O que o futuro nos reserva

A mais vívida dentre as lembranças de sua cidade natal certamente era a Erntedankfest, a Festa da Colheita, particularmente a última que ali passara, em 1938. Normalmente realizada no primeiro domingo de outubro, tomou conhecimento de que naquele ano seria antecipada para o final de setembro, pelos temores de que a guerra estivesse próxima.

- Vai ser uma parada festiva, no máximo - bravateou Jürgen, quando lhe declarou seus temores enquanto participavam da colheita de repolhos.

Perguntou se Jürgen estava se referindo à guerra ou à festa.

- Eu não devia estar te dizendo isso, mas o Karl foi convocado. Deve estar seguindo agora de trem para a fronteira com a Checoslováquia.

- Então foi por isso que suspenderam o festival deste ano em Bückeberg - percebeu. - Precisam dos trens disponíveis para transporte das tropas.

- Claro! O Führer prometeu que iria libertar nossos irmãos sudetos, para que se juntassem ao Reich!

O Reich estava a se tornar uma realidade, pensou. Mais cedo, naquele ano, a Áustria fora anexada à Alemanha, e tudo levava a crer que o próximo passo seria a incorporação de parte da Checoslováquia, habitada pelos alemães étnicos denominados sudetos. Não seria propriamente uma libertação, mas outra anexação.

- Se for como na Áustria, vai terminar tudo bem - avaliou.

- Os sudetos têm o mesmo sangue alemão que o nosso - afirmou orgulhosamente Jürgen. - Devem estar ansiosos por fazer parte do Reich!

Os rapazes acabaram de carregar o caminhão com as caixas de madeira cheias de repolho e depois pegaram uma carona até o vilarejo, onde viviam. Despediram-se na praça do mercado e foi cada um para o seu lado.

Ao chegar em casa, a mãe o recebeu com expressão tensa, enxugando as mãos no avental que usava sobre o vestido.

- Chegou uma carta para você. É da Wehrmacht.

Ele já sabia do que se tratava, mesmo antes de rasgar o envelope: havia sido convocado para o exército.

* * *

- Torben!

Virou-se ao ouvir seu nome sendo chamado. Era Antonia, uma das garotas da BDM que prestava serviço regular na mesma fazenda onde ele e Jürgen trabalhavam. Costumava pensar nela como sendo sua namorada, mas Antonia rira quando ele insinuara isso.

- Não sou de ninguém, Torben!

Antonia estava sorrindo, muito elegante no seu uniforme de BDM: saia longa azul-marinho, blusa branca de mangas curtas e um lenço preto preso ao pescoço por um arganel, parecendo uma gravata.

- O seu uniforme é mais bonito do que o meu - cumprimentou-o ela, acariciando seu rosto.

Ambos estavam cercados pela multidão que se aglomerava nos dois lados da rua principal que afluía para a praça do mercado, preparando-se para os desfiles daquela que seria a última festa da colheita antes do início da guerra. Mas nenhum dos dois sabia disso então.

- É prático, não bonito - minimizou ele, alisando a túnica cinza-esverdeada do uniforme da Wehrmacht.

- Quando o seu pelotão vai passar? - Indagou Antonia.

- Creio que logo depois que vocês da BDM desfilarem - replicou. - Não sei se vou poder ficar para vê-la.

Ela o encarou muito séria.

- No desfile não, eu sei. Imagino que vai voltar para o quartel logo depois... mas tenho algo para lhe contar antes que se vá.

Ele sentiu o coração bater mais forte. Será que Antonia finalmente estava sentindo falta dele?

Antonia encostou o rosto no dele e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Eu estou grávida.

Depois, afastou-se rapidamente e desapareceu no meio da multidão.

* * *

O trem, vagões cheios de soldados de uniforme cinza-esverdeado, começou a afastar-se da estação repleta de familiares e amigos dos que partiam. Braços que acenavam, mãos que se entrelaçavam pela última vez, lenços que enxugavam lágrimas de um lado e de outro. Ainda não era a guerra, mas os preparativos estavam a pleno vapor.

Sentado ao lado de Torben num banco de madeira do vagão de 3ª classe, Jürgen espichou o tronco para olhar pela janela para a plataforma.

- Desista, Torben. Ela não vem.

Acenou para a mãe, o pai e as duas irmãs mais novas. Torben só tinha a mãe, e ela estava fazendo um esforço visível para não cair no pranto.

- Por que será que ela me contou, Jürgen? E somente na última vez em que nos vimos? - Indagou finalmente Torben quando o trem dobrou uma curva e a estação ficou para trás.

- Vai saber - replicou o interpelado, aprumando-se no assento. - Mas eu, se fosse você, não me preocuparia tanto com isso.

Diante da expressão taciturna do amigo, complementou:

- Você sabe que o Reich incentiva que as garotas tenham filhos, não sabe? Então, pouco importa saber se essa criança é sua ou não. Antonia cumpriu a parte dela, e você também.

- Mas o que vai ser dela, Jürgen? - Exasperou-se Torben. - E se eu não voltar?

Jürgen riu.

- Torben, você sequer sabe se esse filho é seu ou não!

Torben lançou-lhe um olhar furioso, mas Jürgen passou-lhe um braço pelos ombros e apertou-o.

- Não se preocupe, se você não voltar, eu cuido da Antonia. Até dou o seu nome para a criança, se for um menino.

Torben ficou em dúvida se ria ou dava um murro no amigo e desvencilhou-se do abraço. Jürgen apressou-se em dizer:

- Se isso lhe deixar mais sossegado, claro.

- Cafajeste - murmurou em retribuição.

Ao redor deles, rapazes em uniformes cinza-esverdeado faziam algazarra. Por ora, não importava o que o futuro lhes reservava: o mundo lhes pertencia.

- [12-09-2020]