Carnaval atemporal
Para Fabiane e Helena.
Quase fim da manhã. As ruas do centro comercial do Rio de Janeiro estão repletas de pessoas a procura das fantasias finais. Início dos ritos. É sexta-feira. O Carnaval começa e é necessário o preparo para a agonia de quatro dias, onde as almas se entregam ao êxtase de todos os anos. De todas as vidas, loas de prata, suor e renascimento. Sempre que o Carnaval principia é na virada do último dia do Carnaval anterior, perfume de uma agonia inaceitável, que a expectativa do novo ano anuncia sua verdadeira sinergia. Essas almas tomadas de sangue fervente, sexo e ritmo de outras eras. Enraizado na cultura deste país onde a tradição e a volúpia se fundiram em arte, som e alegoria por todas suas cidades e recantos, onde o êxtase momentâneo tem vez: filhos dionisíacos mesmo sem atinarem o sentido original da festa e de suas cinzas.
O centro do Rio é tão familiar; as ruas se cruzam em quadras que não se reconhecem pelas fachadas ecléticas, pelo estilo próprio de uma arquitetura morta, mas sim pela referência dos odores, pelos sons dos pregões, das lojas apinhadas de gente ávida por promoções, adereços baratos e confusão. O piso dessas ruas de paralelepípedos, engolidos por camadas recortadas por asfalto descamado, está um tanto molhado pelas chuvas de fevereiro e as pessoas riem e vibram na expectativa da folia, do desenlace de Momo. Ondas mornas de suor, álcool e fartura sensorial. Mormente um calor excessivo carioca. As lojinhas do SAARA são grudadas umas nas outras. As entradas são tão próximas que os vendedores se misturam, tentando empurrar os compradores para dentro. São indelicados sob a medida exata do comércio a todo custo. Muito barulho: a música alta sai de todos os lados. Dos fundos das lojas, dos carrinhos portáteis das esquinas, dos pavimentos superiores dos sobrados ancestrais. Ruas em xadrez dos árabes antepassados, patrícios, padarias dos portugueses: um alarido de comércio e pressa.
Os namorados, ao contrário de todos, não tem pressa. Chegaram ao Rio para um Carnaval novo. Os dois não buscam efemeridades nesse frenesi do centro da cidade. Andam devagar, entram em todas as lojas de miçangas e bijuterias. Devagar. Saboreando o ambiente, perscrutando a expectativa de uma aflição que ainda não incide em suas vidas. A juventude permite, por conveniência, essa constância de não correr. Olham as camisetas dos blocos tradicionais balançando nas vitrines para lembrar que o Carnaval está na rua, está nos encontros dos bairros, nas esquinas da terra de São Sebastião. Andam de mãos dadas que, em todo momento, se largam para darem passagem aos pedestres. Crianças alegres se vão, fantasiadas de heróis dos quadrinhos, ansiosas pelas brincadeiras com os amigos. Os adolescentes, com seus cabelos coloridos, se acotovelam para irem ao encontro de um mistério novo, apenas ainda intuído nos enlevos de amores domesticados. Os velhos, em memória mais lenta, mastigam aventuras que algumas vezes experimentaram na malícia e no atrevimento perdidos. Máscaras, fantasias guardadas no armário míope do tempo. Carnaval: festa de todas as idades, todas as cores, opulências, embriagadas hordas e disposições.
A moça do casal está radiante. Adequadamente vestida para o verão do Rio; vai altiva, bermuda de jeans, camiseta amarela contrastando com sua pele morena e rija dos vinte e poucos anos. Sorri de tudo que vê, tudo é novidade para ela. A agitação da cidade velha, as pessoas animadas, as lojas espremidas, as roupas coloridas, a energia do sol no rosto. A moça sorri muito. Um riso que sai do peito, arranhado em pequenos gritos e gargalhadas sinceras de satisfação. Os olhos, enormes, são estrelas, supernovas faiscantes. Um encantamento total. Felicidade escancarada. O moço, um pouco mais contido, também está feliz. Rememorando seus antigos carnavais em cidades do interior; não pode deixar de se sentir excitado com o Carnaval da grande capital, mas um Carnaval sem sambódromo e outros lugares comuns que o Rio de Janeiro suscitava. Já conhecia o Rio de Janeiro. Passou muitas férias com sua avó na infância. Infância feliz de primos, tios e uma pequena porção sempre dele e para somente ele de solidão. Palavra siamesa. Anos depois morou no Rio em seus tempos de estudante perdulário, singular. Ama aquele lugar. Sempre amará. Essa vez está mais contente com a namorada ao seu lado conhecendo o mesmo chão que ele tanto pisou e decifrou no passado. Sua namorada era seu chão agora. Está contente por vê-la tão animada, transparente. Aquele seria o Carnaval de suas vidas e assim desejam.
Luzes solares fragmentadas, enigmas das serpentinas metalizadas que se despencam dos fios de luz elétrica em adereços embaraçosos. A moça, atenta, entra em uma loja de fantasia. Máscaras enormes e míticas enfeitam as vitrines envelhecidas do sobrado na esquina da Rua da Alfândega com a Regente Feijó. A loja é grande, com dois pavimentos abarrotados de artigos de carnaval: máscaras sintéticas, de pano, muitos panos, sombrinhas de frevo sem Recife, fantasias de borracha, plásticos de cores infindas, recipientes com lança espuma, pulseiras geométricas, perucas matizadas, uma infinidade de bugigangas e acessórios pertinentes. Nada escapa ao apuro da moça, nada aplaca seu furor de experimentar, sentir no toque de suas mãos femininas e brilhantes, o efeito do novo e do espanto: coloca um colar e se mira nos espelhinhos dos pilares quadrados perto de todas as prateleiras da loja. Sorri bastante com o que vê. Sua beleza morena é ainda mais forte com as divertidas poses que faz ao experimentar tudo e a tudo perguntar: fiquei bem? – dispara. Tudo fica bem em você – pensa o moço. Tudo te confere mais graça, amor. Não existe dúvida estética perto de tamanha certeza de adornos. Que graça existe em certas pessoas que só de pensar que elas morrerão ou desaparecerão na primeira encruzilhada faz com que nos sintamos tão sem sentido? O moço pensa isso enquanto sua namorada coloca o décimo sétimo brinco para experimentar. Se ela um dia for embora eu nem sei... Afligiu-se. Foi em direção da porta da loja para ver o movimento enquanto a moça escolhe suas fantasias. As ruas começam a se esvaziar. Já é quase meio-dia e as lojas principiam a fechar rapidamente. Será que ela já escolheu as fantasias? Está distraído. Perde a moça de vista. Começa a se impacientar com a demora das escolhas dela. Já pensa no brilho do colarinho do primeiro chope escuro que irá desfrutar na Cinelândia e esperar o furor do Bola Preta inaugurando sua fantasia mental. Bloco ancestral. E a moça oculta. Nem sinal de que já escolhera as coisinhas que combinariam ainda mais com sua pele bonita. Para que tanto enfeite ela quer se nascemos e morreremos nus? Riu de si mesmo ao pensar no efeito que esse pensamento causaria nela se contasse essa sua pobre filosofia de botequim! Ela que tem tantas certezas e opiniões! Que graça existe em certas pessoas que só de pensar que elas morrerão ou nos deixarão... Meu Deus, cadê essa menina? Não está mais por perto. Sumiu entre as alas das prateleiras enquanto as conjecturas se despedaçam de sua cabeça.
Sobe correndo as escadas que levam ao segundo piso. Procura a moça esbaforidamente por todos os cantos. No pavimento superior, as prateleiras estão mais vazias. Vendas apressadas. É mais fácil olhar pelo vão das coisas, observar com acuidade se via sua namorada. Desaparece totalmente de seu alcance. Ave rara. Face dispersa na profusão das pessoas, das máscaras ocas, das nuances de tempo que esteve longe de si. Desespera-se. Desce a mesma escada e para na porta da loja. Olha uma última vez para dentro na esperança de um chamado dela. Não houve. A rua agora não existe. O chão molhado dos paralelepípedos dos dezenove reflete uma tensão, uma agonia nova. Um despedaçar maior do asfalto corroído. E se ela comprou os adereços, não me reencontrou e voltou para nosso hotel na Mem de Sá, na boca da Lapa? – Ilumina-se. Mas ela não sabe andar aqui no centro, tudo é estranho para ela aqui – escurece-se. Deve estar perdida, a coitada, deve estar aflita também... Anda pela Rua da Alfândega como que sem a fagulha. A namorada se perde dele como que uma neblina enxugada pelo sol. Não há mais sol, nem Rua da Alfândega, nem pernas, nem passos, nem Carnaval, nem chope no Amarelinho, nem sentido, nem furor, nem a carícia da alegria. Jamais se sentiu tão só. Abandonado em sua dor, em uma súbita saudade que parece nessa palavra um som de horror. Palavra horror em saber que ela tenha se perdido dele. Tão alegre estava no enfeitar de seu rosto, no retoque de seus cabelos morenos. Olha as mulheres que passam ao longe. Um simples balanço de seus cabelos seria a senha de um reencontro. A moça desaparece no mormaço do fim da manhã de Carnaval.
Está tresloucado, perguntando nas padarias dos portugueses, nas barracas dos árabes, às mulatas vendedoras das lojas, mal humoradas, doidas para sair para a folia, se tinham visto uma moça morena de sorriso largo. Mas ela não deveria estar com seu sorriso largo no rosto – apieda-se. O centro comercial está ficando vazio. As lojas se fecham fazendo barulho, irritando ainda mais sua procura. A cidade poderia ser impiedosa com quem se perde. Ele está perdido, talvez ela não. Não intui mais as ruas que conhece desde criança. A Rua da Alfândega cruzou com a Rua República do Líbano e ele, autômato, lágrimas engasgando seu começo da tarde, está andando sem rumo. O reflexo nos vidros das fachadas assustando sua alma. Era ela atrás do vidro? Fantasmagorias. Onde está seu amor, onde está sua namorada?
Dentro do Campo de Santana – como chegou ali? – anda como a escultura encardida do Inverno que pontua um dos cantos da artéria central da esquecida Praça da República. Sofrimento encovado, pungente desespero das notas sem estrelas, morte e abandono siameses: está curvado, fatigado, dilacerado pela ausência da moça. Que farsa existe em certas pessoas que só de pensar que elas morrerão ou desaparecerão na primeira encruzilhada faz com que nos sintamos tão sem sentido? Ali naquele lugar de figueiras lúgubres, gansos ruidosos, estátuas de bronze e pontes e grutas em estilo rocaille desusadas, pensa que nada era tão vazio. Cotias aflitas salpicam seus pés quando se senta no banco de madeira pintado de verde, verde descascado pela memória de sua infância. Dentro das grades bem desenhadas daquele parque no cerne da cidade sempre fora o mais solitário dos seres. Solidão que sente agora, sem a ironia cortante de sua namorada espantando melancolias despencando sobre sua sombra no asfalto do parque. Não vê sua sombra. Sobra. Na correria das crianças que brincam de bicicleta e de bola na luz que recorta o relógio da Central por detrás das copas altas dos baobás e das figueiras lúgubres. Raízes absconsas de seu próprio ser vincam-se na fluidez desse abandono no Carnaval. Inexatas quatro horas fica, prostrado, no banco de madeira verde. Quatro horas? As lágrimas estão secas no rosto. Está se conformando? – precisa voltar para o hotel. Eu devia ter avisado a polícia? – de tão chocado nem pensa nisso.
Uma menina, que brinca no meio do pátio central, vem correndo em sua direção e o desperta de seu alheamento. Não deve ter nem três anos de vida. Vem sorridente e branca. Cadê papai? – pergunta mostrando a língua com verde de bala de hortelã. Cadê papai? O moço não tem tempo de responder. Ela saiu correndo do mesmo jeito que veio, balançando seus cachinhos de melenas pretas. Não olharia para trás? Correu na mesma direção do absurdo de sua chegada.
Quatro horas, está ali por quatro horas... Ou seriam quatro anos? O tempo, o presente, o passado, se fundiram no silêncio dessa visão futura de abandono. Que graça tem as pessoas...
Vamos pra Lapa? Preciso colocar a fantasia e fazer minha maquiagem lá no hotel! – diz a moça, puxando sua camisa, dissipando seu espanto – As fotos que você tirou comigo perto dos gatos e das cotias ficaram lindas e divertidas! Vamos para o Carnaval! O campo de Santana já vai fechar... Está sentido alguma coisa, meu bem? Está pálido! Sorri o seu melhor sorriso largo, como de costume.
A moça nunca, em tempo algum, saiu do seu lado. Dentro. No desenrolar desse Carnaval e dos outros mais adiante. Sempre aqui dentro da graça.