Primeiro amor

A aula de Ciências estava prestes a acabar. Naquele dia tivemos aula no laboratório. A professora nos mostrou como acender uma lâmpada utilizando apenas um fio e uma pilha, que nós mesmos trouxemos de casa. Uma experiência tão simples, mas que deixou todos nós encantados com a “magia da corrente elétrica”.

Ela estava a duas carteiras a minha direita. Usava o cabelo preso num rabo de cavalo. Ninguém ficava tão linda naquele uniforme cinza sem graça como ela. Quando sorria, as covinhas mais graciosas do mundo apareciam em suas bochechas. Luísa era seu nome. Estávamos na 6ª série, mas estudávamos juntos desde o primário. Nossas interações resumiam-se a um sorriso tímido no corredor, e um caderno que peguei emprestado ano passado quando fiquei uma semana em casa por conta de uma gripe forte. Mas naquele dia eu estava decidido a mudar isso. Passei a noite ensaiando maneiras de como chegar nela. Seria logo após a aula, eu iria perguntar o que ela achou da experiência, talvez elogiasse seu cabelo... Não, isso seria demais, o que ela iria pensar. Melhor ir direto ao assunto, antes que eu mude de ideia.

O sinal tocou. Guardei meu material na mochila, e saí para o corredor. Adentrei naquele “mar cinza” de alunos todos vestidos iguais. Fiquei de olho para não a perder de vista. Meu estômago reclamou. Ele sabia que eu estava prestes a fazer algo que temia. Passei um mês inteiro tentando tomar coragem para esse dia. Pensando bem, a quem estou querendo enganar. Já faz anos que eu me preparo para isso. E agora chegou o momento.

Já na calçada eu a avistei parada junto ao muro, na espera pelo seu pai. Fiquei parado por um momento. Será que vou falar com ela mesmo? E se ela disser ‘não’? E se ela rir de mim?... Não! Eu já esperei demais por isso. E se ela disser sim? Essa possibilidade também existe. OK, eu vou.

Respirei fundo, e me aproximei. Ela deu um sorriso sem jeito quando me viu.

- Oi, Luísa.

- Oi.

5 segundos de silêncio depois.

- Foi muito legal a aula de ciências hoje, né? Sua lâmpada acendeu?

- Eu também gostei! A minha acendeu, e a sua?

- A minha também.

Mais 2 segundos de silêncio.

- Hmm... Luísa... Eu estava pensando...

- O quê?

Respirei fundo. 1, 2, 3...

- O que você acha de a gente ir à sorveteria aqui do lado amanhã depois do almoço?

Minha respiração parou por 1 segundo.

Ela sorriu.

- Claro, vamos sim.

Uau. Ela disse ‘sim’. Assim, simples. Tão simples quanto a lâmpada que acendeu na aula ao se conectar pelos fios com a pilha. Num circuito perfeito. Não consigui acreditar. E nem disfarçar o sorriso.

- Está bem, nos vemos amanhã então.

- Tá bom, até amanhã.

O pai dela chegou, ela entrou no carro e foi embora.

Comecei a caminhar rumo a minha casa. Ela falou sim! Era tudo o que eu conseguia pensar. Assim que cheguei, tomei um banho e almocei. Minha mãe percebeu que havia algo diferente em mim, mas resolveu não comentar. Nossa relação era boa, mas sem muito diálogo. Se eu tirasse boas notas e ajudasse com os deveres de casa já estava bom.

Fui para meu quarto e passei o resto da tarde planejando o dia seguinte. Com que roupa eu vou? Será que ela vai gostar daquela camiseta verde que ganhei de aniversário do meu pai? Vou de bermuda ou de calça? Será que vai fazer calor? Se fizer calor eu vou de bermuda, não quero ficar todo suado perto dela, vai que ela fica com nojo de mim. Mas e se ela odiar verde? Ela vai passar o encontro todo olhando para mim com a cor que ela mais odeia. Vou de branco. Acho que não tem quem não goste de branco. Mas ela pode me achar sem graça. Amanhã eu decido a camiseta. Sobre o que vamos conversar? Será que ela gosta de rock? De filmes de terror? De super herói? Não tenho ideia do que falar para ela. Ela vai me achar um estranho, nunca mais vai querer falar comigo. Eu não devia ter feito o convite, o que eu fiz? Por que fui convidá-la para sair?

O pânico se instaurou. Já não tinha mais a certeza de antes. A coragem foi embora, e estava acenando de longe. Provavelmente rindo de mim - “Achou que eu ficaria com você para sempre?” Onde eu estava com a cabeça quando resolvi marcar um encontro com a menina mais bonita da sala? É claro que ela não vai gostar de sair comigo. Sou muito burro. O que eu faço agora? Não posso desmarcar, ela vai me achar mais estranho ainda.

Passei o resto do dia remoendo meu medo, me questionando, culpando. Eu sabia que não daria certo, tinha certeza. Por que eu fui fazer isso?

Depois de algumas horas eu me acalmei. Comecei a imaginar como seria o encontro perfeito. A gente se encontraria ali no muro da escola, ela estaria linda e feliz em me ver. Caminharíamos até a sorveteria. Eu pediria de chocolate com menta, e ela de flocos. A gente conversaria sobre as matérias e professores que a gente mais gosta. E falaria mal dos que não gostamos também. Eu contaria sobre as últimas férias que passei na praia com a minha família, de quando eu fiquei todo ardido do sol. Ela riria de mim. Ela me contaria sobre a família dela, dos livros que gosta de ler. Ao fundo estaria tocando Something, dos Beatles. Ela colocaria uma mecha dos cabelos por trás da orelha, da forma mais delicada que já vi alguém fazer. Eu lhe faria um elogio. Ela daria um sorriso sem graça, olhando para baixo. Something in the way she moves...

Adormeci. No dia seguinte, me arrumei para a escola, ainda com frio na barriga por conta do encontro. Assisti às aulas sem conseguir prestar muita atenção. Ela estava na carteira dela. Dei umas espiadas de canto de olho para ver se ela olhava para mim. Nada. Ela estava totalmente concentrada no que o professor estava dizendo. Ela pode ter se arrependido de ter aceitado meu convite. Onde eu estava com a cabeça? Calma, ela pode ser tímida também, por que não? Uma garota linda como ela, tímida? Impossível. Mas ela aceitou meu convite. Talvez ela realmente queira sair comigo...

A última aula do dia acabou. Peguei meu material, e saí da sala. Mais uma vez, estava envolto na avalanche cinza. Só que daquela vez não se tratava apenas dos alunos da escola. Era o medo que tomou conta de mim. Caminhei o mais rápido possível para fora, e fui para casa. Quando, cheguei, sentei-me à mesa para almoçar. Minha mãe percebeu que eu já não estava com o mesmo ânimo do dia anterior. E não falou nada, como já era esperado. A comida parecia sem gosto, estava difícil de engolir. Terminei, escovei os dentes, fui para o quarto.

Era a hora do encontro. Eu olhei para a camiseta verde no armário. Para o CD dos Beatles em cima do criado-mudo. Pensei em seu sorriso. Somewhere in her smile she knows... Olhei para o espelho.

Resolvi dormir.

Claudia M K
Enviado por Claudia M K em 24/09/2020
Código do texto: T7071399
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.