Complexo de Heisenberg
No ápice dos 35 anos muitos homens e mulheres buscam o casório, a realização de morar com alguém que certamente não dará descarga com a tampa baixa é infinitamente estimulante... porém eu, como cientista social ocupadissimo na sua garagem, que na verdade é a dos seus pais, preocupo-me com o estudo sobre pessoas explosivas, mas não psicóticas. Que os céus me livrem de algum contato com esses bichos humanóides.
Quem eu quero enganar com essa narrativa culta até demais? A verdade é essa: formei-me em sociologia, pois amei essa matéria logo de cara quando a conheci no segundo grau. Meus pais achavam que no mínimo eu iria para Psicologia, no máximo para a NASA. O meio é o Bacharelado em Sociologia, e eu sou dado a metades. Quando contei aos meus pais que seria sociólogo logo me olharam de soslaio com suas trombas de reprovação, mas também falei-lhes que seria cientista, e para finalizar disse que usaria um belo jaleco casca de ovo( veja, mamãe é arquiteta e me fez aprender o nome das cores mais diversas, no caso disso me influenciar a seguir a mesma carreira que a dela), e eles ficaram felizes, ou pelo menos foi o que eu quis ver.
Tentei de tudo, mas nem para dar aula eu sirvo, minha lâmpada, meu iluminismo fora ter a ideia de ajudar pessoas que não conseguem se relacionar, não, não sou um couch de relacionamentos, seria desgraça demais para meus descendentes suportarem, eu apenas estudo esses casos e ajudo as vítimas e os agentes a viverem melhor juntos, sem abrir mão de seu amor. Quase um advogado.
Tenho muitos casos bem resolvidos no currículo, e levo minha vida numa paz, é relativamente confortável, menos dormir no meu quarto frio e nada comparado àquele que imaginei que poderia alcançar, mas ora vamos, aqui é o Brasil. Sociólogos e Filósofos são tidos como loucos, ou é o contrário?
Antes de falar sobre o único caso que falhei até hoje, devo deixar aqui o meu currículo, no caso de uma boa frequência com DRs.
*CURRÍCULO FAJUTO*
Nome: Murilo Saturnino
Profissão: Sociólogo, cientista social amoroso.
Idade: 35 anos
*ACABOU*
O.K., não é um currículo, não preciso disso, é mais uma apresentação ou identificação, sem terceiras intenções...
Como eu disse: fui bem sucedido na resolução de vários casos, menos em um. Acho que eu não consegui ludibriar ela, ou ele ou eu, mas evito os pormenores.
Estes são os pacientes, ou as cobaias:
Fernan: olhos castanhos, cabelo penteado para o lado, liso e uma barba sempre por fazer.
Mila: olhos verdes com pintinhas alaranjadas, boca bem composta, cabelo liso da cor do ébano e curto, para deixar as clavículas à mostra.
Pelos relatos de Fernan eles se amavam, mas para ele Mila era explosiva demais, chata, ranzinza e cabeça dura. Disse-me certa vez que ela ficara com tanta raiva dele que terminou a relação, xingando ele e os deuses.
O motivo? Ida à sorveteria sem aviso prévio!
Eu pedi para conhecê-la, aquele vislumbre lexical de megera indomada. Ele disse que pagaria pela consulta e mais um agrado se eu o ajudasse a "amansá-la" indiretamente. Fiquei pilhado com o termo, mas era um bom dinheiro, então tudo bem. Disse muitas coisas para ele, e parece que fizeram efeito, mas não escreverei meus conselhos aqui. Exclusividade é uma arma. Entretanto, volte um pouco e procure por mim.
Fernan e eu entramos em contato umas duas ou três vezes, mas depois de um breve agradecimento ele se foi, e Mila nem veio. Nunca conheci a moça.
Com o dinheiro pude divertir-me um pouco, mas para os meu pais eu estava estudando. E qual o melhor lugar para estudar as pessoas do que um shopping?
Truque de mestre.
Fui assistir um filme, que de tão ruim nem fiz questão de gravar o nome, estava saindo totalmente desanimado, até que vi uma moça bonita saindo chorando, se eu fizer uma regra de três acho o resultado de como a definição daquele filme, que para mim fora péssimo, poderia ser para ela. Como um cavalheiro, na verdade mais como um cientista social que sou, fui analisar a pobre moribunda.
Murilo- Como se sente, moça? Sou o Murilo, exatamente, "o" Murilo. Agradeça aos céus por me encontrar hoje, sou único, como a passagem do Cometa Halley.
Ela esboçou um sorriso medroso e eu quis ainda mais cuidar dela.
Emília- Meu nome é Emília, não moça, sr. o Murilo! Sinto-me como um elétron. Se é que me entende...
Murilo - Hum... você é uma pessoa com Complexo de Heisenberg.
Emília- Espere, você inventou essa doença ou o quê?
Murilo- Na natureza nada se inventa, eu apenas alterei umas coisinhas nada notórias para um encaixe perfeito.
Emília- Quase um modelo chave-fechadura de malandro...
Murilo- Ora, senhorita Emília, age assim para fazer jus à personagem ou quê?
Emília- Sabe, eu sei o que está tentado fazer, talvez isso nem seja voluntário, o trabalho às vezes toma conta das nossas vísceras, mas não tente me estudar. E os elétrons são energéticos...
Murilo- Eu só estava tentando flertar...
Ela riu, de verdade, dentes separados, olhos curtinhos e fofos, eu me apaixonei pelo resultado desse experimento, fiquei fascinado, como na primeira vez que vi um quadro de Modigliani, não há pupilas, não há a alma de outrem vista por um terceiro. Então há muita verdade aparente.
Emília me contou sobre sua vida, e eu sobre a minha pequena peça teatral cujo último ato só Deus sabe quando acontecerá.
Ela era estonteante, como um sol, uma explosão, como o hidrogênio que metamorfoseou-se em hélio. Puxando minha atenção a cada instante, cada risada, cada pulsação. Até que me disse que estava tentando pela terceira vez com o seu atual, disse-me que amava ele, e que queria que ele a tratasse melhor. Caíram algumas lágrimas, e ela se levantou. Disse que não deveria deixar aquilo tudo estragar a sua noite com as amigas, se bem que o filme já havia estragado a diversão feminina de Emília e suas amigas.
Mas antes dela ir dei-lhe meu contato, caso precisasse de um sociólogo ou um admirador, caso o quadro estivesse à venda, ou a cobaia pudesse se voluntariar.
Duas semanas se passaram, Fernan me ligou lá pelas 10 horas, chorando, afirmou que Mila se fora da sua vida, que ela havia acabado com tudo. Disse que ela era louca e abusada, que era estúpida e que só o magoava. E todas as injúrias que Mila merecia.
Eu não sabia o que dizer, então apenas despedi-me. Drama amoroso não é o ponto que vai me render grana.
Emília me ligou logo em seguida, ela estava com um ar de rainha, mesmo com todas as fibras ópticas que nos distanciavam, era como se ela estivesse ao meu lado, rindo.
A verdade sobre Emília é que ela era dada a breves declínio teatrais, e que era mais confusa que um elétron, saímos muitas vezes, brigamos muitas vezes, mas aquelas clavícula com cheiro de chocolate não me permitiam mais que dois minutos com raiva dela.
E eu que era propício aos meios me vi inteiro e mais um pouco, não era mais a cobaia e o cientista. Era algo metafísico, e eu quis que o antigo namorado dela nunca existisse, queria originalidade. Mas Carl Sagan mesmo disse que quem quisesse fazer uma torta de maçã do zero que reconstruísse o universo. Confesso que conheço alguns pedreiros, mas, assim como Mila, Emília era suspense demais para um projeto arquitetônico dessa magnitude universal.
Ela me contou que não estava pronta, que amava o seu ex e que não podia ficar comigo.
Uma semana se passara e eu já havia convencido meu velho coração que a cobaia não estava mais apta para o estudo, e ela me ligou e depois me desligou.
Complexo de Heisenberg, isso me renderia alguns dólares e um quarto quente?
Fernan disse-me dias depois que Mila era uma desgraçada e que era grato pelo fim, ela era muita confusão para seu saquinho suportar. Pobre ignorante sobre ambiguidade que rendera-me uma piada e gargalhadas.
Alguns meses se passaram, até que eu tive que ir buscar minha tia no aeroporto, cheguei uma hora antes, bem, relógio de ponteiro tem lá suas incógnitas.
Lembrei de Emília, maldito filme "10 coisas que odeio em você"...
Até que a vi, aquele filme era uma forma de lembrança ou uma simpatia?
Ela me disse que ia viajar, "estou indo para não mais voltar".
Murilo- Acha mesmo que sua mente será outra no exterior? Ou aonde quer que vá? Não pode fugir de si mesma.
Emília- Tem razão, doutor. Contudo, eu posso evitar magoar os outros, vou trabalhar minha espiritualidade.
Murilo- Achei que não acreditasse nisso, você é tão cruel. Sugiro um psicólogo.
Emília- Eu já fui em um, e acabei gostando dele.
Murilo- Então você não vai voltar mais?
Emília- Eu não, não sei bem.
Rimos, e falamos juntos: maldito Complexo de Heisenberg. E depois gargalhadas foram dadas em dobro para o ar, ondas eletromagnéticas que agora se propagam pela Rússia e por meus pensamentos.
Emilia- Eu acho que travei, como se eu fosse um metal tentando entrar no banco- disse-me ela, com aquele olhar de desapropriação.
Murilo- Por que acha isso?
Emília- Eu não consigo mais formular nada para continuar, não dá. Toda vez que eu tento atravessar a porta giratória acontece uma fusão nuclear- falou isso olhando para todos os cantos, buscando todas as palavras e finalizou com uma dança na sobrancelha esquerda, a mais fina.
Murilo- Uma fusão? Então nada de hidrogênios se unindo? Tá errada, sabia?
Emilia- Você sabe o quanto uma bomba de hidrogênio consegue devastar?
Murilo- Você vê esse fenômeno como uma bagunça, é capaz de reduzir esse processo a uma simples palavra? a fusão é energia...
Emilia- É, muita energia, para algo tão pequeno como eu.
Murilo- A teoria da relati...
Emilia- Eu sei, sei mesmo. não quero ser convencida de algo, vou fica estável. Só me diga como você sabe tanto sobre física se é sociólogo?
Murilo- Ora, eu apenas leio.
Emília- Então por que nunca me leu?
Deu-me uma piscadela e um sorriso mais amarelo que sua camiseta de verão e foi. Nunca mais vi ela, não sei se decidiu ser bagunça ou energia, mas de uma coisa eu sei que ela sempre fora: calor.
E calor não se ler, apenas se sente, se perde e se ganha.