Fio Emaranhado

Eu sinto que mesmo o inverno precisou de calor este ano.

É julho, não há pessoas com seus longos casacos vagando pelas ruas ou exibindo o rubor na face que o vento costuma oferecer, os dias têm sido ensolarados, quentes e com uma brisa fresca, é como se o inverno carente pedisse mais atenção do sol que de forma gentil tem nos abraçado com mais força.

Choveu na noite passada, ela veio forte e intensa acompanhada de ventos tempestuosos que surpreenderam mesmo as árvores. Eu pude sentir na janela a violência das águas como um recado dos céus sobre o que estava por vir.

Todos os dias que posso, desejando que fossem todos os dias de fato, caminho por alguns minutos até o meu lugar favorito, é como se aos pés daquela árvore, sentada e sentindo a terra me tocar, eu pudesse encontrar a mim mesma e conversar sobre a vida, o sabor do café que bebi naquela manhã ou a contragosto da razão, falar sobre a saudade que sinto de quem eu fui.

Percebi o presente que a chuva deixara quando caminhei no fim desta tarde. O vento derrubara grande parte das flores e o chão parecia um tapete de sonhos em tons de rosa. O céu, com ciúmes de tamanha beleza, levemente parece pincelado em tons mais claros de rosa e talvez laranja, a visão ao longe conecta céu e terra em um puro e simples degrade de amores. Aos pés da minha árvore, sentada ao chão e admirando aquela imagem, eu consigo sentir paz.

_ O céu estará limpo na noite que breve cairá, terás uma bela imagem da lua.

A voz que me profere as palavras parece cada vez mais perto. Vejo a calça alinhada, a barra bem-feita e nos pés calçados que parecem de couro, nada lustrosos. Não me dei ao luxo de desviar o olhar por mais tempo, o por do sol é mais atrativo e senti certa tristeza em ver seus pés pisando nas flores e afundando no gramado um tanto alto enquanto caminhava.

_ Penso que sim, eu respondo.

E no momento seguinte foi inevitável não perceber o passo dado mais alto que o esperado, como quem desviasse de um obstáculo, próximo ao meu pé direito.

_ Uma pergunta menina. Quantos já tropeçaram e caíram em sua vida?

_ Não entendi sua pergunta.

_ Você entendeu sim, porém não acha certo falar com alguém que nunca viu sobre os sentimentos mais profundos que habitam seu coração, mas eu a conheço.

Seria apenas mais um que julga me conhecer, que avista minha superfície e desconhece minha imensidão. Talvez permanecer em silencio seja a solução.

Novamente o vejo dando um passo mais alto, exatamente no mesmo lugar, mas eu nada consigo ver ali. O vejo dar alguns passos e parar a minha frente e só então eu senti a necessidade de olhar para seu rosto.

Como quem ganha um sol particular, meus olhos são ofuscados pela luz do entardecer que magicamente se tornou mais forte e intensa, emoldurando seu rosto. O pouco que eu vi me mostrou sinais de idade, olhos semicerrados emoldurados por uma armação fina e uma barba grisalha. Eu realmente não o conheço.

_ É preciso ficar atenta jovem menina. Muitos são aqueles que não verão a linha e podem tropeçar e cair sobre você. O que fará? Normalmente quem se machuca pode te culpar.

Volto a olhar para o chão. Aquela cena parece fora do contexto, aperto minhas coxas na tentativa de despertar, mas não existe transe. Ele de fato está a minha frente perguntando sobre os questionamentos que devastam meu coração. Mas não sei o que de fato devo responder.

_Você sente que algo existe, talvez o chame de destino quando há esperança, outros dias de sonho quando parece mais distante. A linha que os prende está totalmente esticada, mas isso não significa que estejam tão distantes, ela me parece emaranhada.

_Sobre o que está falando?

É mais fácil se fazer de desatenta do que abrir meu peito, afinal.

_ Engenhosa você. Sabe exatamente sobre o que me refiro, mas tenta não apenas esconder o que sente, mas se reveste com algo que parece impenetrável. Sinto dizer, mas vocês continuarão unidos, pois a linha não pode ser quebrada.

Algo parece preso a minha garganta agora, se for palavras, parece o mais sensato engolir. Continuo em silêncio.

_ Você tem duas escolhas moça do rosto sereno. Desatar os nós ou dar alguns passos para perto dele. No fim desta linha, ele ainda pensa em você.

Por breves instantes eu pude ver uma linha vermelha amarrada em meu tornozelo e a forma como ela esticava pelo ar, ele já sabia que ela estava ali e foi dela que desviara. É difícil falar, mas é simples entender.

E naquele momento meus olhos passaram a me condenar.

_ O que eu devo fazer? Se o destino mesmo existe porque estamos tão distantes? Você me diz que não há como quebrar, e não sei de fato se me sinto presa.

_Você tem duas escolhas: Se optar por desemaranhar o fio talvez precise se aproximar um pouco, é como um nó que para ser desfeito precisa dos movimentos certos das duas pontas que ocasionalmente podem se tocar. Se assim o fizer podem até parecer mais distantes ao final, mas dificilmente derrubarão as pessoas que passarem pelo caminho de vocês, pois terão consciência da distância e de que o fio inquebrável não pode estar tenso. Ou pode simplesmente se aproximar um pouco para que a linha fique rente ao chão. Mas fato é, já viu alguém enrolar em um carretel um fio todo cheio de nós? Independente do tempo, dos nós ou de quantos tropeçarem na linha de vocês, o destino se encarregará de unir as duas pontas.

Não há como contestar o que ouvi, não há como não pensar em todos aqueles que já tropeçaram no fio, caíram em minha vida e eu não fui capaz de me atar. Por um breve momento eu olho através do homem e percebo que algumas estrelas já se mostram tímidas no céu e mesmo as lagrimas insistentes não ofuscam a presença.

_ Até breve menina, preciso ir.

Sem mais delongas ele se afasta e percebo seus passos altos enquanto cruza por outras pessoas em seu trajeto. Então eu noto que são infinitos os laços, que existem muitos fios esticados pelos caminhos. Olho para o meu tornozelo e vejo a delicadeza com que a linha diminui a tensão e pousa sobre as flores rosas, meu telefone vibra e a mensagem diz:

_Boa noite Serena, que seja de paz.

E eu sinto que de fato ela será.

Inspirado na lenda oriental de “akai ito”, lenda esta que tem chegado de diversas formas aos meus olhos nos últimos dias.

Córdia
Enviado por Córdia em 15/07/2020
Código do texto: T7006777
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.