Formas
Já não mais recordo a sensação da sua pele a tocar a minha, o seu cheiro, a pressão de seu lábio contra o meu. Já não mais sei ao certo como era o seu abraço, embora possa recordar claramente o efeito que seus braços tinham ao me enlaçar fortemente. A memória me prega peças, guarda o conceito e é capaz de trazer à tona o sentimento como se acontecesse agora, mas esquece de guardar os detalhes, o contorno que dá forma ao conteúdo que preenche e invade a alma, deixando uma sensação de nostalgia quase que irritante, uma vontade incontrolável de reviver o momento e dar vida e cor àquela gama de recordações sem traços, uma inquietude de saber exatamente como sentia, sem saber ao certo como era.
E pensar que por vezes cheguei a acreditar que mesmo a memória desses sentimentos já não existissem, que ao longo de quatro anos a razão enfim triunfara sobre a emoção e transformara-os em meras coleções de fatos desprovidos de significados. Ou pelo menos assim parecia nas múltiplas ocasiões em que, ao lembrar meu relacionamento antigo em conversas com amigos, relatei eventos, que um dia foram de extremo significado para mim, sem demonstrar ou sentir qualquer tipo de emoção.
Mas a mente é sorrateira, funciona por vias complexas de associação, que se interligam, muitas vezes, sem notarmos. A mente guarda, esconde do consciente, e traz à superfície quando menos imaginamos, preparados ou não. E foi assim comigo: após anos de vida que segue, após anos de caminhos trilhados, de construção e reconstrução de caráter, de profissão, de metas, de círculo social e de sonhos, encontro-me em uma nova cidade, assombrado e assustado pela presença ainda viva das memórias de uma outra vida.
A vida, porém, compreende muito mais do que apenas memórias. Ao contrário, as utiliza como embasamento para a tomada de decisões e construção de novas experiências, que posteriormente tornar-se-ão memórias que fundamentarão novas decisões e novas experiências. Mas se assim é, por que nos atemos tanto ao passado? Por que nos apegamos tanto às memórias?
Em meio a devaneios, faço perguntas que já sei responder. Me apego a memórias pois são peças de um grande quebra-cabeças, peças que juntas, formam um grande e complexo projeto, em constante mudança e desenvolvimento, formam meus ideais, moldam minha forma de rir, meu senso de humor, minhas reações e também modulam a gota de lágrima que percorre meu rosto ao tentar, em vão, recordar os detalhes dos momentos que passei com ele, o seu abraço, a pressão do seu labio contra o meu, o seu cheiro, a sensação da sua pele contra a minha. As memórias dão conteúdo a algo que a minha mente dá forma. Formam a minha identidade.
A verdadeira pergunta, àquela que de fato não sei responder é: quem sou eu?