UM AMOR SEM LIMITES
( by zildinha Alckmin )
Já fazia algum tempo que Cacau escondia de todos, as suas dificuldades cárdio-respiratórias.
Nem mesmo seus pais tinham conhecimento ainda que superficial, do seu real problema de saúde, e desconheciam a gravidade do caso. De uma forma até meio egoista, não quis deixar ninguém sofrendo junto com ela. Preferia carregar isto sozinha. Sempre abraçou tudo dessa forma. Também escondeu de toda a família o diagnóstico dado pelo médico: tinha uma cardiopatia congênita que só se manifestou na fase adulta aos vinte e sete anos, e há três carregava este fardo sem compartilhar com ninguém. Era jovem ainda, contava ai três décadas vividos entre estudos e trabalho. Terminou a faculdade de veterinária e escolheu aquela cidadezinha do interior para ter qualidade de vida. Já fazia alguns anos que ali fixara residência onde abriu um pequeno consultório e atendia sempre após as treze horas. Antes disso, era concursada pela prefeitura municipal e trabalhava no centro de zoonoses em um cargo meramente burocrático. Na atual gestão, não havia um planejamento de politicas públicas para animais. Ela que era apaixonada por bichos tinha suas frustrações por não poder fazer nada ou quase nada. Tinha sempre um chefe cretino que ocupava um cargo comissionado e não se interessava muito por apresentar um proposta viável de melhoria voltada para este segmento. Tinha que se conformar e manter o emprego, principalmente agora que havia descoberto o problema e precisava do plano de saúde que o município oferecia. Pelo menos isto.
Cacau, como os amigos a chamavam, na verdade era Maria Cláudia, uma jovem sonhadora que acreditava na melhora do mundo através da compreensão e do amor dedicado aos animais. Acreditava que somente cuidando dos animais a raça humana haveria de viver em harmonia com o semelhante
Seu rosto era meigo e seu olhar suave. Nunca teve medo da morte, mas agora parece que ouvia na porta a respiração dela. Por um instante ficou em pânico. Só por um instante
- Mas por que estou com medo? Chegar ou partir são só dois lados da mesma viagem. A vida é um círculo initerrupto, uma viagem constante de passageiros sem bagagem e mudamos de estação para ganhar novos aprendizados. Só quero ser feliz por mais um tempo. Ainda tenho alguns projetos para terminar.
Parou um pouco para descansar e controlar a respiração. Sabia que não podia fazer muito esforço. A espera era cruel. Para continuar vivendo, alguém teria que morrer e lhe doar um coração. Estava na longa fila de espera já fazia mais de ano. Que ironia! Por alguns momentos se sentia culpada por querer um coração novo, e ao pensar nisso, sentia remorso porque implicava em ser o fim da linha para outra pessoa.
E juntos com ela na fila, haviam crianças esperando por uma nova chance de ter um coração batendo no peito. A vida definitivamente não era justa.
Refletia sobre isso com um certo pesar.
Com este pensamento ficou ali na pracinha em frente a igreja até o sol se por. O sino começou a tocar chamando os fiéis para a Ave Maria. Ela se levantou e foi também juntar-se ao grupo que adentrava a igreja.
Ali de joelhos, se permitiu de mãos postas a elevar seu olhar de súplica para a imagem da Virgem Santíssima.
Pensou que nos momentos difíceis, até o pior dos incrédulos recorrem ao plano superior implorando pela vida, ou por um pouco mais de tempo.
Ninguém está de fato preparado para embarcar nesta viagem sem aviso prévio e sem bagagem.
- Mãe Senhora minha... Se for de vossa vontade, dai-me a calma necessária e sabedoria para superar este momento de espera tão longa sem a certeza de que vou sobreviver. Me entrego em suas mãos, Senhora minha. Lhe entrego minha alma. Cuida bem de mim.
E orou em silêncio.
Terminada as orações, saiu andando em direção ao seu pequeno apartamento que ficava a poucas quadras dali. Estava mais leve.
Chegou em casa, abriu a porta e viu que seu telefone piscava insensantemente indicando que havia recebido ligações.
Apertou o botão da secretária eletrônica e ouviu o recado: “ Senhora Maria Claudia, ligar urgente para o Instituto do Coração”
Entrou em pânico. E agora? Será que era uma boa ou má noticia? Respirou fundo e com muita calma ligou para o número deixado na secretária.
- Alô? – disse ela com a voz trêmula
- Recebi um recado para ligar urgente. Meu nome é Maria Claudia Santilli. Do que se trata?
Do outro lado, uma voz muito profissional e fria relatou o que estava ocorrendo.
- Senhora... Estamos com um paciente que foi vitima de atropelamento e está em processo de morte cerebral. Os médicos estão fazendo os últimos testes para finalizar a constatação e a família já foi comunicada. O acidentado era doador de órgãos e estamos aguardando somente a chegada dos parentes para a liberação e assinar os documentos das formalidades exigidas por lei.
A senhora é a próxima da lista e deverá vir imediatamente ao hospital para a internação.
Ela ficou muda.
Assim de repente, já não tinha esperança e quando menos esperava, a luz se acendeu.
A voz do outro lado insistia:
- Senhora, está me ouvindo? Deverá vir imediatamente para o hospital. Posso confirmar?
- Sim ... sim... claro, estou indo. Só vou preparar uma valise com algumas peças de roupa.
Desligou o telefone e ligou de novo para seus pais.
- Mamãe... aconteceu uma coisa... Não falei antes para poupa-los da angústia que eu estava vivendo nos últimos anos. Por favor, não me critique. Só me ouça com atenção. Vou receber um coração novo. Estou indo para o hospital agora. Preciso de você e do papai lá comigo. É no instituto do coração. Você vai mãe?
- Do outro lado em lágrimas, a mãe não se continha - Claro filha... papai e eu já estamos saindo. Chegaremos o mais depressa possível. Filha porque não contou antes?
- Perdão , mamãe. Depois falaremos sobre isso e explicarei os meus motivos. Sei que não justifica, mas agora não é hora de falar sobre isso. Só preciso de vocês comigo aqui. Me apoiando neste momento em oração.
Desligou e ficou pensativa por alguns instantes que pareciam uma eternidade. Sim... era isso. Se conseguisse sobreviver, se o transplante fosse um sucesso ia querer conhecer a família de seu doador para agradecer pessoalmente o gesto de generosidade. E a oportunidade de uma nova vida.
Preparou sua valise e chamou um táxi. Rapidamente o motorista encostou e Cacau entrou e sentou-se no banco de trás. Fechou os olhos depois de indicar ao taxista o destino. Fechou os olhos e um filme passou por sua cabeça. Nada sabia a respeito do doador, mas imaginava ser jovem. Ficou pensando na dor da família ao perder um filho de forma tão violenta e ao mesmo tempo pensava na alegria da sua família com a possibilidade de ganhar a uma vida longa. Dois extremos. Duas realidades. Assim é vida. Para um ganhar, outro há de perder. E nada pode ser feito diferente daquilo que de alguma forma já está traçado.
Quando aqui chegamos, já trazemos um passaporte carimbado com a data da volta. Só não imaginamos quando e nem de que forma, mas isso já está determinado.
Cacau chegou no hospital e foi se apresentar na recepção. Encontrou os pais ansiosos que ajudou a cuidar da internação. Foi levada para a sala de internação onde os preparativos iam ser iniciados.
Soubera pela enfermeira que a família do doador já estava no hospital assinando os documentos necessários para o procedimento que seria feito na manhã seguinte quando iria sair os laudos finais do estado do paciente acometido do coma com diagnóstico de morte cerebral. O tempo era precioso mais, tudo tinha que acontecer de forma cronometrada.
Na manhã seguinte, ela recebeu a comunicação de que fora confirmado a morte do paciente acidentado e que já estavam procedendo com a retirada dos órgãos que seriam transplantados.
Uma vida se fora precocemente, de forma lamentável e dolorosa, mas outras vidas poderiam através deste gesto receberem o beneficio de uma oportunidade de uma nova chance. Isso era um gesto de amor sem preço.
E assim, naquela manhã, Cacau foi encaminhada para o centro cirúrgico. Depois de longas horas, a equipe garantiu ao pais da paciente que a operação fora um sucesso.
Ela também era jovem e resistiu fortemente. Restava agora o período crítico do pós operatório e esperar que não houvesse rejeição de nenhum tipo.
Cacau acordou na recuperação. Só ouvia os barulhos dos monitores, estava meio confusa , mas aos poucos foi se lembrando de tudo. Uma enfermeira aproximou -se para fazer as perguntas habituais quando alguém acorda de uma anestesia após uma cirurgia tão demorada como é um transplante de coração.
Ela sorriu para a enfermeira. Estava viva. Tinha passado. Agora era esperar. o período crítico. Em seguida foi removida para a UTI, onde ficaria durante quarenta e oito horas em observação. Estava indo muito bem.
Passado tempo necessário, foi levada para o quarto onde ficaria ainda alguns dias. Se tudo estivesse indo bem como até agora, logo teria alta e iria para casa. Não voltaria ao trabalho tão cedo. Ia ficar afastada por um bom tempo para a recuperação total.
Enquanto aguardava seu restabelecimento, sempre tinha um pensamento de gratidão para com a família do rapaz de quem nem sabia o nome, mas que graças a sua generosidade pudera ter sua vida de volta.
João Otávio era um jovem que gostava de vida saudável, um ativista da causa animal nas horas vagas, mas que se dedicava a uma profissão perigosa. Era piloto de provas em uma montadora de automóveis que se instalara na cidade. Tinha vinte e oito anos, estava no último ano de sua graduação em engenharia mecânica. Morava na mesma rua que seus pais, apenas com seu cachorro um Setter Irlandês de linda pelagem cor de chocolates que atendia pelo nome de Boris. O nome havia sido escolhido em homenagem ao ator de cinema Boris Skarloff que não era de seu tempo, mas como adorava a sétima arte e curtia filmes clássicos, resolveu adotar este nome por conta do filme para o cão muito bem adestrado por ele. Boris só faltava falar. E sentiu profundamente a partida prematura do seu dono. A família estava de luto e não percebiam a dor nos olhos do cãozinho que uivava o tempo todo.
Marieta, a mãe de João Otávio, passado os primeiros dias, sabia que tinha que retirar os objetos pessoais do filho e desocupar a casa. Momento doloroso remexer gavetas e separar roupas.
Doou o que precisava ser doado, e retirou álbuns de fotografias, porta retratos e o cachorro. Não podia causar mais esta dor ao animal que já estava órfão. Boris foi levado para sua casa. Tinha que fazer isto pelo filho morto. Cuidar do seu cachorro de estimação, seu melhor amigo
João Otavio quando saia do trabalho pegava o cão pela guia e caminhava todos os dias até a casa de seus pais, onde quase sempre jantava com eles. Tornou-se um habito. Boris também se sentia em casa. Tinha uma boa família e em agradecimento sempre sentava e dava seus latidos como se fizesse um cumprimento e abanava a cauda.
Agora, Boris e a família eram só tristeza. Impressionante como o cão sempre que a porta se abria, ele corria para a sala e sentava na poltrona favorita de João Otávio onde ao lado havia um aparador com um porta retrato mostrando a foto do amigo.
Era de cortar o coração porque o cachorro subia na poltrona e lambia o vidro do porta retrato e uivava por longo período. Era como se chorasse a dor e a saudade do amigo querido que se fora sem se despedir. Depois se acalmava e ficava alguns minutos na poltrona só olhando a foto. Feito isso, saia de cauda abaixada e se dirigia para sua casinha na varanda da casa da família. Ali permanecia acabrunhado, não brincava mais como fazia antes. Era notório a sua profunda tristeza.
Um dia, passado um ano do acontecido quando Cacau já estava de coração novo batendo no peito, feliz por tudo ter dado certo, voltou ao hospital para saber a possibilidade de falar com a família de seu doador. Foi informada de que isso não era possível porque havia alguns princípios que tinham que ser respeitados e também esta era uma vontade da família que preferia o anonimato.
Cacau queria agradecer, mas imaginava que seria doloroso para a família olhar para ela sabendo que ali no seu peito batia o coração de um filho amado.
Nunca se esqueceu de agradecer todos os dias a esta alma generosa que lhe deu a vida. Voltou à sua rotina diária trabalhando pela manhaã na prefeitura e a tarde no seu consultório que abrira em um bairro classe média.
Depois de uma tarde inteira de trabalho quando se preparava para encerrar o expediente, uma mulher chegou com seu cachorro desmaiado. Era Boris que parecia ter desistido de viver. Estava magro e sua dona narrou a inapetência do cão e seu estado de depressão. Marieta deitou o cão na mesa de exames:
- Este é o Boris. Era do meu filho que morreu. Ficamos com ele porque não achamos justo doá-lo. Mas de uns tempos para cá ele não quer comer, fica só deitado, não brinca mais. Logo que meu filho se foi , ele entrava em casa e se deitava na poltrona favorita de João e ali fica um bom tempo, latia, uivava e depois se acalmava , mas comia . Agora ele não faz mais nada disso. Se fosse uma pessoa, eu diria que ele desistiu de viver.
Cacau começou a examinar o cão, e observou que ainda era jovem, auscultou, seu coração, seus pulmões. Estava muito magro, debilitado. Rapidamente, Cacau aplicou-lhe uma injeção e colocou um soro para correr com vitaminas.
-Ele vai ter que ficar internado. Está muito fraco. Vamos ver como ele reage. Não se preocupe. Tenho aqui um auxiliar que fica a noite tomando conta dos animais que estão em tratamento.
- Não tem problema, doutora...Acha que consegue salvá-lo?
ã- Farei o impossível. Amanha lhe informo como ele amanheceu. Vou colher material para enviar ao laboratório para uns exames. O resultado sai antes do meio dia. Manterei informada. Meu funcionário ficará atento.
Marieta se despediu e foi embora pesarosa de ter deixado o animalzinho, tão sozinho. Assim que ela saiu, Cacau foi até a mesa onde o cão ainda estava inconsciente. Aplicou-lhe outra injeção e começou a massagear o seu peito bem devagar e a sussurrar em seu ouvido:
- Acorda amigão! Estou aqui... cuidando de você. Vamos, reaja... Você ainda é jovem e forte... Vamos, acorde!
Com muito esforço Boris sentiu que era seu amigo lhe chamando à vida..com muito esforço abriu uma pálpebra, soltou um uivado triste e duas lágrimas escorreram de seus olhos. Cacau se emocionou. Nunca tinha visto um cachorro chorar dessa forma. Boris reagiu com esforço para sentar-se e num impulso ficou em uma posição mais confortável bem próximo de Cacau, deu um latido agudo e lambeu as face da médica.
- Isso mesmo amigão. Reaja... Estou aqui cuidando de você, garotão.
Boris abanou a cauda e deitou-se mais calmo e respirando melhor. Na medida que Cacau conversava com ele mais veloz sua cauda sacudia. Era um diálogo diferente. Na mente de Boris, no seu universo irracional ele reconhecia ali o coração do seu amigo batendo em um outro peito.Viu atrás dela o seu amigo lhe acenando. Sabia que João Otavio o amava de coração e sentia que seu coração estava ali bem pertinho cuidando dele com o mesmo amor. Adormeceu feliz lembrando de todas as brincadeiras que fazia com o amigo. De alguma forma seu dono estava de volta, diferente mas ele sabia que João estava perto. Tinha visto ele ali que veio cuidar dele.
Assim que o animal adormeceu, Cacau chamou seu funcionário que ficaria de plantão e passou as orientações. Queria um tratamento especial para Boris. não sabia porque, mas se sentiu afeiçoada a ele. Foi para casa pensando naquele Setter irlandês lindo e dócil, tão debilitado.
Na manhã seguinte quando recebeu os resultados do exames , observou que o animal estava desnutrido somente, nada mais grave . Quando chegou à clinica Boris não parecia o mesmo cachorro do dia anterior. Parecia sorrir emitindo latidos alegres e cauda parecia soltar-se tamanha a velocidade com que a abanava, quando Cacau adentrou o ambiente.
- Muito bem rapaz! Você parece outro cão. Parece que aconteceu um milagre aqui.
Boris latia querendo se soltar da correia que o prendia na maca. Cacau acercou-se do animalzinho e fez massagens circulares no peito que emitia sons de que estava gostando muito daquele carinho.
Informou Marieta sobre a recuperação de Boris que em uma semana depois foi dispensado com a continuação do tratamento para ser feito em casa. Já estava se alimentando bem. E mais feliz.
Mas Boris, não queria ir embora. Foi arrastado pela coleira a entrar no carro para voltar para sua casa que ficava há duas quadras dali. Não queria sair de perto do coração de seu dono.
E assim, todos os dias, Boris sempre que podia dava uma escapada e corria até o consultório veterinário até ver Cacau chegar para o trabalho. Ela lhe fazia um carinho no peito e Boris voltava para sua casa que era ali perto. Marieta não entendia o afeto dele pela veterinária e nem porque sempre que voltava desta visita corria para a poltrona de João Otavio lambia a foto como se a beijasse, abanava a cauda e voltava para sua casinha. Muito tranquilo e conformado
Simples assim... estava superando seu amor sem limites.
Encontrara de novo o coração de seu dono batendo em um outro peito que também o amava.