Amor a primeira Batida
- Oi titia. - dizia uma sorridente menininha de seis anos a Talita, que havia acabado de a receber em sua casa - ou melhor, casa de sua mãe, na qual ela ainda residia, mesmo com seus vinte e oito anos, cinco meses e treze dias de idade.
- Oi querida! - branda Talita, abaixando para dar um abraço na menina. - Feliz aniversário! A titia comprou um presente lindo pra você!
- Oba! - gritou a menininha, e começou a saltitar. - O que é?
- Só depois da festa. - respondeu Talita, e cumprimentou sua irmã e mãe da menininha, com um beijo na bochecha. - Oi Lú.
- Oi Talita. E aí, já tá tudo pronto pra festa? Essa aqui não para de falar nisso desde que acordou.
Haveria dali uns instantes a festa de aniversario de Gabriela, sobrinha de Talita. Decidiram que a festa seria na casa da vovó e Talita ajudou a preparar tudo. Sua mãe não escondia que Gabriela era sua maior alegria - a primeira neta, vinda da filha mais nova - a irmã de Talita tinha apenas dezenove anos de idade.
Ela sabia que sua família já estava desconfiando que ela não iria casar nunca e muito menos ter filhos, e sabia que comentavam sobre isso quando ela estava ausente. Mas não se importava tanto assim... Não tanto quanto eles se importavam! Sabia também que sua querida mãe estava já louca para expulsá-la de casa. "Porque naquela época, as meninas casavam cedo, eu, com dezessete anos já tinha tido você Talita", repetia Eleonora quinhentas vezes por ano à Talita, para quem sabe ver se ela se tocava.
Mas Talita já era solteira convicta. Tinha um emprego, tinha uma faculdade, tinha uma sobrinha pra brincar e ser chamada de titia. Os comentários indiretos de sua mãe a irritavam, mas com o tempo ela aprendeu a conviver com eles. Até mesmo sua irmã já tentara empurrar alguns pretendentes a ela, amigos de seu marido, o que também a deixava irritada. Era cada sujeito, um mais esquisito e nada a ver com ela que o outro, mas não era só por isso que não gostava, sempre que Lucia começava a apresentar homens a ela com o olhar esperançoso, Talita ficava se sentindo péssima, como se estivesse encalhada e precisasse de toda ajuda possível para desencalhar.
Ninguém entrava em seu coração faz tempo. Ela já teve namorados, ao menos uns cinco mas nenhum evoluiu ao ponto de se tornar um noivado com direito a planos para o futuro. O último namoro durou apenas quatro meses e terminou a mais de dois anos e desde então, ninguém mais a encantara. Já havia basicamente, desistido do amor.
- Preparei uns docinhos maravilhosos! - disse ela aos convidados.
- É mesmo? - disse Lucia, sua irmã, e não tentou esconder o sentimento de reprovação ao ouvir tal afirmação. Achava que Talita cozinhava horrivelmente. A última vez que se aventurou a almoçar uma comida preparada por ela, teve de encarar arroz queimado, feijão sem sal e frango mal temperado. Não tinha grandes esperanças quanto aos tais docinhos, antes, esperava que sua mãe houvesse os feito.
Talita notou sua cara de nojo.
- Mas a mamãe preparou os salgadinhos... e eles estão realmente deliciosos. - disse.
- Que bom, Talita. Imagino que seus docinhos também estejam... - tentou concertar Lucia. - Todos os convidados já chegaram? - tenta mudar de assunto.
- Hum... - Talita olha ao redor. Seus tios estavam presentes, seus primos também, uma meia dúzia de amiguinhos de Gabriela, sua mãe, seu pai, é parece que todos estavam presentes. - Sim, sim, tá todo mundo aqui.
- Ótimo. A aniversariante foi a última a chegar. - Lucia da alguns risos e continua: - Acho que podemos então iniciar a festa, o que acham?
- Oba! - gritou Gabriela.
- Claro. Vamos por a comida na mesa. - e ela e sua irmã foram até a cozinha pegar os pratos de docinhos e salgadinhos.
Colocaram-os na mesa, então Lucia perguntou:
- Cadê o bolo?
Talita olhou surpresa para a mesa, constatando a existência de um buraco vazio onde deveria estar o bolo de aniversário. Então, como se um relâmpago passasse por ela, leva as mãos a cabeça, desesperada.
- O bolo! Eu me esqueci de ir buscá-lo! - diz ela.
Sua irmã revira os olhos.
- Não acredito Talita! O principal!
- Mas a confeitaria em que eu mandei fazê-lo fica perto daqui, apenas alguns quilômetros, eu posso ir buscá-lo e trazê-lo em cinco minutinhos! Me desculpa! - disse, atordoada.
- Bem, parece que não temos escolha né... - falou Lucia sem esconder sua frustração.
Talita rapidamente pega a chave de seu carro, um Renault Clio 1.0, de cor branca e vai para a porta.
- Volto já! - avisa. E sai apressada.
Do outro lado da cidade, Adriel acabava de ensinar uma aluna nova da oficina de esportes radicais na qual era instrutor a como se movimentar utilizando uma corda de rapel, num paredão que imitava a costa de um desfiladeiro.
- Isso, tem que pegar a corda assim. - dizia ele a ela, mostrando como se faz.
- Assim? - questionou ela, com sinais corporais que indicavam que ela estava interessada em mais do que aprender rapel.
- Exato! Você está de parabéns. - disse ele, que apesar de tê-la achado bonitinha, não via a hora de seu turno terminar e além do mais, já tinha uma namorada ou algo assim que não parava de reclamar dele. Mulheres lhe davam dor de cabeça.
Hoje queria se ver livre delas. Tinha uma partida de vídeo game marcada com três amigos para depois do trabalho. Iria beber, jogar, falar do que quisesse e quem sabe marcar um dia para uma aventura radical em alguma serra por aí, sem ouvir chateações.
- E agora, o que eu faço? - perguntou a aluna.
- Bem, aprendemos o bastante para hoje. Na próxima aula lhe ensinarei como apoiar seus pés na descida. - disse friamente.
- Bem, então, tudo bem... - disse ela, meio perdida. - Estou ansiosa para a próxima aula.
- Ótimo, adoro ver meus alunos animados. - esboçou um sorriso.
Então ele a ajudou e juntos desceram do paredão. Mal encostou seus pés no chão, ouviu seu celular tocando ao longe, dentro de sua mala. Se despediu da aluna e foi atrás de seu celular. Cinco ligações perdidas, todas de Juliana, sua namorada ou algo assim.
O que será que a chata queria? Aliás, porque ele estava com ela mesmo? Ele não se lembrava. Começou a pensar que estava acomodado no relacionamento, visto que não sentia assim tão grandes sentimentos esplendorosos por Juliana. Ainda em sua mão, o celular começara a tocar novamente e claro, era ela de novo. Tinha uma decisão a tomar. Atenderia ou não atenderia o celular? Enquanto pensava a respeito do assunto, mais um toque, depois outro, depois outro. Ele nem conseguia pensar direito. Num movimento impulsivo, levou o celular ao ouvido, apertando com o dedo o botão verde que aparecia na tela.
- Alô. - disse, seco. - Ahn... sei... Tá... Não, hoje não dá. É, eu tenho outro compromis... Não, eu não to te traindo Juliana. Vou apenas jogar... já falei que não to te traindo. Aliás, é engraçado porque - as palavras escapuliram de sua boca sem ele ter controle delas - eu nunca sequer te pedi em namoro, mas de repente pareceu que estamos namorando e eu comecei a acreditar e sentir que isso é algo sério, mas não lembro exatamente do momento em que concordei com iss... para de chorar, Jú. Não, chega. Para de chorar! Você está sendo dramática. Eu já falei que não to... Me escuta! - e de repente, do outro lado da linha, apenas um pi pi pi. Ela havia batido o telefone na cara dele.
Naquele momento Adriel não sabia o que sentia. Se estava nervoso, se devia retornar a ligação, ou cancelar a parada com seus amigos e ir a casa dela confortá-la... Estava confuso.
Decidiu então mandar tudo aos ares e ir pra casa de seu amigo, jogar vídeo game como estava previsto desde duas semanas atrás. Ele sabia o quanto esperou por aquele momento de lazer despreocupante.
Pegou sua mala e de dentro dela, retirou as chaves de seu jipe Cherokee 4x4, de cor verde escuro que usava ocasionalmente para fazer trilhas no barro.
Iniciou então sua jornada a casa de seu amigo, quase do outro lado da cidade.
Mesmo tentando se livrar do sentimento, Adriel estava se sentindo nervoso após aquele telefonema e a briga com Juliana. Sentia que precisava decidir se prosseguia ou não nesse relacionamento. Pela primeira vez a possibilidade de terminar tudo passou por sua mente, ali, enquanto dirigia.
Passa por duas ruas pouco movimentadas, então vira a esquerda onde havia uma avenida mais movimentada, seguindo seu rumo. O sinal lá na frente estava verde, e assim como os carros próximos ao seu, Adriel decide acelerar. Certamente daria tempo de passar. Aos poucos, um carro que estava mais a frente passa, depois outro, então, antes que ele pudesse passar, o semáforo muda sua cor de verde para laranja. Ele pisa mais fundo no acelerador, "vai dar tempo", pensava.
Ainda enxergava a cor laranja momentos antes de seu carro passar pelo semáforo e ser atingido na lateral por outro carro, que vinha a sua direita com tudo e agora empurrava seu carro para a esquerda.
- Puta que pariu! - foi o que deu tempo de ele gritar, enquanto seu carro era arrastado para o lado após o som oco da batida ecoar pelo ar junto com o barulho de vidros quebrando.
Ainda totalmente aturdido, ouviu o carro que batera no dele frear e certamente pintar a pista de borracha preta, até seu carro finalmente parar vários metros depois.
- Não to acreditando nisso, velho. - falou pra si mesmo. - Quem foi o filho da puta que fez isso? Eu vou matar ele! - e assim, furioso, Adriel se retira de seu próprio carro amassado, mas felizmente passava bem, tendo sofrido apenas um ou outro arranhão proveniente de um vidro quebrado que voara em sua direção, a fim de debater com o outro motorista - o facínora que o atingiu - sobre questões práticas do acidente, como, quem teve culpa, quem vai pagar o quê e trocar telefones para posterior acertos de contas.
Do outro carro, um Clio branco, ele avista sair uma donzela, que no momento estava um pouco descabelada. Ela usava um vestido azul royal e uma sandália com salto dourada, e seus cabelos ruivos agiam como bonecos de posto, se mexendo em várias direções. Chegando um pouco mais perto, pode observar que o vestido azul combinava com os olhos azuis claros dela, e mesmo inconscientemente a achou bastante apresentável por assim dizer. Mas as têmporas de Adriel ainda queimavam de aturdimento com a situação - um acidente de trânsito nunca é agradável.
A moça, antes de mais nada, olha chocada para seu próprio carro que no momento exibia uma frente totalmente destruída, e extravasa:
- Não, não, não, não. - leva as mãos em forma de triângulo para a boca, numa expressão de espanto. - Ainda faltavam trinta e duas parcelas pra pagar! E agora? O que que eu vou fazer?
- O que você vai fazer eu não sei, mas temos que falar sobre o que você de fato fez. Bateu no meu carro! - gritou Adriel, observando o estrago lateral de seu próprio veículo.
- Eu bati no seu carro? - questionou ela, o observando mais atentamente pela primeira vez. Via um homem com porte atlético de idade possivelmente similar a dela, com uma roupa esportiva - bermuda, camiseta solta e tênis, cabelos louros bem cortados e olhos castanhos que acharia meigos, não fosse o laser invisível que saia deles mirando a ela. Continuou: - Você saiu do nada na minha frente! Eu tava andando corretamente, pela rua...
- Não, você é quem saiu do nada! Acho que você furou o sinal vermelho.
- Não furei não, eu vi ele ficar verde antes de eu passar, eu já estava vindo quando ele tava vermelho, e vi ele ficar verde então continuei, você é quem deve ter furado o sinal.
- Não é possível teu sinal estar verde, eu passei no sinal laranja, isso significa que seu sinal ainda estava vermelho.
- Você passou no laranja? Não pode fazer isso...
- Como não? No sinal laranja pode passar, no vermelho é que não, eu agi corretamente. A culpa do acidente foi sua.
- Não, a culpa foi sua. Meu sinal estava verde. - Talita cruza os braços.
- Não é... - diz Adriel, emburrado.
Após alguns instantes de silêncio, Talita fala:
- E agora, como é que vai ficar isso? - leva as mãos a cabeça. - Acho que meu carro não anda mais, e eu preciso ir buscar o bolo do aniversário da minha sobrinha!
- Você devia ter pensado nisso antes de bater com tudo no meu carro.
- Ah, é claro que eu bati no seu precioso carro de propósito né. - diz ela. - Se você não tivesse atravessado no sinal laranja..
E assim a discussão prossegue por vários e vários minutos. Alguns carros estavam incomodados com o acidente no meio da via, e já começavam a buzinar e a xingar os dois cidadãos.
- Vou ter que ligar pra um guincho agora... - diz Talita. - Você não devia estar reclamando tanto, seu carro não ficou tão destruído como o meu...
- Bem ,isso é verdade, acho que ainda anda... mas vai ser um gasto terrível reparar esse estrago que você causou!
Mais discussões se sucederam com o mesmo teor de acusações trocadas. Então finalmente o guincho chega, levando o clio de Talita embora pra posterior avaliação dos danos causados. Quanto a culpa da batida, ainda não havia um acordo entre eles.
- Agora vou ter que ir de ônibus ou chamar um táxi pra ir pegar o bolo... e como eu vou carregar um bolo enorme dentro do ônibus lotado? - se perguntou Talita, sem carro e sem bolo.
- Olha, apesar de você ter feito isso, e apesar de eu ter um compromisso para o qual já estou atrasado, eu posso fazer o favor de te dar uma carona até a confeitaria, caso não seja muito longe...
- Hum, não precisa se incomodar. - diz ela friamente. - Eu dou um jeito...
- Não, que isso, agora eu faço questão! - diz Adriel, incisivo. - Anda, para de ser orgulhosa e aceita..
- Eu orgulhosa? Mas você nem me conhece!
- Mas eu to oferecendo uma carona como bom cavalheiro que sou e você não quer aceitar de pirraça.
- Era só o que me faltava!
Blábláblá, mais discussões.
- Fala, onde fica essa confeitaria? - diz Adriel, por fim. - Eu vou lá e pego o bolo pra você, você me passa seu endereço e eu entrego ele na sua casa. Olha como eu sou bonzinho! Diferente de você que é...
Mais discussões.
- Tá, tá bom. Só vou aceitar porque estou realmente muito preocupada. O povo lá de casa deve estar louco já com a minha demora.
- Nossa, até que enfim, viu, não doeu nada?
Ambos entram no carro de Adriel e seguem até a confeitaria. No carro porém, há um silêncio constrangedor.
Com o bolo já em mãos, Adriel estaciona em frente a casa de Talita. Antes de sair do carro, Talita ensaiava dizer alguma coisa, até que por fim falou:
- Olha, obrigado por ter me dado essa carona, você não precisava..
- Que isso. - Adriel sorriu. - Não foi nada. E pra falar a verdade, eu confesso que estava me sentindo sim um pouco culpado... não sei, talvez no milissegundo antes de eu cruzar de vez o semáforo pode ter mudado pra cor vermelha e eu é quem estou errado...
- Não, eu acho que eu também tive culpa. - disse ela. - Eu confesso que estava apressada pra pegar o bolo e acho que acabei indo rápido demais...
- Não, tá tudo bem... eu assumo a culpa! - diz ele.
- Não, eu acho que eu que agi errado!- diz ela. - A culpa é minha!
Ambos se olham e repentinamente começam a rir.
- Não acredito que agora estamos brigando pra ver de quem é culpa de novo... - diz Adriel.
Talita sorri e abre a porta amassada do lado do passageiro pra se retirar, mas Adriel toca em seu braço.
- Espera, me passa seu telefone pra gente, você sabe, conversar sobre o acidente e seguro e essas coisas...
- Ah, é mesmo! - diz ela. - Já estava esquecendo.
Ambos trocam telefones e finalmente se despedem,
- Tchau... - diz ela, já fora do carro, olhando pra trás em direção a ele. Ambos agora sorriam.
- Tchau. - ele respondeu, e partiu.
No outro dia, Talita ouviu seu telefone tocar. Era Adriel. Começaram conversando sobre o acidente, mas logo o assunto começou a ser ampliado e Talita descobriu que Adriel era instrutor de rapel. Adriel descobriu que ela trabalhava em uma galeria de arte. Talita descobriu que ele gostava de fazer trilha com seu carro no meio da mata. Adriel descobriu que Talita gostava de cozinhar, mas que aparentemente só ela gostava da própria comida.
Em outros dias, novas ligações, sempre começando com o assunto do acidente, seguro, e partindo a outras direções. Talita descobriu que Adriel, apesar de trabalhar e praticar muitos esportes radicais, tinha medo de entrar na água, pois quase se afogou certa vez quando era criança. Adriel descobriu que Talita não gostava de assistir televisão e que tinha um gato de estimação chamado Mimoso. Talita descobriu que o signo de Adriel era sagitário, e ele descobriu que o signo dela era de gêmeos. E assim ia indo, até que um dia resolveram se reencontrar.
O encontro foi agradável e terminou em uma situação ardente.
Mais encontros se sucederam até que um dia Adriel a surpreendeu.
- Talita Maria da Luz, você aceita... - ele abriu uma caixinha que continha um anel dentro. E continuou: - Me aguentar todo dia, ouvir minhas piadas sem graça fingindo que gostou e me acompanhar em algumas de minhas aventuras, pelo resto de sua vida?
- Oh Adriel! Eu... - os olhos azuis de Talita brilhavam e seu sorriso era imenso. - Aceito!
Casaram e foram felizes para sempre, mesmo sem nunca saber de quem foi a culpa da batida.