Contos da Terra

O SONHO DE ZEZITO

(Saurimo, 22/05/2020)

Naquela tarde, o sol já tinha ejaculado o sémen ao mar sagrado que o aguardava ansiosamente. Os seios dos peixes, na água, já cantavam o regresso da vitória. O ar poluído, com perfume de amor e ternura, era a pura existência de um Ser Sagrado. Zezito tinha seus apressados 21 anos de vida terrena. Estudava 13ª classe no Magistério de Saurimo. Descansou, o convite do sono chegou-lhe sem o ter solicitado. Dizem que os dias são como o sol, ninguém os rejeita, porém as noites são trevas. O puto, como era chamado no seu bairro, sonhou que estudava na Universidade Católica de Angola, em Luanda, e lá conheceu uma menina de rosto ímpar que alguma vez seus atentos olhos fitaram. No sonho, era esbelta, corpo viola, lábios e nariz desenhados por Leonardo da Vinci e Caprio. Roubou dela um beijo apaixonado, à beira mar. Estavam nu de pensamentos. Nele, só o desenho dela permitia ver o mar além. Nela, só o beijo atrevido fazia sentido, naquela eufórica tarde. Era primeiro encontro. O jovem-homem era mais ousado e lento que a correria dum esperma pintado de uma saudade de muitos anos. Deitou ao chão, foi seguida pela sua amiga. Subiu ao monte sinai dela, fez cair gotas de ansiedade no seu umbigo. Só o ruído das ondas tinha sido a serenata mais próxima ao contexto.

—Acorda, ó Zé! Não te esqueças de que vais à escola —disse a mãe, num tom mais humanístico possível, pois era dia de exames finais.

–Está bem, velha, já vou levantar. Deixa-me só arrumar a cama —Respondeu o homem à mãe, numa voz esfomeada pela noite de excitação intensa, contudo interminada.

O rapaz tomou banho. Comeu às pressas, como quem vai viajar de comboio. Foi à escola e fez dois exames: Língua Portuguesa e FPSD. Envolvido pelo momento sublime cortado pelo destino, não conseguiu obter muitas informações sobre ela. Até então, sabia que era estudante de Comunicação Social na Universidade Independente de Angola. Quando Zezito regressou à casa de seus pais, estava entusiasmado pois os deuses tinham usado seus dedos aquando das provas realizadas. Tomou o seu almoço e deu um cabo feroz, como faz um soldado regressado da guerrilha. Foi ter com o seu velho amigo Nelo, com quem confabulou alguns projectos que tinha em mente. Já era noite, regressou à casa, deu um banho com urgência desnecessária, comeu e foram os filhos dormir antes.

—Beija-me, Zé, sou toda tua —alertava a jovem desconhecida. O destino tem imprevisibilidades de todo índole, episódios assim eram frequentes na vida daquele jovem.

—Ai, minha lua, levo-te comigo ao ápice dos desejos. Espero que nossos dias, nesse ser, se prolonguem —confessou Zezito, já levado pelo sabor do entrecruzar de lábios. Afinal, tratava-se duma mulher muito desejada pelos seus colegas da turma. Vivia na Centralidade do Kilamba, com os seus pais, razões foram mais que suficientes para ele gabar-se pelo sonho que sempre lhe ocorrera, não era muita coisa o Zezito.

—Mano Zé, acorda, a mãe tá a ti chamá —era a voz mais fresca da casa. Tratava-se da sua irmã Esperança, a mais nova filha. Minutos depois, compareceu ao chamado e disse «estou aqui, mãe.» Ela orientou que se sentasse. Sentou-se numa das quatro cadeiras plásticas que tinham em casa, obedientemente.

Contou a mãe que ano seguinte ele iria estudar em Luanda, como sempre foi seu sonho. Que estavam a conversar com alguns irmãos da igreja, para ver se o padre Paulo fosse conversar com o sô Bispo. Dependiam, essencialmente, da ajuda do Bispo Manuel Sakolo para lhes arranjar uma vaga. Para tal, haveria de ligar a alguns padres que eram professores na mesma instituição. Ele aceitou numa confirmação esperançosa que Luanda o aguardava.

Em Dezembro, dona Mwono, mãe de Zé, foi ver os resultados da quixiquila que fazia. Teve êxitos e, assim sendo, ligou ao sô Mário, seu esposo, para saber se se encontrava em casa. Mwono era vendedora de peixe fresco no mercado do Kandembe, em Saurimo. Sô Mário tinha uma pequena lavra no bairro Luar. Confirmou que se encontra em casa nesses moldes:

—Sim, dona Mwono! O que foi? —perguntou o homem, embora suspeitasse do que se tratava. Ela respondeu que era a questão das suas economias «é como sabes, marido, próximo ano, nosso primeiro filho quer estudar em Luanda. Então, é para avisar que já tenho alguns valores.» Foi notícia que animou os compartimentos de toda casinha, de dois quartos, feita de adobe, no bairro Kandembe, onde eles viviam. Mas como alegria de pobre dura pouco, dizem os antigos, eis que recebeu a dona uma chamada vinda do Bispado. Era o secretário do gabinete do Bispo a confirmar que as vagas já tinham sido todas ocupadas «irmã Mwono, Deus nos ama! Esperamos que estejais bem. Vimos comunicar-vos que o sô Bispo disse que já não há vagas. Deveis mesmo é esperar só no próximo ano.» Um «está bem, obrigada, irmão Neves» foi a única frase dela, naquele dia 18 de Dezembro de 2015.

Sinal evidente que nunca suas imaginações apresentaram alternativas. A decisão íntima do jovem surgira no pendor de parar de estudar durante aquele ano, não se sentia em outra área de saber. Dias passavam, noites vinham. Já não se tinha sonhos eróticos. Era importante conceber as sobras do destino. Não havia outros caminhos. Como nenhuma ideia é tão perfeita, na noite quenturada pelo sono ausente, Zezito recebeu notícia de que era possível estudar Língua Portuguesa perto da sua cidade natal. Seu amigo Nelo sugeriu Dundo, Lunda-Norte, por via de uma ligação à madrugada. Segundos seguidos, convenceu-o o sono e aceitou a viagem da noite dezembrina.

Dia 20 de Dezembro era festa dupla: Zé completara mais uma risonha primavera e transitara de classe, dando um adeus ao ensino geral na condição de educando. Mexiam as cabeças e partes adjacentes ao corpo aqueles a quem cujas técnicas de dança o destino não deu por uma questão tímida de seus moldes de vida. Vida que dá oportunidades paradoxais a cada um. Depois de passar o clima de páscoa, Zé informou. Mas seus tios disseram que já não tinham condições de cooperar materialmente. Ele convenceu os pais, com o pouco que tinham, permitiram-no viajar em Janeiro para Dundo. Foi recebido por um grupo de outros estudantes provenientes da mesma cidade.

Testou e foi aceite no curso de Ensino de Língua Portuguesa, Escola Superior Pedagógica da Lunda-Norte. Era razão de conforto emocional, pois se tratava de um curso desejado, embora fosse num contexto díspar. O recém-estudante conheceu a Victória, uma jovem atraente. Num dia, saíram para passeio. Estavam sentados no jardim que dava acesso à casa governamental. Vic, como assina em seus desenhos, questionou:

—Diz-me láuma coisa, Zezito: játiveste quantas namoradas? A resposta àquela pergunta configurava-se num cartão de visita que espelhava com clareza de sol a entrega do seu nome à musa. Então, fosse louco completo, lapidava sua língua antes de proferir uma palavra, a tom de exemplo. As garotas da sua idade configuravam ideias de que tais respostas fossem um curriculum vitae crucial para um sim namorístico.

—Jásaí, na verdade, com duas meninas. Mas não tinham ainda sido minhas namoradas —respondeu, enquanto dirigia seus olhos limpos aos da Victória., convicto de que se tinha saído bem. E foi que se saiu mesmo. A corrida do tempo deu lugar à tarde. Como era sábado, não havia aulas. Despediram-se com toques ligeiros nos lábios, indicação que deixava margens de dúvidas se eram amigos ou namorados. Ela vivia na Centralidade do Dundo, na zona II. Ele estava no bairro Norte, numa casinha dum quarto e duma sala que tinha arrendado.

O rapaz não tinha muitos amigos, era novo na cidade. Também, pouco ousado como cresceu no ambiente católico, não haveria surpresas. Poucas informações tinha a respeito da garota que conhecia, além de que vivia na Centralidade, estudava Direito e tinha 19 anos de idade. Victória era uma baixinha-morena, com voz de alívio espiritual. Descrevia seus desenhos com amor de mãe pela filha recém-nascida. Eram muitos artefatos à mistura. Cabeça dura como era o estudante, não se apaixonou por ela. Só nunca compreendeu que era consumido pelas lembranças eróticas da jovem futura jornalista que mal conhecia.

Num confuso dia, só se lembra que havia sol ameno, verde nas folhas, barba florescida em seu rosto, eis que as águas perfuraram a criatividade e imprevisibilidade da vida. Foi quando no seu Facebook, utente há quatro anos, deu de vista com a solicitação de amizade de uma jovem esbelta, formosa, de lábios que até pintores pagavam para pintar toda a vida. «Quando um susto desses nos chega, é preciso água suficiente para não nos vermos engasgados de palidez. Isso é imagem real?» Pensava dentro de si.

A amizade fluía numa velocidade que só o planeta terra descreveria com propriedades.

Passavam-se os dias, as noites, passava tudo. Só não passavam eram as imagens lúcidas da sua amada que nem nos sonhos o tempo revelou seu nome. Poder-se-ia tecer comentários variados à volta de como tal jovem não observava a beleza que tinha à vista. Era cego. Cego por um sonho de juventude. Até a lentidão de sua paixão lhe permitir ver que a mulher dos sonhos era a sua amiga pelo Facebook. Seu nome era Ortelã, um pseudónimo, pois se assumia como cantora, compositora e poetisa. Nunca ele tinha revelado a ninguém sobre seus sentimentos.

Terminado o primeiro ano de licenciatura, Zé foi de férias a Huambo. Foi lá que tinha conhecido outra garota, segundo pensava. Envolvidos pelas saídas, levou três dias para ele descobrir o nome da nova amiga. Ela apresentou-se como Ortelã. Confusão para o jovem! Ao ar do jardim, ele questionou:

—Só tens um nome, moça?

—Meu nome completo é Adelina Neves de Jesus. Ortelã é meu nome artístico —respondeu a bela mulher, já dando reflexos sorridentes, sabia porquanto que se tratava do seu amigo Zezito, estudante de Português.

—Espera um pouco, moça: és artista? Valha-me o destino, não creio no que ouço! —foi suficiente para que ela revelasse de quem se tratava. Tempos como não são iguais em todas estações, já eram 17 horas da tarde do dia 20 de Janeiro de 2016. Razões naturais foram suficientes para devida despedida. Então, num beijo espontâneo, já os pássaros contavam os minutos e impeliam um «até amanhã» para os dois. O amanhã desejado é que não ocorreu. Na espera do tempo, dava-se por terminadas as férias contra sua vontade. Zezito nem se despediu da sua amada, teve de voltar às pressas, uma vez que sua mãe falecera. Ortelã ficou duas vezes partida. Tinha seu coração desfeito por duas razões narurais: a partida prematura de seu jovem-amor e o descanso eterno da mãe desse.

Dúvidas tinha Zezito umas tantas. Não havia terminado a sua licenciatura, aliás, mal a tinha dado início. Ainda não era coisa de acreditar que com tantos homens, uma mulher como aquela se havia apaixonado por um paupérrimo como ele. O que o safava —diziam —era mesmo sua inteligência admirável por muitos e seu corpo atrativo, um magrelo de voz colorida e mente aberta aos bons pensamentos e projecções de ideias. Terminadas as férias, depois de ter enterrado sua mãe, regressou a Dundo, para continuar seus estudos. Namorava era à distância de mais de mil quilómetros de terras, essas que viram todas viagens aventureiras existentes. A menina tinha 20 anos quando frequentava o segundo ano. Zezito ainda gaguejava no primeiro ano com os seus 22 anos de idade. Foi exactamente naquela fase em que Adelina explicou aos seus pais o tipo de namoro que mantinha há quase dois anos. Na verdade, informara à mãe e, essa, ao marido.

—Mas ó Catarina, como permites tu que a Adelina entre nessas aventuras? Sabe o destino a merda do homem que ela escolheu... —era a voz aguda do Sr. Teodoro Jesus.

—Acalma-te, homem, vamos conversar com ela! —adiantou a paciente esposa.

Foram ter com a jovem apaixonada para as explicações que se impunham. A mãe era bastante calma, com uma mente concentrada quando fosse resolução de conflitos. Jáo sr. Teodoro, que o diga o vento! Ele apresentava total desacordo face à relação da sua filha. A mãe apoiava-a, mas dizia para não entregar muito seu coração ao jovem, vivia distante e não havia garantia de ele cumprir com a sua palavra. Uma vez, Ortelã ligou ao Zezito e contou-lhe a oposição do pai, que senão terminassem o relacionamento à distância, ela perderia alguns privilégios:

—Alô, Zé, aqui é a Adelina!—aquela voz era estranha aos seus ouvidos. Mesmo assim, respondeu e adiantou-se:

—O que houve, Ortelã, meu amor? Tua voz está mudada! De facto, havia mudanças na sua voz. Tinha chorado bastante algumas horas atrás. Contou-lhe, então, que não poderiam continuar o romance. Explicou as razões. Zezito tinha saboreado o seu fim do mundo, contudo não o manifestou. As feridas mais cobertas são as que mais dores carregam. O jovem aceitou, embora morto, que Ortelã era caso para esquecer. Adelina nem procurou outro, porque amava muito Zezito. Esse fez igual durante a formação de licenciatura. Zezito dedicou sua vida aos estudos, que terminou aquela etapa até ao tempo imposto pelo tempo. Ainda ele amava sua jornalista, porém ela pensava que já não sentia o mesmo. Quando o jovem conseguiu o seu diploma, foi correr atrás dela. Mudou-se para Lubango, Huíla, e lá consegui um emprego como professor num Colégio. Fez economias e foi a Huambo pedir em casamento a sua amada. Foi aceite. Ambos viveram em Lubango, já casados, e tiveram quatro filhos: duas meninas e dois meninos.

Salvador de Jesus, Poeta Ximbulikha.

Salvador de Jesus Ximbulikha
Enviado por Salvador de Jesus Ximbulikha em 04/06/2020
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