Amor e Vinho, líquidos

Amor e Vinho, líquidos

Troquei o PROZAC por um cálice de vinho tinto suave todas as noites. Entre o comprimido sem gosto e a bebida quente prefiro o aconchego que ela me traz. Nas leituras diárias substituí Roberts e Moyes e seus conflitos com final feliz por Bauman. O motivo? Não, não deixei as doçuras das obras de amor e a esperança da felicidade de lado, mas é que certos momentos da vida exigem de você mais da razão do que seu emocional corrompido.

“Você não consegue ficar só por muito tempo”... lembrar-se dessa expressão me traz a sensação de amargo à boca. Talvez uma segunda taça não faça mal afinal logo vou me deitar e talvez seja a forma correta de deixar as lembranças de lado, mas sei que de fato não consigo.

Suponho que ele não estivesse de todo errado um tempo atrás, afinal ele me conhece. Havia momentos em que a solidão me maltratava e encontrar atenção em outro, mesmo que fosse uma simples conversa, aliviava a dor da partida nas várias vezes que nos separamos. Mas algo definitivamente mudou há algum tempo... Será que Bauman consegue me responder?

Em “Amor Líquido” Bauman, sociólogo contemporâneo, dialoga sobre as fragilidades dos laços humanos, as flexibilidades entre os relacionamentos e a conjuntura em rede onde as relações podem ser tecidas e desmanchadas com imensa facilidade. Talvez eu esteja submersa nesse mundo liquido desde que partiu, porém me custa acrescentar a palavra amor na expressão.

Nenhuma relação foi como antes, a mesma expressão no rosto persiste com o inicio ou fim de um relacionamento, apática, sem brilho nos olhos. Lembro-me bem de certo encontro, que mesmo com boa comida e papo convidativo acabara sem trocas de mensagem no dia seguinte, como se o jantar fosse apenas o produto final de um acordo e cada um seguiu sua vida normalmente.

Toda essa fluidez não me assusta. Mas percebo que a frequência com que conheço novas pessoas tem reduzido. Não tenho a mesma altivez para redes sociais e locais muito lotados me irritam.

- Será que sou uma mulher, de meia idade, rabugenta e antissocial? O pensamento me faz rir escandalosamente... Já é a terceira taça e nem havia notado. Devo estar meio alta afinal.

Mais alguns minutos se passaram enquanto observava o contraste das minhas unhas próximo à taça que segurava. Tempos líquidos são recentes, mas ainda assim contrariam minha persona. Não se pode chamar de amor àquilo que não toca profundamente a sua alma, não é? Isso me faz lembrar um texto breve lido semanas atrás que tratava sobre as características das pessoas que apresentam almas velhas. Segundo o texto, almas velhas são aquelas de um único amor, líricas, introspectivas...engraçado, eu me identifico com aquela perspectiva. Seria eu uma alma velha em meio ao amor liquido?

Uma única pessoa talvez consiga responder a esse questionamento. Há meses não me envolvo fisicamente com outra pessoa pois nem mesmo sexo, cuja base é instintiva e reprodutiva me atrai. O amor liquido torna as pessoas cada vez mais rasas, como me afogarei de amor uma vez mais?

É no oceano daquele amor antigo, guardado no peito, que desejo pular. Desde que ele partiu ninguém de fato arrancou sequer partes da minha armadura... no meu coração tudo permanece igual a quando me apaixonei por ele.

O vinho acabou, já esta tarde. Não consegui ler sequer uma página esta noite. Talvez a capa do livro com a imagem de um casal tão próximo me fizera devanear sobre nós, assim como aquela pintura que fizemos anos atrás pendurada na parede da sala.

-Boa Noite Bauman, amanhã voltamos a conversar sobre seu mundo liquido... já que a bebida escolhida por mim hoje me fez cair em lágrimas.

E mais uma vez o emocional a vencera...

Córdia
Enviado por Córdia em 29/12/2020
Código do texto: T7146732
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