QUANDO O MAR AMOU

Todos os dias eu vejo milhões de pessoas, elas se banham em minhas águas, navegam, constroem sobre mim suas plataformas. Os poetas me definiram em seus versos, os escritores me empregaram como paisagem para seus heróis, belas canções aludiram o embalo de minhas ondas. Os indivíduos brincam em mim, casais deslumbrados afundam unidos em minhas profundezas, se enlevam com as criaturas a jazer em meu âmago. Exerço judicioso êxtase sobre a humanidade, suspiram ao ver-me alumiado pela lua. Muitas vezes vi povos emocionados verem partir sobre mim suas embarcações, levando soldados para a guerra, famílias a outras terras, amores partindo em busca de novas conquistas. Há séculos eu sou caminho da humanidade. Iemanjá é minha filha, Poseidon meu Deus.

Mas eu nunca me detive para observar os seres humanos, nem quando seus navios submergem, quando guerreiam sobre mim, ou quando me contemplam. Jamais tive tempo para a humanidade, eu me consagro realmente às criaturas em meu interior, aos maremotos a me abalar, as praias onde me esparramo cansadamente a caça de descanso.

Em um dia tranqüilo de julho, numa praia desabitada, não vem ao caso identificá-la, pois não entendo essa mania de nomes, tão apreciado pelas pessoas. Minhas ondas se abortaram na direção dum casal, e pela prima vez, em meus milenares anos, deparei no rapaz um olhar muito parecido com minhas emoções. Ele tinha olhos de mar, moviam-se como as ondas ao entrar em águas rasas, desacelerando. A cor parecia com uma parte de mim próxima as praias do Caribe, rasos olhos de mistério, nostalgia, tristeza e sabedoria. Eu, causador de tantos encantamentos, me vi arrebatado por um ser humano, e durante todo período que narrarei essa experiência, a lua não me controlou, as marés já não dependiam desse astro tão longínquo, as oscilações das águas proviam dos sentimentos daqueles humanos, caminhando perante mim, nessa praia ensolarada, de areias douradas, brilhando. De relance, bem rápido, passou-me a vaga ideia, me fazendo recordar Fuerteventura, nas Canárias, onde eu me vestia lindamente de verde, as areias pulcras como ouro polido. Aqui, assim como lá, não havia vegetação, a areia era encaixilhada por elevações belas, e em suas paredes, em vários pontos, abriam-se acanhadas grutas.

Nesse cenário tão devaneador, aclarado e sereno, os dois adolescentes peregrinavam de mãos dadas. O sorriso dela anunciando alegria genuína, os olhos disseminando júbilo, admirando o local. Contudo, nada se confrontava ao aspecto extasiado dele. Como disse antes, nunca me atentei a ninguém, nem aos que marcha a minha beira, muito menos aos mergulhadores. Aceito unicamente o fato da adoração humana por fim, sem me sentir celebridade, como a flor é incógnita aos seus simpatizantes. Nunca tinha visto aquele par, disso tinha certeza, pois o magnetismo devastador em mim, fez-se de imediato. Também intuí na fisionomia dela, o regozijo em estar perante mim, e pareceu ser a primeira vez que me via. Eu era inédito para ela, eu estava sendo apresentado por ele, e para não arruinar a emoção, nesse dia de julho, me mantive plácido, movia-me pouco, concentrei-me no olhar do mancebo, sua postura de herói, oferecendo a mulher, adoradas terras desconhecidas, fazendo-a dona daquela imensidão, nomeando-a rainha. Seu sorriso garboso. Ah, seria isso então, o amor. Parei de mover-me quase inteiramente, assemelhei-me a uma lagoa, só para ver o amor florescer ante mim, e nunca me olvidei desse período. Tempos depois, descobri algo densamente inquietante, assim como o amor floria neles, também começava a florear em mim esse sentimento tão divinal.

Eu ouvi o nome dele poucas vezes, contudo, o dela, ele o repetiu as minhas bordas ilimitadas vezes, salgando mais minhas águas com suas lágrimas de aflição e pesar. Quantas vezes ele reproduziu sua história para mim, fui seu confidente, e aguentei firme, assistir sua agonia, sua consternação, gritando o nome dela. Ele morreu chamando esse nome, ele penetrou minhas entranhas pensando nesse nome, tocou o fundo de meu cerne sem esquecer esse nome. Hoje ele ainda habita em mim, e ela ainda existe no coração dele. Entretanto, não pensem vocês, num calamitoso suicídio, um homem com essa intensidade de amor, não se mata. Ele viveu, padeceu, chorou, e sucumbiu-se até o seu derradeiro suspiro na perspectiva de um dia ter seu amor.

Eram dois amigos. Naquela tarde Ferdinand carregava uma enorme cesta de vime, trajava apenas uma sunga vermelha. Ela vinha linda, vestindo um belo biquíni, o top de frente única com alças amplas, o bojo modelador tornando o decote mais sedutor, delineado pelo aro arrematado pelo fechamento por amarração nas costas, a calcinha com elástico no cós e nas pernas ajustava-se impecavelmente a seu corpo esbelto e moreno, a peça toda floral, em fundo branco, estampado com flores em inúmeros entretons, parecia uma bela aquarela de William Turner, e só me demorei nessa descrição, para lhes dizer o quanto Ana era esplêndida.

Ele abriu uma toalha alvejada, confeccionada em renda, sobre a areia, bem à sombra de uma montanha, depositou a cesta, e ambos se sentaram, sorrindo um para o outro, os cabelos dela, negros e encaracolados, esvoaçavam delicadamente. Até então eu não sabia de onde surgiram, nem quem era, e menos ainda o que calhava com ambos fora das praias a meu redor. Minha vista só alcança meus domínios. No entanto, nesse momento, enquanto ele tirava a passo uma garrafa de vinho do balaio, alguns cachos de uva e um potinho com biscoitos, ela parecia olhar para ele cheia de encantamento. Curiosa, aproximando-se mais, deu-lhe um casto beijo na face esquerda, deixando-o inflado, ostentando uma ampla felicidade. Quantos anos teriam. Para quem tem milhões de anos, determinar a idade dos humanos é algo complexo. Porém, para mim, eles não pareciam ter mais que dezoito, no máximo vinte anos. Descobri, também mais tarde, que o amor não deixa a idade transparecer. Todavia, eles pareciam estar naquele período aonde se vai desvendando as sensações, a ternura e as fantasias.

O litoral estava desabitado nesse dia de julho, o céu tinha escassas nuvens, e eu serenamente assessorava os dois, observava com atenção ambos tomarem vinhos em belas taças de cristal, se alimentar de queijos e uvas, e desenvolver a soberba cena onde ele deposita entre os lábios dela a fruta rubra, e em seguida anediava calidamente seus cabelos, enquanto Ana ria docemente. Languida de afabilidade, se deixou resvalar para o colo dele, colocou óculos escuros de aros grossos, e ali, a sombra da montanha, tocados pela meiga aragem, ele sentado sobre a toalha, eu pude ouvir parte de um diálogo.

Ferdinand, disse de forma afetuosa, você é muito especial para mim, e não imagina o quanto te amo.

O sorriso dele se avolumou e algo vibrou em seu interior. Comecei a me exaltar em pequenas ondas enquanto ele retribuía aquela declaração de amor, fazendo um afago sobre o rosto afetuoso dela, clarificado pelo sorriso alvo e unidimensional.

Amo-a ainda mais, Ana. Seus olhos evidenciavam a magnitude do amor, chamejavam tanto quanto o sol. Eu lhe daria o mundo se você quisesse.

Não quero o mundo, esse instante com você, vale mais do que o mundo tem a oferecer. Ter seu carinho e sua amizade me basta.

Dito isto, alocando amor ofertado num cesto onde só tinha amizade, fez o sorriso de Ferdinand amainar expressivamente, e ele virou a face em minha direção, ocultando dela a sombra da decepção. Seria então apenas amizade o que ela lhe consagraria. Se não lhe apetecia apenas a amizade, por que não aproveitava a ocasião para lhe fazer uma declaração. Recuei minhas águas da areia, o vento contribuiu comigo no silêncio e cessou, estive a espera da declaração de amor, a manifestação de seus anseios.

Meu afeto e minha amizade sempre permanecerão a seu dispor, contrapôs ele.

Não deveria ter lhe dito isso. Já vi milhões de apaixonados, e essa não era a frase a dizer. Ferdinand amava Ana, mas por algum ensejo ignorado para mim, ele não se revelava. Porque manter-se retraído, aceitar aquela amizade, se isso não lhe atendia. Joguei minhas ondas com energia sobre a costa, melindrado, esperando uma reação, contudo, ele meramente esteve ali, desbastando os cabelos dela, ignoto as minhas convulsões.

Recite para mim aquelas cantigas trovadorescas, pediu cheia de graça.

Ele catou na memória. Declamaria algo a deixar implícito seu amor. Respirou densamente, e com a mesma fineza do sopro oceânica, disse.

Conheço certo homem, ai formosa,

que por vossa causa vê chegada a sua morte,

vede quem é e lembrai vos disso,

eu minha senhora.

Sim, ele se professou, expôs a ela seu amor na configuração duma respeitosa cantiga, enaltecendo seus atributos de mulher amada, um amor polido, subserviente não só na amizade, mas em algo intenso. Então fiquei aguardando a reação dela, e seu único abalo foi o alargar do sorriso. Colocou-se sentada diante dele, movi-me devagar, ansioso, a espera do beijo arrebatador, evidenciando o entrosamento, correspondendo. Ela achegou-se sem pressa, comecei a compor acanhadas ondas de estímulo, e quando ela envolveu-o num abraço, me mantive estático. O beijo aconteceu de forma decepcionante e sóbria no rosto, indignado, arremeti-me sobre a margem com cólera.

E acerca do poema, ela declarou.

Um dia, eu gostaria de descobrir um amor assim, que morresse por mim, que me ofertasse integralmente seu zelo, desses amores iguais Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, trágicos, porém intensos. Ela revelou tudo isso, abraçada a ele.

Ferdinand apenas sorriu enlaçando-a ainda mais forte, concebendo a tragédia, presumindo em deixar sobre a cômoda de seu quarto uma longa carta de amor, noticiando a ela sua paixão e encantamento, sua expiação intensa ao não ser correspondido, imergindo tragicamente num funesto final daqueles suicidas apaixonados. Isso talvez devesse à forte influência dos livros lidos, pois, nas conversas que tinha com ela, tomei ciência de que ele estudava Letras, tinha um grande interesse em literatura, adorava o período mediévico, o trovadorismo vigente entre o século doze e quinze, seduzido com as cantigas de amor. Sua alma, devido a essas leituras, tomou-se de contornos lutuosos. Imaginava-se fenecendo de amor em alguns períodos, noutros, via-se assentado aos pés da amada, empunhando o alaúde, cantando até o fim de seus dias as loucuras das quais seria capaz pela bem-amada.

Quantas vezes eu o vi recitando para ela trovas de J J Nunes, Paio Soares de Taveirós. E me lembro, já em seus últimos dias de vida, desamparado, deitado nesse mesmo litoral, por noites a fio, como uma ladainha, ele recitava Bernardo Bonaval.

A mulher que eu amo e tenho por Senhora

mostrai-me a mim, Deus, se for de Vosso agrado,

se não, dai-me a morte.

Quantas vezes por Ana, ele cantou as minhas margens, chorou infindas vezes, sofreu, se injuriou por não ser amado, passou dias, anos, morando numa choupana a meus pés, e eu escoltei sua aflição durante setecentos e quarenta e seis dias, até que a agonia, amargura e falta de nutrição, o trouxe definitivamente para dentro de mim.

Eu não sei como se conheceram, nem como se tornaram amigos, mas posso dizer-lhes, Ferdinand se enamorou profundamente. Como não se entusiasmar, essencialmente pela beleza contida naquela pele trigueira, faiscando ao sol, nos feitios acentuados, afinal, os homens inicialmente se apaixonam pela imagem. Contudo, ela não era só formosura, tinha um sorriso comunicativo, uma polidez de gestos, a voz afetuosa, os olhos acinzentados ratificavam surpresa por sua inteligência, e nesse ponto ele deixou a paixão de lado, penetrou o mais bárbaro dos labirintos afetuosos, e não pode mais achar o caminho para a consciência, ele delirava para sempre nesse amor. Ela se tomou duma veneração por ele, por sua cultura, sua instrução. Para ela, Ferdinand tornou-se um anjo guardião, prestigioso, dono do conhecimento, detentor da solução de todos seus infortúnios, lhe dedicando lindas odes, cantando em seus ouvidos canções francesas, e essa necessidade por ele, o fazia se sentir mister, e na sua mente, um dia, ela também se cativaria por ele.

Linda, ingênua, desprendida dessas coisas de estudo e erudição, gostava de músicas populares, essas modas, que num dia estoura em todas as rádios, e dentro de meses desaparecem sem deixar vestígio. Não gostava de assuntos internacionais, política, nem de futebol. Adorava apenas estar com ele, sem interesse em aprender a fundo nada do que lhe ensinava, mas ela se sentia protegida ao seu lado, sentia-se admirável, e amada. Gostava de receber um poema escrito especialmente para ela, entretanto, nunca os lia, não entendia o dialeto rebuscado, então os guardava em uma caixinha ao lado de sua cama. Eu soube dessas composições poéticas, por que um dia ela regressou a essa praia e me confessou tudo, fazia duas semanas da morte de Ferdinand.

Atualmente, para lembrar-se dele, ela lê suas poesias, passa a noite ouvindo Jacques Brel e Edith Piaf, no entanto, ao invés de ouvir a voz dos cantores, ouve o clamor dele, e no seu peito duas dores se tornam uma só, a consternação de ter perdido um amigo e a consciência de ter perdido também, quem sabe, seu verdadeiro amor.

Ele não era bonito, ainda assim, acredito na relatividade da beleza, me acho mais belo na superfície, do que em minhas crateras. Ferdinand, para os padrões exigidos pelos humanos, não era formoso, não se comparava a nenhum príncipe da renascença, não tinha a altura nem o porte de Nicolau Segundo, mas tinha aquela barriga de realeza encontrada em dom João Sexto ou Henrique Oitavo. Seu semblante arredondado, marcado por acnes, fazia jus ao corpo de metro e meio, esculpido por excessos de refrigerantes, hambúrgueres e doces, muitos doces, especialmente bolos confeitados, atolados de recheios, o tinha visto tirar muitas guloseimas daquela cesta de vime. E adornando seu nariz esparramado, uns óculos estilo aviador. Como parte de seu corpo, sempre tinha em mãos um livro, desses de capa dura, empoeirado, encontrado nas prateleiras mais baixas das lojas de livros usados ou antiquários, esses volumes muito velhos, esquecidos pela maioria. Ninguém mais, a não ser ele, lia Homero, Virgílio. Quem, nesse mundo contemporâneo, ia consumir horas valiosas do seu dia lendo Amadis de Gaula ou A demanda do Santo Graal, se era melhor ir ao cinema ver A culpa é das estrelas. Mas Ferdinand permanecia firme, imerso na arte, atraindo Ana com sua sabedoria, e no caso de a memória lhe faltar, não podendo se recordar dum poema, recitar-lhe-ia um fragmento das páginas.

Sim, um dia, parado diante de mim, ele prometeu o mundo a ela, porém, enquanto ela não lhe pedia o mundo, ele se dedicava a lhe dar seu amparo, seu conhecimento e seu amor. Quando as meninas da rua decidiram lhe sovar exclusivamente por ser bela, as mulheres têm ciúme da beleza, mas ao mesmo tempo tentam ser belas. Se eu tivesse ciúme da graça das praias, eu seria um tsunami perene. Todavia, retomando o tema, quando as meninas de seu bairro resolveram lhe armar uma surra, ele a acastelou valentemente. Quando Ana lhe disse ser grande a vontade de aprender a dirigir automóvel, ele correu a tirar habilitação apenas para ensiná-la. Quando ela desmaiou na quadra de vôlei devido ao excesso de esforço anatômico, ele estava com ela no hospital, padecendo retraído, tomado pelo medo de perdê-la. E quando ela começou a namorar o rapaz que morava a um quarteirão da casa dela, ele a auxiliou na escolha da aliança de compromisso. Foram dias e noites, sentado na areia diante mim, chorando compulsivamente, sacudido de ódio daquele rapaz ousado, surgindo entre eles para causar o aniquilamento idílico da amizade. Adolfo ganhou toda ternura, benevolência e amor carecido a ele, mas Ferdinand não arranjava forma de se desatar de Ana, não conseguia lhe dizer não, era inadmissível a ele, vê-la infeliz. E o absurdo dessa devoção, deu-se ali, diante de mim, quando Ana lhe expôs o fato de Adolfo não ter condições de adquirir o anel de compromisso. Ferdinand ofereceu-se para comprar pelo menos a dela, contudo, dessa vez Ana não aceitou seu auxílio, disse estar calma, e aguardaria seu namorado ter condições de lhe dar.

No outro dia, Ferdinand foi até a joalheria, pagou metade do valor do par de alianças ao vendedor, pediu-lhe segredo sobre o fato, passou ao rapaz o número telefônico de Ana, pedindo-lhe para entrar em contato com ela, dizendo estar havendo uma grande promoção, e os preços das peças tinham baixado a meio valor do original.

Sábado, eles estavam na praia, apenas os dois, e com graúda exultação, cingindo e osculando inúmeras vezes as faces de Ferdinand, contou-lhe que Adolfo lhe pudera dar a aliança devido a uma redução de preço. O amigo a abrangeu, proferindo estar feliz. Ninguém jamais soube, e apenas eu vi a terceira aliança no dedo de Ferdinand, ele comprou uma idêntica a deles, carregava-a para todos os cantos nos bolsos de suas vestes, e morreu usando aquele anel, marcando o matrimônio não concretizado oficialmente, mas tantas vezes sonhado, deitado naquelas areias, banhado por mim.

Se ela tivesse me amado, eu teria tido o mundo, ecoou essa frase durante dois anos, todos os dias, olhando para mim, e nesses períodos, minhas ondas sustavam, eu afundava em mim mesmo, permanecia confuso em presença daquela dor densa em seus olhos.

Constantemente tentei crer, genuinamente, na probabilidade dela apaixonar-se por ele. Tive a utopia de um dia vê-los caminhando por essas praias de mãos dadas, um filho para edificar castelos de areia. Como desejei a Ferdinand a conivência desse amor tão cobiçado e não satisfeito. Queria um dia ver Ana amando-o sem medidas, a ponto de abdicar tudo para estar com ele. Entretanto, um ano depois da aliança de compromisso, noutro julho, estavam mais uma vez sentados diante de mim, sobre a mesma toalha, no entanto, sem a cesta. Ele tinha um livro em mãos, vestindo uma regata branca e usando sunga preta, ela com biquíni também preto, os cabelos balouçando, continuamente esvoaçante.

Você não sabe o quanto lhe amo, meu amigo. Ela retomava o assunto desse amor, misturado com a palavra amigo, fonte das mágoas de Ferdinand. Espero nunca ver o fim dessa amizade, quero-o sempre a meu lado.

Eu estarei, e você sabe disso, dizia ele, sem ânimo para ir adiante, arrebentar numa declaração aberta, arremessar sobre ela a magnitude desse amor. Você é a pessoa mais importante da minha vida. E conteve-se para não deixar incidir às lágrimas.

Você também o é para mim, dito isso, sua dor arrematou-se no abarcamento dela.

E então, alforriado de seus braços, abriu o livro, olhou densamente dentro de seus olhos, baixou em seguida a vista, adveio de seus lábios, sem carecer ler, pois havia sido a cantiga mais recitada por ele, e depois de sua morte, ela soube, e encontrou em sua caixa de recordações, essa mesma cantiga escrita num cartão para ela.

Ai Deus, que me fizeste mais e mais amá-la

mostrai-me onde posso com ela falar,

se não, dai-me a morte

Se eu pudesse, ficaria nessa praia para sempre, só nos dois. Disse isso, uma lágrima diminuta correu por suas faces, e ele as secou com afeto, as mãos hesitantes, perguntando.

Por que choras

Às vezes eu tenho medo de perder você, respondeu ela, essa amizade me ampara.

Admirando os dois, compreendi o sigilo de Ferdinand, a omissão de sua inclinação por ela. Pensava ele, caso confessasse seu amor carnal, sublime, poder originar a ela um estranhamento apto a desestruturar a amizade, ruir a coluna de sustento da amiga. Não querendo por em risco a certeza da amizade em troca da improbabilidade do amor, mantinha-se em dramático suspense esse sentimento, mantendo-o no nível fantasioso da ficção, acima e além das literaturas prósperas, uma aspiração distante e inalcançável.

Passei a tarde escutando ela segredar ao ouvido dele o calibre do seu amor, prometendo lhe abonar amizade infindável, perpetrando alegorias da amizade com a minha própria imensidão. Que honra ser componente de comparação desse afeto.

Em seguida, ele ateve o livro sobre a toalha, tirou a regata, ajudou-a a levantar-se e correram em direção a mim, imergiram, gracejaram, rodaram, gargalharam e foram felizes naquela tarde ensolarada, como nunca mais os vi ser, como nunca mais parei para ver outros humanos serem. A mim, naquela tarde, revelaram muito mais amor, ternura e benignidade, difundiram mais paixão, do que qualquer casal abertamente apaixonado.

Anos depois dessa tarde tão hílare, eu o vi atirado nessas areias, exalando densamente a bebida, desgrenhado, bem mais magro, cabelos despenteados, barba sem arranjar, asfixiado em pranto. Porém, esse fato não me consternou tanto quanto ver ela sentada nessa mesma praia onde ele a amou, sorriu e sofreu. Aqui ela também chorou, do mesmo modo padeceu, e nesse dia, enquanto ela pranteava-o, eu me movia com ira, minhas ondas estrondeando indignada sobre a areia, revoltavam-me tantos anos de cegueira da parte dela, sua displicência a uma emoção tão profunda. Só agora, quando ele já não mais poderia estar diante dela, tomava noção do amor de Ferdinand. Naquela tarde eu quis formar uma grande onda e aniquilá-la, amaldiçoei-a de mil formas, pois cada lágrima caída dos olhos de Ana me fazia recordar todas as vertidas por ele. Eu que presenciei seu fim penoso, expirando a míngua, se definhando dia e noite. Se eu soubesse antes a que ponto atingiria essa história, certa tarde eu teria sugado os dois para dentro de mim, ninguém jamais os veria, seria apenas os dois vivendo em minhas águas, existindo o mais belo e duradouro amor do planeta, desse amor que nenhum livro historiou, nenhum poema deliberou, nenhuma canção explanou, esse amor que não se aprende apenas se vive.

Mais dois anos se transpuseram, após aquela idílica tarde de encantamento, e essa praia um dia tão erma, onde seus únicos visitadores eram Ferdinand e Ana, nesse mês de julho foi invadida por Adolfo, caminhando de braço dado com sua esposa. Ana vestia maiô preto, os cabelos outrora tão esvoaçantes estavam presos num coque escondido por baixo dum grande chapéu de renda branca. E o mais inconcebível de tudo, era ver logo atrás deles, carregando a grande cesta para o convescote, o fiel amigo, feliz com aquele bocadinho da afeição, exultante por essas réstias, sobra ignominiosa de amor, vendo-a casada com outro, dedicando seu amor e seu tempo ao marido. Ferdinand nesse instante me pareceu um criado, na verdade me pareceu um filhote, um cachorro adorado pela dona, mas jamais ocupando o lugar de seu senhor.

Até hoje me deixa melindrado o fato de ver Ana matrimoniada com aquele homem, a falta de bravura de Ferdinand, seu olhar macambúzio a acompanhá-los, queria eu me lançar em grandes ondas contra a areia, atingir Adolfo e subtraí-lo dessa paisagem. Não aceitava sua participação nessa história, como poderia vê-los sentado na toalha branca e Ferdinand sentado na areia, apenas vendo os dois tomarem vinho, ocupando o lugar do amigo no doce prazer de lhe servir uvas. Enquanto o casal se beijava, afortunados, o amigo se mantinha calado, dissimulando estar feliz por ela. Abriu o livro, lendo atentamente, para esquecer a cena diante dele.

Você sente algum prazer em ler essas coisas retrógradas e antigas, perguntou Adolfo, bebericando um gole de vinho.

A ausência de erudição está acabando com o mundo. Estamos banalizando a arte, a cultura, e nossos próprios princípios, respondeu Ferdinand. Tudo é superficial e insosso, só a erudição pode trazer a nós princípios sólidos e emoções densas.

Acredito ser o oposto, apenas as coisas práticas valem à pena. Para mim esses escritores de tempos remotos seriam mais felizes na atualidade, dizia Adolfo, retirando da cesta um vidro com biscoitos de nata. Eles escrevem um monte de expressões sem sentido, são melancólicos, patéticos e inúteis.

O semblante de Ferdinand tomou-se de cólera, porém, viu-se impedido duma resposta a altura, graças à intromissão de Ana.

Eu gosto das cantigas trovadorescas recitadas de forma encantadora por você, disse, sorriu para ele.

Porém se casou com um editor de livros práticos de auto-ajuda, querida. Deu um beijo candente em sua esposa. Esses livros sim têm proveito, doutrinamos as pessoas às adequadas coisas saudáveis da vida, como enriquecer, arrumar um marido, investir, ensinamos as pessoas a ser felizes.

O conceito de felicidade é mais amplo, mas você não tem uma inteligência satisfatória para absorver tais considerações. Na verdade, vocês doutrinam as pessoas a ser alienadas. Os zumbis nunca estiveram tão atuais quanto agora. Pegou uma taça de vinho oferecido por Adolfo e prosseguiu. Se as pessoas fossem mais instruídas, inteligentes, eruditas, buscassem ter individualidade, se o mundo incluísse mais amor pelo conhecimento, não seriam imprescindíveis seus livros de como produzir zumbis.

Nesse minuto eu vi os olhos de Ana e Ferdinand se descobrirem, cheios de emoção, como se tivessem alcançado de uma vez por todas o amor que trespassava dentro de cada um, que o golpeava, e a ela era indiferente. Mas o assunto morreu no ar, ele voltou a sua leitura, vivendo nas palavras de Camões a dor de dom Pedro ao ver morta sua amada Inês.

A tarde ia atingindo o fim, a presença dos três ali ganhou sentido. Adolfo e Ana se mudariam para longe desse lugar, outro continente, outras terras, e ela teve a ideia de passar a tarde ali, com seu marido e seu amigo. Era uma despedida, e concebeu ser ali, onde por tantos momentos tinha sido feliz, o cenário quimérico. Os três de pé, a toalha já coletada, o marido dando um possante aperto de mão no amigo da esposa, e um abraço frouxo, afinal, Ferdinand tinha sido seu padrinho de casamento. Em seguida, sucedeu o amplexo prolixo, arrastado, entre os amigos. Ele a segurou entre os braços no afã de se tornarem apenas um, aspirando desde já à intercessão duma força superior capaz de não os separar.

Eu amo você, ele cochichou sem seu ouvido, as lágrimas escapando-lhe.

Eu também, redarguiu, nunca vou te esquecer, meu amigo.

Vou ficar por aqui mais um pouco. Ele não queria sair daquela praia, onde tudo lhe rememorava ela. Faça boa viagem.

Adolfo e Ana despontaram pisoteando a areia, o marido agora carregando a cesta outrora do amigo. Só quando eles sumiram no horizonte, ele ajoelhou-se diante de mim, chorando como jamais voltaria a chorar, jogou-se na areia, dilacerado pela solidão, e ali, bem perto de mim, eu passava sobre seu corpo minhas águas na doce ilusão dum afago, na tentativa de acalmar seu coração, extinguir sua dor, tentando consolá-lo. Se me fosse lícito, eu o teria abraçado naquele momento com minhas ondas, trazê-lo para dentro de mim, proteger esse sofrido rapaz do mundo. Eu, palco de tantos amores, tantas tragédias e tantas alegrias, tornei-me manso e calmo como um lago diante do desgosto daquele homem.

A noite caiu sobre nós, me sustentei pacífico, transpus a noite velando Ferdinand, ele não dormiu, chorou sem cessar, e ao alvorecer, se levantou, caminhou trôpego pela praia e desapareceu de minhas vistas. Só então ousei me enfurecer em grandes ressacas, quase devastando o litoral com minhas ondas raivosas, inconformado diante desse padecimento indevido, um homem assolado por um amor não correspondido.

Dois dias depois vi Ferdinand no outro extremo da praia, onde havia uma velha choupana. Ele decidiu morar ali pelo simples fato de poder observar a margem onde teve tantas ocasiões venturosas. As tardes ele passava sentado sob areia, e pensava nela, doravante abdicando viver, meramente para reviver, escrevendo num volumoso caderno sua história com Ana. Pelo menos isso tinha sido a ideia inicial do caderno, mas acabou registrando histórias passadas em seu imaginário. Parado ali, ele escrevia velozmente, sempre acompanhado de uma garrafa de vinho, tomando no próprio gargalo. Todas as vezes que o tinha diante de mim, minhas águas serenavam, e eu acompanhava as histórias lidas numa voz embargada pela emoção, parecia lê-las para mim, porém, minha fonte de maior encantamento eram seus versos, inspirados nos trovadores. Nesses escritos ele a amava sobre as areias da praia, adentravam em minhas águas sempre afortunados, num êxtase de paixão.

Por mais de setecentos dias, assentado ali, ele viveu em sua memória as histórias desse caderno, usava agora a aliança de compromisso, colocou-a logo após a partida de Ana, num gesto teatral, na vaga percepção de estar se casando com ela. Nunca mais falou com seu amor, e em julho, dois anos depois, tinha concluído o caderno, deixou-o na areia diante da casa, caminhou por todo o alargamento da praia, até chegar ao lugar onde por infindas vezes estendeu a toalha cândida, a praia deles, panorama da sua afeição. Deitou-se, embriagado, não sei se de dor, ou de vinho. Imaginou-se afagando outra vez os cabelos dela, cantando baixinho uma música francesa. As horas se transpuseram, fui me expandindo em direção a ele, e na doce ilusão da chegada de Ana a qualquer instante, fiquei acariciando seus cabelos, e ele idealizou serem minhas afetuosas ondas, as mãos dela, delirou chamando seu nome, lembrando-se de seu último encontro. Ele tinha dito, eu te amo, e ela respondeu apenas com um vago eu também. Isso doía ainda hoje. Eu também, não é eu te amo.

Absolutamente confuso em seus desatinos, esquivou sem pressa desse mundo, a passos lentos deparou-se com a morte. O que o matou, não sei, pode ter sido álcool, falta de uma boa nutrição ou qualquer coisa diagnosticada pelos humanos, mas para mim Ferdinand expirou de solidão, faleceu por que se sentiu inacabado sem ela. Então eu o aconcheguei para dentro de mim, até hoje o tenho aqui, na certeza do poder destrutivo dum amor não satisfeito. Um amor não correspondido transforma o homem em metade de si mesmo. Metade dele me pertence, e a outra sempre estará esquecida em alguma parte do coração de Ana.

Dias depois, um colega em comum, avisou a Ana do sumiço de Ferdinand, ela então voltou do longínquo lugar onde habitava. Vi-a sentada na praia sobre a mesma toalha, abraçada ao caderno escrito por ele. Novamente os cabelos soltos, trajava um vestidinho havaiano. Sentou-se diante de mim, tinha lido boa parte do caderno, era agora detentora de todos os sonhos dele, compreendeu tardiamente a dedicação, a ternura e o amor, padeceu veementemente, sentiu-se geradora das atribulações do amigo, mesmo sendo sem intenção. Disso tudo, concluiu haver no mundo amores que não serão vividos. E então, eu, num grande gesto de maldade, para majorar mais seu desgosto, num acanhado abalo de minhas águas, botei perante ela, a aliança que ele havia mandado fazer, onde estavam gravados na parte interior, Ana e Ferdinand, e quando ela se levantou para pegar o anel, a toalha voou para as minhas águas.

Essa foi à única vez que me detive para observar os humanos, e tive vontade de permanecer manso para sempre, em homenagem a Ferdinand, meu amor não correspondido.

Van Freire
Enviado por Van Freire em 04/03/2018
Código do texto: T6270363
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