Outono - Continua ...
Outono
A chuva destruiu o canteiro de cebolinhas. Aquele verão foi tórrido e as praias lotadas. As chuvas de Março, torrenciais, encharcando, inundando, perfurando a terra preta e viva.
Folhas amarelas já caiam das amendoeiras da Passagem. O vento... Não pára!
Os dias ainda são quentes, porém as noites se tornaram mais amenas e também mais longas.
A casa era uma construção mediana com varandas, estilo hacienda e um banheiro do lado de fora. Havia uma calha que circundava o telhado vermelho e captava a água das chuvas para o meio do pátio frontal da casa.
As janelas azuis de persianas eram grandes.
A casa se expunha e se abria dentro de si pelas portas e janelas azuis. Dentro dela a vida fervilhava com as intrigas familiares, com os afazeres domésticos de uma família grande, matriarcal.
Ela estava lá com seus segredos. As mãos sujas da terra ainda molhada. O cheiro misturado de mar e do verde pela manhã acariciava-lhe o rosto. O café sussurrava da cozinha de sua avó que docemente a observava de umas janelas escancaradas que nunca se fechava.
A avó não sabia dos segredos que ela guardava e desconfiava... Era de muito falar a pequenina avó Diversa. Olhos astutos, sorriso largo. Muito magra e ativa. De um coração grande e de muitos amigos. Dona Diversa não tinha papas na língua, como se auto definia, falava o que pensava, e, sonhava com o destino da neta.
Tinha para neta sonhos de amor como os que vivera com o velho Dino, o vô. Sonhos da simplicidade da vida dos pescadores. Dona Diversa cantava Celestino, Noel, Odete Lara, Ângela Maria, a predileta e a neta ouvia feliz, no entanto guardava no olhar uma lembrança.
As manhãs eram assim de conversas e modinhas cantadas, de carícias na terra da hortinha do quintal ora com a caneca de café nas mãos, ora com o anchinho. O trabalho de algumas horas do dia era um prêmio com os frutos que do cuidado de ambas nasciam. Uma necessidade e um prazer!
Ao mesmo tempo avistaram o carteiro em sua bicicleta amarela despontar no Largo de Santo Antônio.
A avó comentou que o vento mudara de direção. Arrepiou a nuca e disse: _ Notícias de longe... Como quem sabe o está para acontecer.
Ela pressentiu o perfume de um rosto que partira.
Dono de um rosto alegre e uma voz potente o carteiro chamou pelo velho Dino ao portão da casa. Uma das tias correu a receber a correspondência. Naquela época tínhamos clubes de correspondência, amigos distantes e familiares que escreviam uns para os outros.
Uma das cartas fora endereçada para ela. A tia não queria entregar, queria detalhes, queria saber. Balançava a carta, zombava e escarnecia. Manchou de tristeza aquela manhã.
Ela não discutiu. Parou de pular para alcançar a correspondência. A tia abriu. Não pode ler. O conteúdo das palavras era um mistério escrito em outra língua. Uma brincadeira com cheiro de flores. Do envelope caiu uma palheta de guitarra. Ela sabia quem era o remetente, mas a tia não.
Como ele descobrira-lhe o endereço? Havia um amigo que os ajudara? Quem saberia?
A avó influenciada pela filha quis saber detalhes e os outros tios ao chegarem do trabalho também. A carta foi guardada como se contivesse um segredo sujo, mórbido. O descortinar de alguma verdade horrenda sobre ela, sem que se soubesse o remetente. Perguntas...
De mãos em mãos correu o papel sem que decifrassem seu conteúdo, sem que pudessem compreender quem fora o autor, o que queria, onde estava, o que propunha, e não obstante à ignorância sobre a mensagem da carta a julgavam pelo simples fato de receber uma carta de um desconhecido.
De silêncio ela encheu a alma. Uma dor que se misturava a alegria de ter alguma notícia, embora não soubesse se boa ou ruim, mas alguém os colocara em contato novamente.
Ela dividia o quarto com sua tia: duas camas, um guarda-roupa. Não havia livros porque a tia os desprezava na verdade embora usasse uma pseudo alergia como desculpa às poeiras, nem mesmo cortinas. A janela abria-se para a igreja de São Benedito sem não antes mostrar alguns quintais e suas árvores de amendoeiras. A janela era amiga. Ela estava lá conversando com sua janela e suas lágrimas. Ele vivia! Dois verões havia se passado e o cais estava vazio sem o som de sua música, de seus passos e seu sorriso nos lábios finos.
Ele vivia de esperança. Se ao menos pudesse tocar aquela carta... Esperaria. Ela procurava entender o porquê de a fazerem sofrer sem razão, de a acusarem por um papel, de cochicharem pelos cantos como se ela não fosse uma deles.
Ela não tinha pai. A mãe a deixara com a avó. Fora uma criança recebida na casa como a filha da louca. Pequena nada compreendia e crescida era grata. Procurava compreendê-los. Aceitava com resignação sua vida e era feliz a sua maneira. Aprendeu que o silêncio era sua melhor defesa e assim seus dias se passavam leves, mas ...Ela tinha um amor.
A carta ao longo do dia foi deixando de ser um assunto importante. Os comentários sobre ela também. Deu lugar a gravidez de uma das vizinhas solteiras. Assunto dos debates às janelas e portas, pesares e tratados de como educar uma moça de família.
O avô português sentou-se a mesa para jantar. Tomou seu Porto e deparou-se com a carta estirada sobre o console da sala de jantar. Também não pode saber o conteúdo e perguntou para quem estava endereçada. Para ela, apontou a tia ansiosa por destilar mais um veneno. O avô mandou que entregassem a carta à dona, não estava o nome dela ali?
_Do que se trata? Perguntou o avô curioso. Ela abriu o papel perfumado e amassado. Decifrou em parte o texto, mas não respondeu a pergunta. Disse que não sabia, porque estava escrito em outra língua. Ele vive! Ele vive! O coração mal cabia no peito e as mãos suavam. Esforçou-se para não gritar de alegria e sorrir. Amanhã procuraria quem pudesse ter certeza do que lia. Guardou a carta e a palheta da guitarra como um tesouro e adormeceu com ela e com a zombaria e ameaças de sua tia.
A faculdade era um lugar agradável. Professor Ruy Capdeville falava francês, Wira Wolk também, a professora de Literatura Comparada. Precisa de coragem para mostrar-lhes a carta. Precisava esperar. Sentou-se e observou folhas amarelas das árvores que dançavam ao vento. O outono chegava sobre o jardim calado de Bilac, era o outono em frente ao mar de Cabo Frio, rodopiando suas folhas amarelas e os pensamentos dela.
Sexta - feira dias das aulas de Literatura Comparada e de Latim. Também era ensaio do coral da faculdade onde cantava.
Fim da noite de sexta. A professora guarda seus livros e já se dirige a porta de saída quando, apesar da timidez, ela alcança a mestre e pede que traduza a carta.
Wira era uma senhorinha de cabelos brancos. Ucraniana radicada há anos no Brasil. Escritora. Tinha os olhos vivos e de um azul intenso como o mar da Praia do Forte. Seus olhos se enterneceram ao primeiro contato com as palavras do papel. Era uma carta de amor. Falava de longas noites sem sono, de músicas e lugares que Wira conhecia.
Wira sentou-se novamente e observou a pequena aluna.
Continuou a ler e também a observar elegante desenho à direita superior da folha. Eram duas mãos. Uma sobreposta a outra. Não havia tempo para contar a história à Wira. O vento cabofriense revolvia as casuarinas do jardim da faculdade anunciando a hora de ir embora.
Caminhou apressadamente em direção à praia com a carta nas mãos e o choro na garganta. Não foi diretamente para casa. Sabia que a noite não lhe encobriria os passos, nem a dor, muito menos a saudade. Estariam a esperá-la com a acidez comum à família. Não importava. Precisava ver as estrelas, sentir a água do mar sob seus pés, ouvir o marulhar das ondas dançando... Seguiu então por um caminho bem conhecido e especial.
O cais no Canal do Itajuru parecia menor. A ponte era longa e levava aos barcos. Aquela noite era de lua nova. Chorou e riu. Ele vive! Ele ama! No silêncio do local ouve vozes vindas da casa de trepadeiras amarelas. Um tilintar de talheres e risos.
Fazia tempo que a casa estava vazia. Dois verãos haviam passado. Naquela noite esgueirou-se pela cerca branca em busca do rosto familiar. Por um tempo observou a cena de um jantar fora de hora e seus olhos encontraram outros olhos, com medo e com alegria fugiu.
A avó a esperava angustiada. Era tarde. Ela entrou escondendo o papel entre os livros. Nada disse e muito ouviu. Serenaram e adormeceram. Amanhã era outro dia com cheiro de horta e café. Esperanças... Amanhã ela o veria novamente e não fugiria...
Em uma Tarde de Outono
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...
Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?
A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!
E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...
Olavo Bilac, in "Poesias"