Retrato de você.

Ainda sinto um gosto amargo em minha boca, quando pincelo as cores de um arco-íris ainda desfeito, em minha tela que hoje em dia, não passa de retalhos das memórias do que não vivemos por razões ainda desconhecidas. Em um recipiente misturo o azul com o violeta, anil é a cor que hoje me representa. Um vermelho até que cairia bem, pois dessa cor é todo o sangue que por você um dia eu derramei. Com um preto eu poderia rabiscar, um menino e uma menina ...

Ainda lembra??? Quantas vezes em nosso quarto, planejamos uma família.

Latidos de cachorro te incomodavam!

Gatos? A eles nunca fui muito chegado!

A cada pincelada que meu quadro toma forma, mais ainda meu peito se enche de saudade. Se quando estávamos juntos, andando na mesma direção, mãos dadas pelas ruas arborizadas, olhando para casais em suas sacadas. Sonhando em um dia, quem sabe ser como eles...

Todo esse sentimento que bate, me traz mais inspiração. Pego meu pote látex, nele coloco 60% de acrilex, com calma acrescento 7 gotas de azul. Se colocar 2 gotinhas de preto, melhor ficaram representados meus sentimentos... Calma, rapaz! Aquelas 3 gotas de amarelo não podem faltar, pois meu céu resplandecera de um belo azul inverno.

Percebo que minhas tintas estão todas no fim. José Bonifácio número 95. Era nessa avenida que ficava a loja da Koralle. Quantas vezes lá estive, até te conhecer. Estava aí o motivo por que eu sempre passava por essas ruas. Cabelos negros que se esvoaçavam com o vento. Quantas bisnagas do preto, eu gastei tentando fazer o seu desenho! Apartamento 37 era esse o número, como é engraçado, que nos lembramos apenas do que nos deixa alegres. Nas manhãs de domingo que você costuma estar de folga do serviço, com a minha lambreta LN 150, banco preto, carenagem vermelha, foi em meados de 2012 que eu a comprei...

Lembra? Da história do fim do mundo... Como riamos com tudo aquilo, -Os Maias que se danem você dizia, vamos viver as nossas vidas. Aquele capacete rosa, de aba azul bebê que te dei de presente. Montava em minha garupa e gritava - Soldado vamos em frente! Muitos finais de semana felizes nós vivemos, porém sabe como sempre fui um cara desconfiado. Redes sociais eram meu ponto fraco. Nunca fui um cara ciumento, não era em você que eu não confiava, mas sim nas pessoas que te seguiam e curtiam suas fotos sem parar. O que era um lago de águas calmas, com folhas caídas em sua superfície. Aquelas mesma folhas que abandonaram o verde vívido do verão e começam a nos brindar com a mais bela paleta do amarelo e castanho, se juntando com tons laranja, vermelho e roxo, até as folhas seguem adiante!

Nosso relacionamento terminou do mesmo jeito que se iniciou. Como um turbilhão de areia no deserto. Procure no dicionário ou no google para os mais novos, o que isso significa. Movimento rápido, circular ou helicoidal do ar, transportando um fluído de partículas em suspensão ou objetos... Sim! Era disso mesmo que você me acusava de lhe tratar. Como se fosse uma boneca muito rara de porcelana, eu queria te guardar. Proteger em uma redoma de vidro cristalino, de todos os males do mundo. Coisas foram ditas que nunca precisavam vir à tona em voz alta. As palavras machucam, ainda mais quando moldadas em ódio e afiadas em rancor. Nutridas com ressentimentos passados, imbuídas de tristeza e magoas, que não mais passaram. Eu que sentia tanto ciúmes, porém você que tinha tanto para falar. Não é nada saudável a solidão de não se amar ninguém, mas o amor com a força de um colosso pode machucar de uma maneira que não se pode mais concertar.

Meses se passaram até que eu reunisse coragem, para te procurar. Quando toquei a campainha do número 37, um homem alto e pardo me atendeu. Procurando palavras para me dizer, me olhou de cima à baixo com um certo desdém. – Ela não mora mais aqui! Era tão fácil me dizer, no momento não entendi por que demorou tanto para me contar. Voltei para casa com mais saudade do que estava antes de ir até seu apartamento. Montei meu cavalete e com um pedaço de carvão rabisquei o início de um horizonte negro, que representaria muito bem meus sentimentos. Culpa, raiva e indignação de mim mesmo, estava sentindo. Se eu não pudesse abrir meu coração para ela e contar tudo que eu sentia, iria explodir a qualquer momento.

Vagamente, me lembro daquele dia. Vestido com meu macacão velho e surrado, estava eu à procura de tintas para meus desenhos. Nas equinas de ruas quaisquer, que não nos interessa saber o nome, o reflexo de um casal apaixonado pude ver através da vitrine de uma loja de roupas para noivado. Aquela que juras de amor me fez em meu quarto, que noites em claro me deixou, planejando uma casa com dois quartos, uma cozinha branca com piso quadriculado. Meu ateliê de frente para o jardim, uma árvore de freixo com um balanço dependurado. A raiva era tanta, que meus olhos escureceram. Tateando meus bolsos um estilete encontrei. Ao entrar na loja nada falei. Sem tempo para desculpas e explicações, pois delas nada sincero deve sair. Entre a vida e a morte todo mundo pede perdão. Porém, tarde demais era para ela e para mim.

Hoje ainda pintando nossos retratos juntos, ainda gosto de pensar que a chama de nosso amor se apagou somente por sua culpa. Ao fundo do corredor que da para minha cela ouço o início de um tumulto. Rebelião! Vários detentos gritavam junto. De meu velho estilete não estou em posse para me defender. Parto as madeiras que formam meu cavalete, para tentar me defender. -Dessa chance de viver eu privei você! Uma explosão na porta da minha cela, uma fumaça branca toma conta do ambiente, consigo expiar para fora e ver colchões e roupas de cama em chamas. Vários se espremem pela porta tentando entrar, barras de ferro em suas mãos e ódio no olhar...

-Eu te amo! São as últimas palavras, que de minha boca qualquer um vai escutar.

Demetrius de Oliveira
Enviado por Demetrius de Oliveira em 12/11/2019
Código do texto: T6793223
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