São Paulo não deixa saudades

É a primeira vez que inicio uma história da forma que estou iniciando esta. Sinto que não é a minha maneira usual de escrever. Confesso que estou como forçado a começar assim o meu texto e, à medida que prosseguir o relato, far-me-ei compreender melhor. Creio que todos, um dia já se perguntaram o que estão fazendo no lugar onde vivem; por que Deus não foi mais generoso e não os fez nascer numa terra mais justa ou pelo menos numa família mais afortunada. Eram esses os meus pensamentos à medida que eu caminhava. O peso da mochila fazia-me entortar a coluna e não suportava a dor intensa na sola dos pés.

Há quase três horas empreendendo aquela marcha num ritmo estável e ininterrupto não via a hora de parar para um descanso. Foi exatamente a falta de dinheiro que me levou a partir para esta aventura louca; então, tudo para mim representava economia. A calça jeans que trajava exibia os furos na perna, na altura dos joelhos e nas nádegas como a maioria das calças desse estilo usadas pelos jovens dentro da moda e dos costumes. A diferença é que a minha não representava moda, mas carência mesmo. Era a única que eu possuía e os furos e rasgos eram mesmo do uso contínuo e não tinham nada a ver com moda. O tênis cinza era de solado resistente, mas já estava comigo há quase um ano e eu já me sentia mal por usar o mesmo calçado o tempo todo.

O trecho da estradinha por onde eu agora passava era estreito e praticamente não havia espaço para pedestres. Os automóveis e caminhões ao saírem de uma grande curva lá atrás, diminuíam suas marchas ao me verem beirando a pista, pois se assim eu não fizesse arriscar-me-ia a cair no matagal ou, na melhor das hipóteses, parar dentro de alguma propriedade ao atravessar o cercado de proteção. Como estávamos nas primeiras horas da manhã não me sentia ainda maltratado pelo calor do sol, embora isto não me impedisse de suar profusamente. Sentia-me colar nas costas a camisa e imaginava a enorme mancha que devia estar expondo. Saquei do bolso da calça o meu lenço e sequei o rosto encharcado. Onde encontrar um local para saciar a fome que já se aproximava? Olhando ao longo da via, do outro lado, passam por mim modernos restaurantes, mas estes vou dispensar pelas razões já citadas.

Eu já conseguia ver, ao longe, estendendo o meu olhar sobre a pista crestada pelo sol impiedoso, uns casebres cuja aparência indicava simplicidade, encimados por chaminés de tijolos fumegando de leve; à medida que eu descia pela avenida o panorama mais se acentuava e eu já via pessoas ganhando aquela direção. Vinham, como eu, a pé, portavam igualmente mochilas e eram jovens em sua maioria. A via principal, por onde eu vinha levaria, obrigatoriamente, todos os veículos a confluir para uma curva à direita bem mais à frente e a que me chamara a atenção era vicinal, para um povoado dessemelhante que eu não custaria a conhecer.

Havia, no meio da formação de casinhas, um prédio principal, de três andares, circundado de área verde. Aí estavam algumas quadras para esporte; futebol, vôlei, uma piscina ampla e, à medida que eu me aproximava, sentia com intensidade as vibrações de energia proveniente do local. A piscina chamava a atenção por suas dimensões e pelo aparato especial direcionado a competições de natação. Raias numeradas, trampolins, uma modesta, mas confortável arquibancada.

Sentei-me ali por um instante, enquanto descia do ombro a mochila.

Contemplei disfarçadamente o que seria um ensaio ou uma aula, embora o que quisesse mesmo era descansar, recompor-me alguns minutos que fossem da extenuante jornada. Fez-me bem a sensação de frescor da água azulada; o esborrifar para cima do piso que sucede o mergulho desajeitado de um aprendiz e a harmonia das braçadas do mestre passando sua lição. De onde eu estava pude avistar do outro lado, meio que oculta pelo gradeado da quadra de futebol, a cantina. Contornei o gramado, peguei uma pequena alameda entre coqueiros ainda muito jovens e cheguei aonde meu apetite me conduzira.

- Não consigo acreditar no que meus olhos estão vendo! – disse, de dentro do balcão, uma moça. Reconheci-a pelo seu timbre de voz, para mim, inconfundível, pois que de aspecto estava verdadeiramente mudada. Era Cíntia, colega de faculdade.

- Como você está mudada! Para melhor, acredite. Eu falara a verdade. Ao menos dez quilos mais magra, uma pele bronzeada, aspecto de menina de vinte anos que já passara dos trinta. Os cabelos pretos, no meio das costas exalavam brilho natural que indica uma pessoa saudável.

Cíntia, que se ocupava naquele momento em fritar algo em uma chapa, largou o que vinha fazendo, desfez-se do avental branco e correu em minha direção depois de agachar-se sob uma portinhola; recebi seu abraço e, cheios de emoção, nos beijamos no rosto. Num instante perpassou-me a memória fatos de nossa vida pregressa. Das tentativas frustradas por parte dela em ser minha namorada e das minhas sucessivas recusas.

Cheguei, por vezes, a sentir-me culpado e cruel ao rejeitar suas propostas de unir-se a mim e me fazer feliz. Contudo, eu não a amava. Era contra inúmeros procedimentos seus como fumar, envolver-se com amizades que eu não apreciava; enfim, levar uma vida insalubre em quase todos os sentidos. Por isso o meu espanto em vê-la assim tão transformada e vendendo saúde e felicidade. Não teríamos muito tempo para conversas, tanto por seu trabalho quanto, especialmente, por minha fome de fera. Ela deve ter percebido isto, pois me serviu pronta e gentilmente. Pudemos falar um pouco enquanto e, sofregamente, devorava minha refeição.

- O que procura tão distante de São Paulo? – perguntou-me, já do lado de dentro envolta em sua fritura.

- Ainda não sei ao certo. Só sei que não desejo mais aquele tipo de vida maluca que levamos por lá. Você sabe muito bem do que falo.

- Nem precisa ir mais longe. Olhe para mim; devo ser um exemplo, não? São Paulo ia acabar me matando. Aquela moça de quatro anos atrás não existe mais. Aqui se vive. De fato. Aqui eu trabalho, estudo, pratico minha atividade diária na área esportiva e não dependo de condução. Ah! Que felicidade, não dependo de uma condução sequer! Moro ali, a quinze minutos de caminhada – completou, apontando por sobre um conjunto de casas que ia terminar num bosque de faias.

- Se ainda não decidiu por sua nova vida asseguro que não passará de hoje, depois de conhecer o que é isto aqui – ela completou, voltando-se em minha direção e me enviando um cativante sorriso.

Minha existência até ali não passava de uma rotina monótona e cansativa; eu era Cintia há alguns anos. Após aquela parada senti-me revigorado, os pensamentos estavam mais claros em minha mente; algo devia mesmo estar-me fazendo um bem há muito não experimentado e eu comecei a perceber razão em cada frase de Cíntia. Cheguei a sentir por ela o que nunca antes havia sentido. Seria, sem dúvida, uma mudança fundamental em direção à vida que eu buscava. Uma total transformação de valores, a qualidade que eu avidamente procurava. E ela estava ali, totalmente a minha disposição. Como a faria feliz agora! Como estava linda e radiante!

-Acho que tenho tempo para um cafezinho; é hora do meu intervalo – disse, aproximando-se com dois copinhos. Deu-me um e sentou-se ao meu lado na mesa.

Foi uma conversa agradável em todos os aspectos. Matamos a saudade dos velhos tempos de faculdade. Enquanto a ouvia, entabulava em minha mente a frase ideal de aceitação de suas incontáveis declarações amorosas. Até que, por fim, encontrei as palavras. Esperei sua última frase e me preparei para iniciar a minha.

- Cíntia; eu... – comecei dessa forma, mas seu celular interrompeu-me.

- Desculpe, mas tenho que ir agora – disse, depois de algumas palavras e desligar.

- Poxa! Mas agora que a conversa ia ficar interessante – falei, um tanto frustrado.

- Deixamos para amanhã. Sergio detesta quando o faço esperar.

- Quem é Sergio? – perguntei, envolto em aflição.

-Ah! Desculpe, esqueci-me de falar sobre o meu marido; Sergio e eu nos casamos há pouco mais de duas semanas.

- Tchau! Vejo-te mais tarde – disse ao me beijar e sair apressada.

E assim perdi talvez a grande oportunidade da minha vida. Voltei a sentir-me triste e abatido. Sai dali o mais rápido que pude para não ter que encontrar-me novamente com Cíntia e segui minha jornada solitária mundo afora, quem sabe até onde e para fazer o que.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 15/05/2016
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