Cadeia

Eu fiz cortes no meu braço. Cortes lindos, irregulares como as raízes num manguezal.

Faça o exercício comigo. Quando Portugal chegou nas terras brasileiras, afastando a mata com o progresso, a reação contrária foi tornar a terra lisa, para que servisse às estradas, os prédios, as plantações. Mas eu estou fazendo o movimento contrário, quanto mais dor aporta no meu coração, mais raízes eu crio.

Prometo tentar ser breve em te contar essa história.

Desde muito antes do primata mítico dizer a primeira palavra, formular o primeiro pensamento, nós nos relacionávamos uns com os outros. Desde que a primeira célula nervosa fez seu caminho pela primeira fórmula de vida primitiva, para alertar o resto do sistema de um possível perigo, nós sentimos dor. Mas essa relação, essa dor, em nada se compara ao que hoje, já no mundo da linguagem, chamamos de paixão.

A paixão vem sempre de fora, de um gesto, um sorriso, uma parte do corpo exposta ou uma conversa que passou do ponto. Mas é dentro do apaixonado que ela faz o seu estrago. Queima, queima muito mais forte do que os cigarros que eu apago no meu corpo, muito mais intensamente do que os motores do progresso passando pelas raízes do manguezal, transformando-as em estradas.

Um garoto, que pensou que a melhor forma de lidar com a dor era simplesmente ignorando o prazer a ela conjugado.

Durante os primeiros anos isso funcionou, e muito bem. Não é necessário pensar nos outros quando se vive para si. Não é necessário se preocupar com a dor alheia, as vontades alheias, os prazeres alheios, quando seu próprio nunca saiu de casa, nunca foi procurar um igual para se entrelaçar e dividir o peso do pé que erguem para cima do muro. É fácil viver assim, quando todos os culpados pelos males da vida são você mesmo. E não são tantos, quando nada se anseia além da mediocridade.

Uma garota, presa num turbilhão de sentimentos que jamais foi capaz de tirar do próprio coração encontra alguém que nunca foi capaz de amar. Aquela que ama demais e esquece demais contra aquele que guarda todas as experiências na cabeça, nunca sentiu.

Não foi fácil. De início, ambos quebrados, uma pelas moléculas de água que não foram capazes de deixar de se conectar com as iguais, e igualmente incapazes de superar a separação, outro pela explosão iminente dos átomos de urânio que se chocavam entre si por anos, no calor de um coração que não podia se expandir, se uniram e se amaram intensamente. Mais intensamente do que quaisquer das experiências anteriores de ambos.

O amor. Cálido como ele só. Até hoje os desocupados discutem como pode uma dor tão intensa se transformar no mais afável dos abraços quando se encontra com outra dor de igual intensidade. Mas enfim, prossigamos.

Claramente esse choque de realidades distintas não poderia durar muito. Foi com certa velocidade que o coração da garota completou seu ciclo, fechou a própria cicatriz e deixou aberta a ferida no coração do rapaz, completamente incapaz de conter a explosão que agora se expandia à atmosfera e queimava o ar que o fazia respirar. Ele precisava de mais, de qualquer mais que pudesse se juntar aos seus átomos e continuar a reação, até que não sobrasse nada que não o caos, a plenitude de saber que tudo é nada e vice versa.

E assim foi. Em bares, festas e na sua própria casa. A fuga de si, do peso que carregou por tanto tempo sozinho e que agora não podia sequer encarar de manhã no espelho era constante e resultava sempre no mesmo: na incapacidade de conter a reação.

Uma pausa. Uma anedota.

E um gatinho que, contrariando sua natureza de gato, se afaga no colo de universitários na rua, em busca de um lugar quentinho pra dormir. Uma graça. Mas chega um momento que todos sentem que o carnaval teve seu fim, e voltam pro calor de suas casas. O gatinho, então, se via sozinho de novo, até outro bêbado o acalentar em seu colo.

A madrugada se estende pelas ruas da cidade, nada nem ninguém sabe o que acontece lá fora. Um gato, que se encontra no meio de uma reação impossível de ser freada.

Ele canta uma canção. O gato responde da melhor forma, mesmo não sabendo o que é a cultura.

O cigarro acaba. Ambos estão no seu limite. Por compaixão e respeito ao gato, o garoto decide que não pode deixar que ele veja o que está prestes a acontecer. Gilete, dói menos que uma faca, mas corta com a mesma destreza as ranhuras nos braços de alguém que não foi capaz de lidar com a própria existência. Os ombros, o bíceps, o caminho é claro pra qualquer um que já tenha tentado a mesma coisa. Antebraço, desce até o ponto onde o pulso, nunca antes tão intenso, roga pelo direito que continuar batendo, de continuar sua função primária.

E vence.

E agora aqui está o garoto. Sentado nas estradas que fecharam os ramos das árvores, com os próprios ramos nos braços abertos. Engolido pela própria reação em cadeia e sem saber para onde ir e sem ter nada para chamar de próprio além das vergonhas de uma vida passada. Ninguém mais vai vir até ele, se não para lembrá-lo da vida que não pode mais viver.

Mas ele persiste. Para onde, só o destino sabe.

Rafael Matos
Enviado por Rafael Matos em 06/07/2018
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