Apenas Um Destino
 
     Gostava de sentar-se à janela e contemplar a paisagem. Ultimamente as cores lhe pareciam mais definidas, mesmo quando estava sem óculos, velhos companheiros desde os dezesseis anos e agora já com cinquenta!
     Cinquenta anos... pensava e murmurava para si mesma, enquanto tentava fixar os olhos nos pardais que cismavam em não parar o seu voo livre passeando pelas árvores. Árvores que pareciam lhe querer invadir o quarto, invadir a alma e tomá-la totalmente levando-a com o vento e os pardais para a liberdade distante.
     Cinquenta anos, voltava a pensar, e se perguntava o que havia feito e o que de bom ficaria para lembrar. E concluía que muito havia feito nesse tempo, nesses cinquenta anos – que não conseguia imaginar porque somavam tantos – nesses cinquenta curtos anos, felizes às vezes, sofridos também, queridos cinquenta anos da sua vida. Queridos porque cada alegria ou tristeza, conquista ou derrota eram suas, lhe pertenciam integralmente, faziam parte da sua história de vida e ninguém lhe poderia tirar. O que assustava era o que ainda estava por vir. O que não conhecia mas desejava do fundo da sua alma: a liberdade depois de um passado já construído e que poderia amarrá-la para sempre. Se ela deixasse.
     Sabia que não deixaria e que bastariam alguns passos seguros para que a transformação acontecesse. Mas não conhecia o caminho e tinha medo de tropeçar. Por isso levava tanto tempo a contemplar a paisagem, a observar os pardais no seu voo livre e se imaginava como eles e gostaria de voar. Voar como os pássaros, sem direção nem destino, apenas pelo prazer de ser livre, pelo prazer de voar.
     Não havia percebido, mas, desta vez o tempo levado à janela foi mais longo que das vezes anteriores. E apoiando o rosto entre as mãos no seu parapeito, pensou nos muitos caminhos que já havia percorrido. E o vento que soprou mais forte balançando as folhas das árvores fez com que se sentisse levada de volta a um daqueles caminhos do passado, do passado mais feliz da sua juventude, do seu primeiro par de óculos, dos seus dezesseis anos, dos sonhos aos dezesseis que somente se realizaram aos vinte e cinco, aos trinta e quatro, ou que ainda não haviam se realizado. Que povoaram sua adolescência de anseios e dúvidas, que a fizeram feliz. Ao caminho das aventuras, das descobertas, da falta de medo, do crescimento e dos grandes amores – cada um sendo o único da sua vida.
     Então a cortina sendo agitada pelo vento roça de leve as suas mãos e a traz de volta aos cinquenta e à lembrança do seu último grande amor. Já não tinha dezesseis fazia tempo ao conhecê-lo, mas a intensidade da paixão tinha sido tão grande que a carregou de volta à adolescência, à falta de medo, à ousadia a que só se permitem os muito jovens ou aos que têm o coração transbordando de euforia. Porque o amor tem dessas coisas, pensava. Nos tira a máscara e nos desnuda moldando o nosso ser à sua vontade, nos transformando e dominando, ditando todas as regras – se é que no amor elas existem – porque ele é soberano e ditador. Costuma chegar de mansinho, quase sem que se perceba e, de repente, nos arrebata inteiros, nocauteando a razão, destruindo conceitos, despedaçando lógicas e nos inundando a alma do êxtase da felicidade. E é preciso cuidado para não se deixar escravizar.
     Lembrava do seu jeito tímido e do seu riso terno, de como tremia ao saber que se aproximava a hora de encontrá-lo e de como temia o momento de ir embora. Lembrava dos seus beijos mais doces, dos passeios nas madrugadas, dos momentos de silêncio – que tanto queriam dizer, da saudade, dos beijos, das suas mãos passeando em seus cabelos, dos beijos... e percebeu que não o havia esquecido. E que o desejava muito.
Fechou os olhos e murmurou seu nome, quando gostaria de gritá-lo para que o vento e os pardais fizessem chegar a sua voz até ele e lhe contassem que ainda estava vivo dentro dela, tão vivo quanto o seu coração, que agora batia mais acelerado.
     E estava assustada. Assustada aos cinquenta anos com um amor do passado que teimava em invadir novamente o seu peito. Assustada porque não sabia o que estava por vir, o que não conhecia, mas desejava do fundo da sua alma: a liberdade de poder amar como aos dezesseis – porque para o amor isso não conta – pensava.
     Mas não sabia que caminho percorrer para reencontrar esse amor e tinha medo. Então os dezesseis derrotavam os cinquenta, pois lhe faltava a coragem da busca, o aventurar-se na paixão. E onde antes tudo era descoberta, agora só encontrava insegurança, pois já havia vivido os perigos das trilhas e alguns tombos haviam machucado e deixado marcas para sempre.
     Ao abrir os olhos percebeu que começava a anoitecer e que já não eram tantos os pardais a passear pelas árvores. Haviam, por certo, encontrado sua direção, seu caminho, e aquietavam-se com o chegar da noite. Mas Anna não conseguia aquietar seu coração. As lembranças daquele amor fervilhavam em seu peito e faziam tremer seu corpo. Não havia tomado cuidado... se deixou escravizar.
     Tombou na cama, encolheu todo o corpo num movimento lento e sofrido e chorou baixinho. Sabia que bastariam alguns passos seguros para que a liberdade acontecesse...
     Lembrou dos muitos caminhos que já havia percorrido nos seus cinquenta anos de vida – nesses longos cinquenta anos. Felizes, às vezes, sofridos também. Dos amores e dos sonhos aos dezesseis, e novamente do seu último grande amor. Esse amor que havia escondido uma parte da sua alma quando se foi e que agora teimava em voltar ardente, não de mansinho, como no começo, mas arrebatadoramente, consciente do seu poder. E se entregou às lembranças como havia se entregado àquele amor.
     Um bater de asas mais próximo chamou a sua atenção. Enxugou as lágrimas e viu pousar na janela um dos pardais. Tão rápido quanto havia chegado ele se foi e bastou aquele segundo para perceber que alguma coisa havia mudado no seu íntimo. Acompanhou o voo daquela ave até onde se encontravam suas poucas companheiras e compreendeu que as muitas voltas que davam faziam parte de um jogo. Um jogo de prazer do domínio absoluto do seu ser.
     Levantou-se, dirigiu-se à escrivaninha e colocou seus óculos, velhos companheiros desde os dezesseis, e não importava se agora tinha cinquenta ou mesmo que tivesse sessenta anos. Importava o que havia povoado esse tempo de vida. E disso Anna tinha certeza: havia se amado tanto que foi capaz de entregar-se inteira aos amores que lhe chegaram e que, se pedaços de si mesma haviam partido com esses amores muito de novo havia ficado, numa troca completa, num jogo de prazer do domínio absoluto de cada ser que se ama e se deixa amar.
     Porque o amor tem dessas coisas, pensava. É jogador consciente, com muitas cartas nas mangas. As lembranças já não a consumiam como antes. Agora eram lembranças cálidas e não regiam mais os seus sentimentos. Sabia que aos cinquenta podia amar com a mesma intensidade dos dezesseis, porque ainda era capaz de se entregar por inteiro, mesmo que fosse a lembranças. Mas lembranças não têm mãos que passeiem pelos nossos cabelos, nem nos dizem palavras ternas com hálito morno, num sussurro. E decidiu torná-las reais e entregar-se novamente ao amor que balançou sua alma e a fez fugir assustada. E era fácil. Tão fácil que parecia impossível. Mas, também era jogadora e decidiu apostar.
     - Alô!
     E ouviu o vento soprando, agitando as cortinas e as folhas das árvores. Ouviu pássaros cantando, voando livremente, levantando-a com suas frágeis asas, levando-a de volta aos dezesseis ou a qualquer idade que quisesse, deixando-a passear sem direção, mas com apenas um destino, pois estava ouvindo a voz do seu amor.

 
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 16/03/2020
Reeditado em 15/07/2020
Código do texto: T6888930
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