Mia

Desci do táxi perto da meia-noite, na rua deserta e molhada de chuva. A câmera, montada na portaria do prédio, escaneou remotamente meu rosto e me franqueou a entrada. No hall, um elevador já me aguardava com as portas abertas. Entrei. Ele disparou para o sexto andar, onde ficava o meu apartamento. Em frente a porta de casa, encostei a palma da mão no sensor para abrir a mesma; embora tecnicamente fosse possível obter o mesmo efeito usando um comando de voz, poucas pessoas usavam tal facilidade justo na entrada de seus domicílios: a boa e velha biometria parecia muito mais segura.

A luz da sala acendeu-se quando entrei, e a porta fechou-se automaticamente às minhas costas. Uma voz de contralto saudou-me num tom sóbrio:

- Boa noite, János.

- Boa noite, Mia.

Sentei-me num sofá, para descalçar os sapatos. Mia continuou a falar através de um alto-falante cilíndrico, preto com detalhes dourados, colocado sobre a mesa de centro.

- Pela hora, posso deduzir que já jantou ou devo preparar alguma coisa?

- Eu jantei depois que saí do escritório... mas pode me preparar um sanduíche de peito de peru. Ainda há suco de laranja na geladeira?

- Sim, eu tomei a liberdade de encomendar hoje, mais cedo. Não havia aquela marca que você gosta, então solicitei a alternativa - alertou.

- Muito bem, Mia - aprovei, erguendo-me com os sapatos na mão. - Eu vou para o banho.

- Chuveirada?

- Chuveirada. Está tarde para um banho de banheira, e ademais preciso ir dormir logo.

- Cheguei a pensar que você não voltaria hoje - declarou ela às minhas costas, enquanto me dirigia para o quarto.

- Por que pensou isso? - Indaguei curioso, enquanto guardava os calçados na sapateira e retirava as roupas de trabalho.

- Você agendou um jantar com a Dzsenifer, hoje pela manhã - replicou ela.

- Sim - acedi, passando para o banheiro. Parei na porta, e acrescentei:

- Mas ela não foi. Jantei sozinho, Mia.

Um curto silêncio.

- Lamento por você, János - murmurou em tom contrito.

- Não lamente, Mia. Está tudo bem.

Ela voltou a falar, soando mais alegre.

- Então, vou aguardar você fechar a água antes de preparar seu sanduíche, János.

- Grato, Mia - respondi, com uma ponta de satisfação. - Você é uma boa garota.

A resposta veio antes que eu fechasse a porta do banheiro:

- Eu não sou exatamente uma garota, János.

- [18-10-2019]