Palavras não ditas - Parte I

Os momentos mais importantes e simples da vida, muitas vezes passam despercebidos de nossos olhos. Deixamos nos levar pela rotina do trabalho, da correria da metrópole e do agitado dia que temos. Sempre há um compromisso, uma reunião, um trabalho da faculdade, alguma coisa que é urgente. Nada é para depois. Às vezes é dado valor a coisas que parecem ser mais importantes e valiosas do que qualquer outra, mas que não passam de coisas fúteis quando comparadas as verdadeiras raridades da vida. E com todos esses aspectos os bons momentos são levados sem que possamos notar o seu escoamento, que fogem por entre os dedos. Pior ainda, é quando se tem a oportunidade de ter os pequenos gestos, o convívio da família, dos amigos, e não ser capaz de dar valor a isso tudo. E quando cai a ficha, o momento já passou, chegou ao fim, sem chance para sequer um minuto de sua valiosa presença.

- Lúcia, você aqui? Aconteceu alguma coisa?

- Aconteceu Mariana. É sobre o seu pai.

- Fala então logo.

- O seu Antero tem andado muito silencioso nesses últimos tempos. Ele só quer ficar sozinho, não interage mais com os outros pacientes e... São raras as vezes que ele sai do quarto pra caminhar no jardim. Eu estou muito preocupada com ele.

- Ah mais isso é normal.

- Não Mariana, não é bem assim. Você sabe o que eu to querendo dizer.

- Se for isso eu...

- De uns dias pra cá ele só fala em você Mariana. Ele pediu pra enfermeira um papel e lápis e... Você precisa ver isso.

- O que é isso?

- Veja você mesma – disse Lúcia entregando um papel a Mariana.

- Um desenho, nada demais.

- Sim. É um desenho. Pode parecer simples, mas quer dizer muita coisa. O seu Antero desenhou você e ele, de mãos dadas. E quando eu fui até ele, perguntar o que significa isso, sabe o que ele me disse? Que esse era o dia em que você ia até lá, visitar ele, dar um abraço e levar ele embora. Aquilo me partiu o coração.

- Eu não acredito que você veio até a minha casa, importunar o meu repouso com essa história Lúcia. Isso tudo é cena daquele velho. Se um dia eu coloquei ele lá, naquele asilo nojento, foi pra ter o prazer de nunca mais ter que olhar na cara dele.

- É sério Mariana. Eu não teria o trabalho de vir até aqui se não fosse algo de muito importante. Você precisa ir visitar o seu pai, antes que o pior aconteça. Ele vai acabar se afogando na tristeza, no desgosto.

- Não esquenta a cabeça, vaso ruim não quebra. E eu já faço muito por ele. Mando roupa, dinheiro, comida. Faço até demais.

- Eu não estou falando de dinheiro Mariana. É de amor.

- Francamente Lúcia. Amor? Aquilo ali não ama ninguém, nem a ele mesmo.

- Tudo bem. Eu tentei, fiz a minha parte. Eu só quero que se lembre dessa nossa conversa caso um dia alguma coisa possa vim a acontecer.

- Ei, Lúcia. Espera.

- O que você quer?

- Toma isso. Leva com você. Tem um bom dinheiro aqui.

- Eu não vim atrás de dinheiro Mariana.

- Não seja orgulhosa, todos nós sabemos que aquele aliso está em ruínas né.

- Ta certo. Vou fazer isso pelos pacientes.

Mais tarde...

- Pensei que não chegaria a tempo do jantar querido.

- Imagina se vou deixar minha esposa ceiar sozinha a essa mesa.

- A Lúcia esteve aqui hoje, acredita?

- E o que ela queria?

- Pedir que eu fosse visitar o velho, disse que ele não ta bem e... Enfim, assuntos medíocres, como sempre.

- Mas não é uma bagatela meu amor, é seu pai. Eu já disse pra você inúmera vezes que ele pode morar aqui com a gente. Eu pago uma enfermeira, alguém pra cuidar dele, se for preciso eu mando fazer as adaptações necessárias aqui em casa. Não vou medir esforços pra ter os melhores profissionais do rio pra cuidar da saúde dele.

- Meu amor, já conversamos tanto sobre isso e... Eu agradeço a sua generosidade, mas... Você sabe que eu quero ver ele sofrer até o último dia de vida. Quero ver ele na solidão, feito um cão sarnento abandonado na chuva. Ele tem que me pagar por tudo o que fez, pra mim e pra minha pobre mãe.

- As vezes você me assusta sabia.

Heraldo retirou-se da mesa de jantar sem antes mesmo de fazer sua refeição.

- Não vai jantar?

- Não. Perdi a fome.

No dia seguinte...

- Vai continuar em silêncio?

- O que você quer que eu diga?

- Como assim o que eu quero que você diga? Eu sou mulher Heraldo.

- Olha eu não quero começar o dia com discussões, vou ter um dia cheio no escritório.

- Você ta assim por conta da nossa conversa de ontem não é?

- É sim Mariana. Eu não acho certo o que você faz com o seu pai. Tudo bem que... Você teve as suas desavenças com ele no passado, você tem os seus motivos, mas... Isso não é bom. Não faz bem pra você e nem pra ele.

- Só eu sei o quanto sofri Herculano. Julgar, apontar o dedo, tudo isso é muito fácil pra quem esteve de fora, que não vivenciou aquilo tudo.

- Eu não estou te julgando Mariana. Eu só acho que isso não vai resolver nada, pelo contrário. O seu pai sofre lá, e você sofre aqui.

- Eu sofro?

- Sofre. Ou você acha que já não te vi chorando pelos cantos da casa.

- Chorei sim. E choro pela minha mãe. Não por aquele velho asqueroso.

- Ta bom Mariana. Eu... já disse o que penso disso tudo, dessa sua vingança, como você mesma gosta de falar e... Eu daria tudo, mais tudo mesmo, nessa vida, pra ter o meu pai, minha mãe aqui comigo agora. Sentados nessa mesa tomando esse café da manhã. Mas você faz o que quiser. Eu vou trabalhar.

- Espera ai Heraldo, vai sair sem me dar um beijo?

- Mariana, por favor... Eu estou atrasado.

Após apanhar a sua pasta marrom, Heraldo saiu.

Mariana permaneceu pensativa à mesa.

- Mesmo longe aquele desgraçado continua a me perturbar. Eu vou ter que colocar um ponto final nisso, antes que o meu casamento acabe indo por água abaixo.

Continua...

Luccas Nascimentto
Enviado por Luccas Nascimentto em 04/03/2017
Reeditado em 04/03/2017
Código do texto: T5930598
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