Óleo sobre Tela
Cheio de expectativa eu mostrava os tons de amarelo cádmio e terra queimada.
Queria que ela visse as nuances e a forma como iam se criando à medida que eu tentava encantá-la.
Na verdade, o que eu queria mesmo era ver o brilho no claro dos olhos e ouvir as palavras mágicas que me convenciam, ainda que temporariamente, que eu era especial.
Esse era o dom dela. Não o único, mas o mais apaixonante: fazer com que pessoas banais se sentissem profundamente especiais.
Lembro bem do nosso primeiro encontro... Ela lépida e transbordante de sorrisos a apreciar o que carinhosamente apelidou de meu "mundo de fazer arte".
Até então, a saleta empoeirada e cheia de telas inacabadas me olhava apenas como um cômodo para amenizar o estresse e, por que não admitir, o tédio e a solidão com os quais eu convivia na última década.
Mas após a vinda dela, em uma nuvem esverdeada de verbena e ervas, tudo mudou. A sala passou a refletir as cores das bisnagas, os quadros criaram vida e as obras cinza e sem graça começaram a crescer e a tomar, com muito esforço, ares de Renoir, o favorito dela.
Eu? Observava as voltas dos cabelos dourados a me fazer tantas perguntas que muitas vezes minha mente se tornou pequena diante dos sentimentos que insistiam em escapar do lugar cômodo que eu os colocara há tantos anos.
É fato que meu ego cantava. É fato também que há muito eu não tinha contato com qualquer pessoa que achasse significante aquilo que eu desdenhosamente chamava meu "segredo de arte contida". E reconheço que se a afetividade fazia falta na maioria esmagadora dos meus dias, a satisfação que agora eu sentia ao vê-la me notando fazia minha cabeça girar e minha alma querer brincar em um dia de sol cheirando a festa.
Se ela percebeu algo, jamais disse. Era inteligente e cuidadosa demais para isso. Percebia meu desdobramento por agradá-la e por mostrar cada detalhe da minha obra em uma tentativa para lá de explícita de simplesmente tentar afagá-la. E precisa como um bisturi emocional perfeito, fazia incisões na minha rede de proteções, nos meus mais profundos escudos até se aninhar em um lugar muito distante e ávido de alguma coisa que escandalosamente crescia como um desejo, um instinto, até chegar a mais pura devoção.
Um dia ela veio em uma tarde amena de verão e invariavelmente eu me rendi assim que ela sorriu. Disse que queria ver o que eu "estava aprontando".
Mostrei primeiro meu jardim de verdade, pleno das lavandas que ela amava. Depois, cheio de suspense descobri a miscelânea de azuis, verdes, lilases e brancos que tentavam pateticamente copiar os jardins de Monet.
Ela não disse nada. Apenas sorriu aquele sorriso indecifrável que gelava meu sangue. Depois abriu a boca, suspirou e me abraçou demoradamente.
Quando se afastou deixou dois olhos iluminados cravados na minha alma e criando memórias para minha tortura de todas as noites.
Ela saiu pouco tempo depois, mas não levou o perfume.
Eu fiquei extático, respirando lentamente em uma tentativa patética de prolongar o momento.
O quadro seria presente de aniversário, mas não importava. Se não houvesse data especial, eu o pintaria assim mesmo. Ela o colocaria em um lugar da casa, mostraria aos amigos, faria comentários simpáticos, elegantes e falaria um pouco de mim.
Muitas vezes ri da cena. Sabia que era ridícula, que soava infantil e tola a necessidade que eu havia criado de estar presente na vida dela. Se ela me aceitava daquela forma, entre pinceladas e investidas impressionistas em telas toscas, assim eu seria, assim eu faria, assim eu me apresentaria até que não mais me quisesse.
Houve momentos em que questionei se não seria justo e até ético admitir o que sentia. O sufoco, a angústia, a dúvida, milhões de questões e o conflito interno sobre minha tão antiga opção afetiva.
E então ela...
Um soco no meu conforto emocional, uma tormenta na minha estrutura de vida, um convite para algo totalmente novo, revolucionário, possível, perfeito.
Eu poderia ousar... Quem sabe?
Os anos marcando meu rosto me deram a resposta...
A tela com o jardim inacabado mostra minha limitação como pintor enquanto a imagem no espelho mostra minha limitação como homem.
Respiro profundamente, colho lavandas para a mesa e sigo a vida.
Ela terá seu jardim e tantos outros quadros. Eu terei os sorrisos e as memórias mais secretas e perfeitas de algo muito raro que chegou tarde demais.