabalhos que surgiam muito esporadicamente. Trabalhar para uma senhora era impossível pois não a aceitavam a tempo parcial e muito menos com o ranchinho de filhos atrás. Para piorar a situação o marido ainda lhe retirava o pouco dinheiro que obtinha para comprar bebida.
Homem alcoólico não encontra trabalho, não o procura e quando o procura todos lho recusam. Os poucos que o aceitam arrependem-se em seguida por não verem eficiência no seu desempenho, despedindo-os de seguida.
Seguindo o velho preceito de que o que Deus juntou ninguém pode separar, a pobre senhora lá foi aguentando os maus tratos tentando proteger-se e aos filhos.
Os anos foram passando e a situação só piorava. Dizem que o tempo tudo resolve. Falsa esperança, neste caso só piorava.
Um dia o coração não aguentou tanta provação e a pobre senhora faleceu.
Na igreja prometeu: “amar e respeitar até que a morte nos separe”, e cumpriu religiosamente a sua promessa.
Se fosse atualmente seria, sem dúvida até que a vida nos separe e o sofrimento dificilmente teria durado tanto tempo. Uma separação seria a forma mais lógica de resolver o problema. Antigamente ficava-se preso para a vida e só a morte podia terminar um casamento.
Não sei se foi por vontade de Deus mas o certo é que a morte finalmente separou-os. Um dia não acordou e o sofrimento terminou…