Diana e o Sultão
Sozé, de chapéu e facão, corta o excesso de folhas do bananal na beira do córrego. Suor escorrendo pelo rosto, o sol da meia manhã não dá trégua. Para, toma água da bilha de barro e volta à faina. Alguns pés de banana já tinham dado cachos, já não servem, têm de ser cortados, dois ou três golpes destros e há um pé de banana a menos. De cima do morro, entre as árvores, grita o filho:
- Pai, cadê o sinhor?
- Nas bananeira, na beira do corgo.
- Pai, acho que o Sultão tá zangado.
Era um vira-latas de cor predominantemente branca, manchas meio amareladas espalhadas pelo dorso, cores de outono. Era o companheiro das crianças, as da casa e dos vizinhos. Tinha escapado de morrer uma vez: a filha mais velha de Sozé, quando solteira, implicou com um berne que o animal tinha na coxa. A ferida nunca cicatrizava, ela tinha nojo, tinha que se esconder para almoçar. Um dia, enfezada, misturou pólvora na comida do vira-latas, receita de uma benzedeira. Pois o bicho não morreu e, mais, o berne sumiu de vez. Quem poderia explicar? O pelo ficou lustroso e os olhos do Sultão, que eram sanguinolentos, ficaram incrivelmente claros. A filha viu nisso um sinal do Céu, o cão era filho de Deus, chorou muito, arrependida. Quando se casou e ia mudar pra Goiás, despediu-se do cachorro igual se despede de gente. E chorou de novo.
Um dia, o Turco comentou com Sôzé:
- Esse é um cachorro bonito, tem gênio bom, podia cruzar com a minha cadela, Diana.
Ao que o avô retrucou:
- Mas a Diana é de raça, é policial. Não vai dar certo.
- Mas eu gosto muito do Sultão, é louco pelas crianças. Tem gênio bom.
O Turco era solteirão, sem filhos, gostava de cachorros e crianças.
Achou o Sultão na rua, todo cheio de bernes e feridas. Levou-o para casa, deu-lhe banho, tratou-o e, um dia, presenteou a Sozé.
- Para o senhor. Até lombrigueiro já tomou.
Os netos de Sozé eram um menino, que tinha uns quatro anos, uma menina, quase três, e uma pequenininha, que estava aprendendo a andar. O Sultão metia a língua no prato dos meninos, babujava arroz, feijão, carne e alface, os meninos se acostumaram, achavam graça. Ele tinha sua vasilha de comida, uma cumbuca de alumínio barato, amassada aqui, mordida ali, riscada acolá. Comia nela também. Depois de vazia, virava bumerangue, e o Sultão era obrigado a ir e vir umas duzentas vezes pra trazer de volta a cumbuca, em meio às gargalhadas dos meninos.
Quando o Sultão ficou doido, as crianças se confundiram. Havia algo de novo – e muito estranho – no ar.
- Olha o cachorro do Sozê, parece que tá zangado.
Babava o bicho. Andava de um lado para outro, cabeça baixa, saliva grossa escorria da boca. Quando deram o diagnóstico, Sozé fechou a porta da casa e o portão de ripas que dava para a rua. Avisou o genro:
- Tranque os meninos. O Sultão tá zangado. Chamei o Turco.
O avô mandou vir gente, que ele mesmo não tinha coragem de matar o coitado. Primeiro, veio o Turco Mansur com lágrimas nos olhos. Diana estava prenha do Sultão. Mansur atirou, mas não matou. O Sultão começou a sangrar, agonizava, gania de cortar o coração. Não devia entender como aquele homem podia querer-lhe mal.
Da casa do genro, na janela do quarto, o alvoroço das crianças que procuravam entender o que acontecia no pátio da casa do avô. Depois veio seu Neném e atirou com o mindinho de seu único braço, o esquerdo, cuja mão era incompleta de dedos, mas também não matou. O Sultão sangrava, cachorro zangado, diziam, tem sete vidas, ao Sultão lhe sobravam seis. Ele perdia sangue e chorava. Chorava mesmo. Os meninos assistiam da janela da casa.
Aquilo durou hora e tanto, talvez mais, talvez menos, aquele vai não
vai. No fim das contas o avô chamou o genro:
- Não aguento mais o sofrimento desse bicho.
- Vou resolver.
Pediu o revólver, a mulher lhe passou um Taurus, 32, cano longo. Ele desceu pela janela, atravessou o capinzal, passou pelo jirau, o quarador e o tanque de lavar roupa, subiu a ladeirinha, chegou ao pátio, armou, apontou e deu o último tiro, sem olhar para o bicho. Misericórdia. O Sultão já não sofria. Os meninos não choraram, olharam um para o outro, e correram a narrar para a bebezinha que aprendia a andar:
- Não chora não, neném. Ele vai pro céu, lá em cima, e apontavam o azul sem fim. Tem um lugar só pra au-au no céu. Não chora não, neném.
E a pequenininha ria e dizia “au-au, au-au”.
Em seguida se formou a procissão quintal abaixo. Os vizinhos acompanharam, a maioria crianças e desocupados, o Sultão era querido. Sozé e o filho caçula seguraram o cachorro pelas pernas traseiras e o arrastaram morro abaixo. O sangue deixou um rastro quente na poeira do caminho. As crianças foram atrás, meio tristes, meio na farra do inusitado.
Enterraram no quintal, na descida pro corgo, debaixo dum pé de manga sapatinho. Sete dias depois, as crianças fincaram uma cruz de bambu na sepultura e rezaram pelo cachorro. A pequenininha se ria e apontava pro azul sem fim, protegendo os olhos do sol:
- Au-au, au-au.
Uns dias depois, Diana teve quatro cachorrinhos. Um era a cara do pai.